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2 O CONCEITO MARXIANO DE HOMEM

2.4 O homem como ser universal

Nos dois momentos anteriores, vimos que o homem consolida, através do trabalho consciente, a passagem, o salto ontológico, entre o ser natural e o ser social. Em outras palavras, a humanidade do homem, segundo Marx, origina-se no momento em que ele efetiva sua relação com a natureza, a partir de um contínuo processo de transformação desta natureza em objetos do seu consumo, isto é, uma troca entre o trabalho do homem e o produto da natureza. Por isso, ao afirmar que o primeiro pressuposto da humanidade é a existência de indivíduos vivos, Marx conclui que “o primeiro fato a constatar é, pois, a organização corporal desses indivíduos e, por meio dela, sua relação dada com o restante da natureza” (2007, p. 87).

Como explica Marx (2004),

Fisicamente o homem vive somente destes produtos da natureza, possam eles aparecer na forma de alimento, aquecimento, vestuário, habitação etc. Praticamente, a universalidade do homem aparece precisamente na universalidade que faz da natureza inteira o seu corpo inorgânico, tanto na medida em que ela é 1) um meio de vida imediato, quanto na medida em que ela é o objeto/matéria e o instrumento de sua atividade vital (MARX, 2004, p.84).

Para Marx, portanto, a natureza é uma espécie de extensão do corpo humano, um “corpo inorgânico”. Não é possível, evidentemente, concebê-la como parte do corpo natural do homem, porém sem ela tampouco seria possível conceber a existência humana. Neste ponto, Marx compreende que a existência dos objetos naturais é independente da consciência do homem, muito embora não se possa supôr nenhuma relação de independência entre o ser social e o ser natural, como observa Lukács (1979, p. 17). O ser social, por outro lado, possui na natureza duas dependências marcantes: primeiro porque os elementos que a compõe (o ar, a água e a terra, por exemplo) são necessidades biológicas dos homens; depois porque a própria natureza é o pressuposto natural do trabalho humano e, portanto, a matéria- prima de sua atividade vital. Esta universalização, para Márkus (1974a), apresenta- se como uma determinação dupla:

Por um lado, aparece como naturalização do homem, como metamorfose do homem, que passa de um ente natural limitado para um ente natural cada vez mais universal. Por outro lado, o processo se manifesta como a

transformação que tem por consequência que os os objetos do entorno do homem se convertam em objetivações das forças da natureza humana (p. 19).

Conforme a exposição de Márkus, o ser social, enquanto humano também é

ser natural. Assim como o gado, o pássaro ou qualquer outro animal, o homem

possui a consumação das suas carências nos objetos naturais. Decorre disso que o homem, o ser humano enquanto tal, não deixa de ser um ser natural, mas é transformado pelo trabalho em um ser natural humano. Assim, desta unidade entre a natureza e o homem resulta o caráter universal do ser humano – a natureza como “corpo inorgânico” do homem. Por isso, o sentido da natureza não pode resumir-se à condição passiva, pois, como demonstra Tonet (2013), esta relação trata-se de uma “determinação recíproca”. Isto é, “subjetivar as forças da natureza e, ao mesmo tempo, objetivar-se como ser humano são dois momentos de um mesmo processo unitário” (TONET, 2013, p. 87).

Disso decorre, por outro lado, que a apropriação da natureza sob a forma de mercadoria torna-se incompatível com a natureza do processo social. Neste sentido, Tonet (2013) adverte para o fato de que a relação de caráter mercantil entre o homem e a natureza é própria de “uma forma histórica marcada pela alienação” (p. 87), onde tanto a natureza quanto o homem são desumanizados. Para Mészáros (2010), inclusive, a separação desta unidade, a saber, “das condições inorgânicas da existência humana do sujeito que trabalha”, constitui a “própria essência do capital como um modo de controle social” (p. 431). Significa que quando domina a natureza, o homem impõe o seu conhecimento sobre ela, modificando gradualmente o vínculo homem/natureza. Por isso, exteriorizado, objetivado e efetivado pelo trabalho, o conhecimento enquanto desenvolvimento espiritual dos homens não retrocede em sua complexidade. Do mesmo modo, esse conhecimento não é privatizado pelo homem singular mas apropriado pelo gênero.

Inicialmente a natureza se apresenta como a base sobre a qual repousa o trabalho humano e por onde o homem é capaz de criar os meios para sua subsistência. No entanto, após o desenvolvimento das forças produtivas, oriundas deste constante processo de aquisição de conhecimento por meio do trabalho, as novas capacidades humanas e suas respectivas necessidades, modificam esta relação (MÉSZÁROS, 2010). Há, portanto, uma evidente modificação nas

correlações originárias do gênero humano, visto que a unidade natural entre homem e natureza é significativamente transformada ao passo em que se desenvolvem novas formas de necessidades e, igualmente, novos meios para supri-las. Ainda assim, a natureza, enquanto extensão inorgânica do corpo humano, permanece subordinada ao trabalho humano e o homem, por sua vez, distingue-se dos animais pois passa a representar um “gênero”, “ao qual todo fenômeno natural pertence enquanto ‘espécie'” (MÁRKUS, 1974a).

O importante, neste sentido, é constatar que a relação universal entre o homem e a natureza manifesta-se como um traço ontológico do ser humano. Esta constatação, como vimos, está diretamente relacionada ao fato de a relação humana com a natureza não se resumir à adaptação externa aos objetos naturais. Mas ação da natureza aqui já não é apenas reflexiva em relação à atividade humana, mas também é o fundamento criativo da humanidade desse ser – é o locus que propicia ao homem o seu progresso através da mediação do trabalho. Significa que ao mesmo tempo em que a natureza, estabelece os limites exteriores do homem e comprova sua finitude, ela é o corpo inorgânico que sustenta a atividade humana. Assim, o homem, o ser natural que tornou-se humano, é capaz de atuar na natureza, modificá-la e transformá-la em produto social. Deste modo, o que definirá o caráter da relação homem-natureza é, em primeira instância, a relação social estabelecida nesta reciprocidade dialética entre corpo orgânico e inorgânico.