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Como falei no capítulo anterior, cada fio das teias de Ananse possui grande importância no processo de luta de seus incansáveis herdeiros, agora mais fortalecidos com o símbolo da liberdade, Zumbi. E mais. Ganharam de volta o sonho do território livre: Palmares. Livre do racismo, do preconceito, da discriminação. É preciso mais luta para concretizar o sonho. Mais do que ninguém, os herdeiros de Ananse, no Brasil, sabem falar de resistência. Intelectuais ativistas do fio/ ação movimento negro, costumam afirmar ser o movimento negro, o movimento social mais antigo da história do país, uma vez que atua desde o tempo do Brasil - colônia, século XVI.

A partir da década de 70, o fio/ ação movimento negro, se estendendo em todo território brasileiro, assume como tarefa a denúncia veemente do mito da democracia racial. É preciso desnudar o antagonista, tirar-lhe a máscara e deixar vir à tona a face cruel do racismo e da discriminação racial que suprime direitos fundamentais da população negra. A tarefa não é fácil porque, se por um lado, a sociedade brasileira acostumou-se com a Persona contemporânea do racismo, por outro, a ditadura militar trouxe para si o papel de defesa da máscara mito da democracia racial.

Neste particular, ouso levantar a hipótese de que o governo militar assinou o documento da Convenção pela Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial – CERD295, por entender que não havia discriminação racial em solo brasileiro. Afinal, o pensamento corrente é o de que aqui não temos racismo. Ainda mais, um governo que perseguia e torturava internamente seu povo, precisava cuidar de sua imagem externamente. Naquele contexto, a adesão/ ratificação do instrumento vinha a calhar e o país aproveitava para fazer ‘média’ e melhorava sua imagem na conjuntura internacional.

295 Em 1965, as Nações Unidas em assembléia geral aprovou a convenção pela Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial. Contudo, esta convenção apenas entra em vigor em janeiro de 1969, quando obteve o número de adesão necessário a sua validação295, isto é, já havia sido ratificada por 30 países da América Latina e Caribe. Vale ressaltar que Brasil assinou o documento em 7 de março de 1966; a data de adesão se dá a 29 de março de 1968 e a partir de 4 de janeiro de 1969 a Convenção entra em vigor. A partir de então, o instrumento adquire um papel importante para os movimentos negros dos países signatários.

Entretanto, ironicamente, o mesmo governo que ratificou a

Convenção, instituiu em dezembro de 1968, o Ato Institucional de número 5, conhecido como A.I.5, que possuía um artigo, o 477. Tal artigo feito de encomenda para reprimir os estudantes e a luta armada, proibia todo e qualquer tipo de organização de grupos que, porventura, pudessem vir a se constituir em eminente ameaça à ordem estabelecida. Nesta perspectiva, a ratificação da Convenção – CERD se coloca no mesmo plano dos diversos atos desprovidos de eficácia que deram origem ao dito popular, conforme Júlio Chiavenato296: “leis para inglês ver”, quando as pressões aumentavam pelo fim do tráfico negreiro. Como se pode verificar, a situação não será nada fácil para os imbatíveis herdeiros de Ananse que, além de tentar convencer a sociedade sobre a existência do racismo e da discriminação racial, a qualquer momento, poderão ser vítimas da repressão da ditadura militar.

A sociedade brasileira e até a recente historiografia não entende ser o movimento negro um movimento diretamente visado pelos órgãos de repressão do regime militar e acreditava que o alvo direto da repressão eram os comunistas, estudantes, operários, jornalistas, políticos e padres da igreja católica, ligados à Teologia da Libertação. Entretanto, um trabalho defendido na USP, em 2007, de autoria de Karin Sat’ Anna Kössling297 rompe com esta crença, na medida em que demonstra que o fio/ ação movimento negro e, sobretudo, as lideranças, não ficaram imunes aos rigores da repressão. Observo que a repressão do Estado aos fios/ ações dos herdeiros de Ananse não é novidade. Não se constitui uma atitude singular e isolada, ou ainda um acontecimento pontual, na história brasileira. Basta que lembremos, para não ir tão longe, a repressão que o Estado Novo de Getúlio Vargas, imprimiu à Frente Negra Brasileira – FNB298 e às religiões de matriz africana.

296 CHIAVENATTO, Júlio José. O negro no Brasil: da senzala à Guerra do Paraguai. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.

297 Trata-se da Dissertação, intitulada As Lutas Anti-Racistas de Afrodescendentes sob Vigilância do

DEOPS – S. P. 1964 –1983. Defendida em 2007 por Karin Sat` Anna Kosssling e orientado pela Profa. Dr. Leila Gonçalves Hernandes. O trabalho faz um levantamento nos arquivos do DOPS e DOI CODI de São Paulo. Entre outras coisas, revela que em muitos momentos a perseguição foi bastante acirrada e contou, inclusive com infiltrações. Karin Kössling conta de que desde a década de 1940, as organizações do movimento negro foram objetos de vigilância por parte do Estado.

298 A Frente Negra Brasileira foi severamente reprimida e inclusive fechada por Getúlio Vargas. Sobre o assunto ver: SANTOS, Ivair Alves. O movimento negro e o estado (1983 – 1987): o caso do conselho de participação e desenvolvimento da comunidade negra no governo de São Paulo. São Paulo: Coordenação dos assuntos da população Negra, 2006.

Com efeito, Karin Kössiling assinala que o fato de o movimento

negro questionar a democracia racial, o coloca na mira da repressão, uma vez que falar de racismo pode criar elemento gerador de conflitos raciais e ameaçador da harmonia que deve ser preservada a qualquer custo. Por outro lado, denunciar a carestia e as péssimas condições de vida da população negra afeta o regime militar e pode gerar atos de desordem. E ainda mais. A identificação de qualquer vestígio de relação com a África é considerada perigosa, pelo regime militar, num período em que muitos países africanos se emancipam do jugo do colonialismo e optam pelo regime socialista, mantendo ligações e até recebendo apoio da URSS. Aqui, não podemos esquecer o período da ‘guerra fria’. O sociólogo Clóvis Moura299 torna-se um intelectual visado pela ditadura militar, sob suspeita de manter contato com o Movimento pela Libertação de Angola – MLPA.

É importante lembrar que a Lei de Segurança Nacional, de março de 1967, no item VI, considera crime incitar publicamente ao ódio ou à discriminação racial. Naquele contexto, as organizações do movimento negro são entendidas, não apenas pelo governo, mas também por parte da sociedade, como causadores de racismo. Afinal, ‘se todos somos mestiços’, não há razão para a existência de racismo e discriminação. E em conseqüência, não há razão para espaços de luta dos negros. Esse é o entendimento generalizado, inclusive, no meio da esquerda brasileira. Portanto, os aliados dos herdeiros de Ananse, naquele momento, não são tantos, dentre aqueles que acostumaram a viver protegidos por trás do conforto da não racialidade. Nesta perspectiva, os discursos de revolta dos negros chocam os ouvidos de muitos brancos socializados regidos pelo mito da democracia racial.

Por sua vez, os discursos do Estado brasileiro esforçam-se para fazer valer no contexto internacional a tese da harmonia racial e da sociedade sem conflitos. Logo, o mito da democracia racial passa a ser o grande trunfo do “país que vai para frente”. É desse modo que os Relatórios brasileiros enviados ao Comitê CERD, durante as décadas de 70 e 80, se esforçam para retratar o país, insistindo na tecla do mito da ‘democracia racial’ e na miscigenação como parte do caráter nacional. Uma espécie de peculiaridade brasileira. Em que pese o fato de que a análise desses documentos não faz parte dos objetivos desta pesquisa, a lembrança se faz necessária para destacar o esforço do Brasil 299 MOURA. Cf. op. citada.

em vender uma imagem positiva à comunidade internacional, sobre as

relações raciais existentes na sociedade brasileira e, por fim, comprovar a ausência do racismo.

Outra questão recorrente, nos debates entre os representantes do Estado brasileiro e os participantes do Comitê CERD, refere-se às relações diplomáticas do país com a África do Sul. No decorrer das duas décadas, o Brasil é instado a cada sessão do Comitê a cumprir o artigo terceiro da Convenção de que é signatário:

“Os Estados-partes condenam a segregação racial e o Apartheid e comprometem-se a proibir e a eliminar nos territórios sob sua jurisdição todas as práticas dessa natureza” 300.

É importante lembrar que nesse ínterim o fio/ ação movimento negro, em todo o país, realizava ações e atos de protesto contra a política de segregação racial da África do Sul e contra a prisão do líder do Congresso Negro Africano301 – CNA , Nelson Mandela. Eram freqüentes os eventos, debate, seminário, palestra sobre o apartheid. Tais eventos levavam o movimento a contestar as relações externas entre o Brasil e a África do Sul.

E, ainda mais. Era comum o discurso comparativo que o movimento negro fazia entre a política de segregação racial da África do Sul e o apartheid disfarçado, existente no país. Inúmeras eram as comparações feitas entre o passe e a carteira de trabalho302. O discurso comparativo se apresentava como um dos discursos mais inconveniente para o governo, posto que contestasse, sobretudo, no período de vigência do regime militar, o mito da democracia racial, grande trunfo do Estado brasileiro, no exterior. Karin Kössiling, em sua pesquisa, chama a atenção para a vigilância redobrada dos órgãos de segurança ao movimento negro de São Paulo. Afirma que à época, a segurança utilizou, inclusive, o recurso da infiltração303. Essas manifestações, decerto,

300 Artigo terceiro da Convenção pela Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial.

301 Congresso Nacional Africano ou ANC do seu nome em língua inglesa é o partido político no poder desde as primeiras eleições multi – raciais, em 1994. O ANC, como se costuma dizer, no Brasil, lutou contra o regime do Apartheid.

302 Passe, documento que os negros da África do Sul, deviam portar para poder freqüentar a área destinada aos brancos. Carteira trabalho, documento solicitado pelos policiais aos negros brasileiros nas grandes cidades. A comparação foi imortalizada em charge pelo desenhista e publicitário, militante do movimento negro de São Paulo, Mauricio Pestana.

303 Karin Sat` Anna Kosssling. As Lutas Anti- Racistas de Afrodescendentes sob Vigilância do DEOPS –

se tornavam inconvenientes para a política externa brasileira, na medida em que faziam vir à tona uma imagem negativa do Brasil no exterior.

Com efeito, para o bem da democracia, a ditadura se foi e os fios/ ações de Ananse continuam. Durante toda a década de 1970, os herdeiros de Ananse não param de tecer e re-tecer. Aproveitam todas as brechas. Engajam-se nas campanhas pelas eleições diretas. Denunciam o mito da democracia racial. Afirmam o dia 20 de novembro. Dia Nacional da consciência negra. Instituem o dia 13 de maio com dia de denúncia do racismo. Abrem espaços nas lutas sindicais. Criam organizações não governamentais (ONG’S). Realizam encontros regionais304. Organizam-se para o processo constituinte, elaborando pauta de reivindicação305 que contém, entre outras propostas, o racismo como crime inafiançável e imprescritível e o artigo 68 das disposições transitórias que trata da titulação das terras de remanescentes de quilombos. Enfim, não param. Eles se põem e se expõem sempre com o objetivo de desmascarar o antagonista. Indo mais além, se firmam e se afirmam. São negros e brasileiros. Dito de outra forma. São negros brasileiros.

As bandeiras de luta dos herdeiros de Ananse, para além da denúncia do mito da democracia racial, se ampliam. Entretanto, não basta ficar apenas na denúncia é preciso propor. Não basta ser apenas reativo é necessário ser proativo. Tem que se abrir espaço na estrutura do Estado. Assim, em 1984, o governador Franco Montoro, cria o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra de São Paulo. Na verdade, a criação do Conselho foi resultado de conquista dos herdeiros de Ananse. Entretanto, ao mesmo tempo em que os herdeiros de Ananse querem furar o bloqueio do Estado, está relação é motivo de grandes polêmicas, pois está sempre presente o medo da tutela e da cooptação, por essa razão, a criação do Conselho de São Paulo, é motivo de amplos debates sobre a relação dos negros com o Estado. Neste Particular, Ivair Alves dos Santos, assinala que “pejorativamente, o Conselho ficou conhecido como a Funai dos negros” 306.

304 No período de 1981 a 1990, os herdeiros de Ananse das regiões Norte e Nordeste, realizam dez Encontros que, num primeiro momento, são chamados de Encontro de Negros do Norte e Nordeste. Do terceiro em diante, o evento passa a chamar-se Encontro de Entidades negras do norte e do nordeste. Cada Encontro, preparado com certa antecedência, versa sobre um tema sobre o qual são construídas as teses. 305 Em agosto de 1986, acontece em Brasília, o Encontro Negros e Constituinte, reunindo organizações de todo Brasil, visando a compor uma pauta nacional para a nova Constituição.

Ainda conforme Ivair Alves dos Santos dos Santos, “o Conselho foi

criado tendo como pedra angular o sistema de promoção, controle e defesa”. 307 A despeito do descrédito dos negros em relação ao Estado, o Conselho se consolida. Não obstante as dúvidas internas, a criação de um órgão na esfera do Estado, representava o reconhecimento oficial do racismo e da discriminação racial por parte do Estado de São Paulo. Desse modo, o Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade negra de São Paulo servirá de modelo para os diversos Conselhos que irão se instituir e se espalhar pelo país.

A despeito das desconfianças dos herdeiros de Ananse, no que diz respeito à relação com o Estado, as negociações feitas para que fossem criados organismos na esfera do Estado que dessem conta da questão racial, não param. Em 1984, o então presidente da República, José Sarney, emite decreto considerando a Serra da Barriga308 patrimônio histórico do país. Este fato, pode não parecer, mas se constitui numa vitória de grande importância para os herdeiros de Ananse da diáspora africana nas Américas. Uma vitória que supera o plano do simbólico que o documento/ monumento possa representar para determinado grupo. O reconhecimento da Serra da Barriga, por parte do Estado brasileiro, reconhece, legitima e oficializa o fio/ ação quilombo, como símbolo capaz de constar do acervo do projeto de construção da nacionalidade brasileira. E mais. Para os herdeiros de Ananse, no Brasil, a Serra da Barriga, que já se firmara local de peregrinação durante o dia 20 de novembro, a partir do final da década de 1980, se legitima como o ‘símbolo do território perdido’.

Os herdeiros de Ananse continuam em luta tecendo suas teia, aqui ou ali conseguem um avanço, uma vitória, pequena que seja, sempre vitória, sempre conquista. Aproxima-se o centenário da abolição, 1988, ano também de muitos debates em torno da Constituição cidadã. O centenário da abolição precisa ser organizado. Deverá ser um ano inteiro de eventos para marcar a data. Desse modo, seminários, colóquios, debates, cursos, enfim, tudo que se pôde ser pensado para afirmar o centenário da abolição. Naquele ano inauguram-se as ‘marchas’. No dia 13 de maio de 1988 acontecem marchas no país inteiro. As bandeiras de luta: denúncia do mito da democracia racial. Zumbi está vivo! 20 de novembro Dia Nacional da Consciência 307 Id., Ibid., p.82.

Negra! Políticas Públicas de Combate ao Racismo e Pela Eliminação da Discriminação Racial!

Com efeito, o ano se fecha com saldos positivos, mais conquistas dos herdeiros de Ananse no Brasil. A Constituição Federal assimila alguns Artigos que fizeram parte da plataforma de reivindicações elaboradas pelo fio/ ação movimento negro, algumas ficaram de fora. Enfim..., o embate continua. Os herdeiros de Ananse não guardaram suas lanças, aguardarão a hora propícia. O Estado responde: em 1988 foi criada a Fundação Cultural Palmares, órgão vinculado ao recém criado Ministério da Cultura. Deverá então, a Palmares responder pela questão racial na esfera do Estado. Dentre seus objetivos a Palmares deverá promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira. A resposta é suficiente? Ainda não. A resposta é tímida e denota a visão culturalista do Estado que ainda faz a equivalência direta entre negro e cultura. A Fundação Cultural Palmares309 foi um passo a mais na caminhada. A missão da Palmares é grande. Mas, e os recursos? Estes: são parcos.

É pouco. É verdade. Entretanto, mais uma conquista. Dentre as conquistas do centenário da abolição o fio/ ação movimento negro trouxe à cena os remanescentes de quilombos310. Séculos de invisibilidade, agora, ocupam a cena para exigir seus direitos. Ocupam a cena com o nome oficial de comunidades remanescentes de quilombo. Nilma Bentes, ativista do fio/ ação movimento negro (CEDENPA) afirma: “[...] A idéia é a de que os remanescentes eram uma espécie de rebrota, não de resquício nem resto; mas algo que renasce, uma coisa que vem brotando” 311. Os quilombolas continuam lutando pelo direito que lhes é garantido pelo Artigo 68 das Disposições Transitórias da Carta Magna. A rede dos fios de Ananse cresce, os fios brotam e rebrotam. É preciso reunir força e a aguardar o tempo de agir mais. E mais. O ano é 1995. Trezentos anos de morte de Zumbi, líder do quilombo de Palmares. Vem a grande marcha. A marcha de trezentos anos de comemoração do aniversário de morte de Zumbi dos Palmares. A marcha é o

309 Em 22 de agosto de 1988, o então presidente da República José Sarney a Lei 7688 que cria a Fundação Cultural Palmares, vinculada ao recém criado Ministério da Cultura.

310 O Artigo 68 das disposições transitórias da Constituição Federal: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

311 BENTES, Nilma. Quilombos no Brasil. Revista Palmares 5. Brasília: Ministério da Cultura. Fundação Cultural Palmares, 2000, p. 79.

marco de um momento de resistência proativa e propositiva dos herdeiros de

Ananse. A marcha marca um momento de cobrança veemente ao Estado brasileiro, a fim de que ele cumpra os compromissos assumidos internacionalmente de combater o racismo e eliminar a discriminação racial. Naquele momento se inicia o processo de uma nova caminhada que irá conduzir às políticas de ação afirmativa.

Antes, porém de abordar a questão das apolíticas de ação afirmativa que trará em seu bojo a proposta da criação do sistema de cotas para negros nas universidades públicas brasileiras. Aproveito este momento para ressaltar mais uma vez, que a proposta de cotas para negros na universidade, fez parte do Relatório do Comitê Nacional para a Preparação da Participação Brasileira na III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlatas. Aqui, também chamo a atenção para três aspectos que considero importantes no processo de luta dos herdeiros de Ananse nas Américas.

O primeiro aspecto tem sido a capacidade que as culturas produzidas pelos herdeiros da deusa Aranã, nas Américas, têm demonstrado em importunar os diversos acordos nacionalistas elaborados pelas Nações no continente americano. E, em particular as Nações da América latina. Quando as elites pensam que já negociaram e já elaboraram acordos suficientes, vêm os herdeiros de Ananse clamando por mais espaços e forjando novos acordos. Visto por esta ótica, o movimento da luta dos herdeiros de Ananse, no continente americano pode ser comparado, parafraseando a poetisa chilena Isabela Mistral312, ao movimento das ondas do mar: tão perseverantes são as ondas do mar que os recuos são aproveitados e transformados em novos pontos de partida para ousar mais um avanço. Assim tem funcionado a luta dos herdeiros de Ananse. Cada recuo é a pausa que se faz necessária para que se introduzam novos acordes na composição melódica que se constrói, cotidianamente, e que tem servido de música de fundo da ‘longa travessia’ dos herdeiros da deusa.

Ressalto que esta composição melódica é cheia de nuances e contrastes, sons e ritmos disjuntos. Consonâncias e dissonâncias. Enfim, a música que tem acompanhado os herdeiros de Ananse na diáspora na construção de uma história que sempre é capaz de importunar as diversas narrativas elaboradas pelos modelos tradicionalistas de Nação, não pode ser uma melodia de composição tonal linear e acabada. Ao contrário,

ela é sempre fragmentária. Faz-se de silêncios e sonoridades fortes e

agressivas. Sonoridades que ferem os ouvidos educados dos que não querem ser importunados em sua arrumação cristalizada de sociedade civil organizada, sem