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Para o sucesso da segunda saída de don Quijote novas providências foram tomadas por ele. Isto vem afirmar o mapear da travessia aventureira do personagem. Seus passos eram medidos e planejados numa sensível e tênue mente desalojada de racionalidade, já que abraçara o viver de um mundo fictício, como se estivesse a fugir de sua indesejável realidade. Seus argumentos arrastaram seu vizinho, Sancho Panza, para trilharem juntos as estradas do desconhecido mundo aventureiro: “con estas promesas y otras tales, Sancho Panza, que así se llamaba el labrador, dejó su mujer y hijos y asentó por escudero de su vecino” (DQ, p. 72). Sancho passou a comungar, em parte, dos ideais de don Quijote, pois o que realmente o interessava era o lado material. Não tinha sido engolfado pela ficção de cavalaria como o seu recém senhor, mas pelo que em troca receberia. Há neste fato, algo de nossos dias: a corrida acelerada do homem em busca do crescimento individual, do poder. Em muitos, isto se sobressai com maior intensidade, de tal modo que se mostram como loucos e cegos pela ganância, no primado do jogo de interesses. Muitos caiem nesse dilema, aproximando a desolação para si, acabando com a própria vontade de viver.

Cervantes tece a narrativa numa paisagem de vida encoberta nas dificuldades. Não só o cavaleiro participa desse quadro, mas também os personagens de cada história disposta no Quijote. Não temos aqui a pretensão de estudá-las todas, detalhadamente, gostaríamos, porém, de trazer à superfície desses estudos a “Novela do curioso impertinente”. O proprietário da hospedaria lembra que as leituras “han dado la vida, no sólo a mí, sino a otros muchos... cuando oyo decir aquellos furibundos y terribles golpes que los caballeros pegan... y que queria estar oyéndolos noches y días” (DQ, p. 321). Nesse sentido, a leitura torna-se um momento especial “para entretener nuestros ociosos pensamientos” (DQ, p. 325), de acordo com a narrativa. Diferentemente de don Quijote, os outros personagens cervantinos têm nas histórias um alento, não desejam transformá-las na razão de suas vidas, como fez o fidalgo Alonso Quijano.

92 A leitura se manifesta de formas diferentes no Don Quijote de la Mancha, a ponto de tornar-se o fundamento da obra. Tudo nela começa a girar pela atitude de um inveterado leitor. Os livros ocupam esse personagem até fazê-lo alheio ao mundo em sua volta e a outras atividades. Enlouquece, precisamente, no ato da leitura. Mas, é esta mesma que irá entreter o seu tempo ocioso e trará, pela imitação, uma história escrita nas linhas de escape da loucura.

O conto é mais uma história triste de dois amigos, Anselmo e Lotário. O primeiro casara-se com Camila. Ele alimentou um esquisito e incontrolável desejo que corroia à sua alma, a ponto de não permitir-se ser inteiro na relação amorosa, como podemos perceber no trecho seguinte:

... despechado y el más desabrido hombre de todo o universo mundo, porque no sé de qué días a esta parte me fatiga y aprieta un deseo tan extraño y tan fuera del uso común de otros, que yo me maravillo de mi mismo, y me culpo y me riño a solas, y procuro callarlo y encubrillo de mis propios pensamientos, y así me ha sido posible salir con este secreto” (DQ, p. 330)

Esse “despechado” desejo não calou em seu peito. Seu pensamento de que “no es una mujer más buena de cuanto es o no es solicitada, y que aquella sola es fuerte que no se dobla a las promesas, a las dádivas, a las lágrimas y a las continuas importunidades de los solícitos amantes” (DQ, p. 331), acendia-lhe mais as chamas. E tão logo uma agonia se apresentou na vida do personagem, de tal maneira que ele caminhará até um abismo sem volta. Por esse “extraño” desejo fez combinado com Lotário para que se tornasse o instrumento de sedução para alimentar as chamas carnais de sua esposa, submetendo-a a passar “por estas dificultades y se acrisole y quilate en el fuego de verse requerida y solicitada, y de quien tenga valor para poner en ella sus deseos” (DQ, p. 331). Anselmo acreditava que ao sinal do menor fraquejo, o amigo recuaria. Entretanto, ele cego naquela vontade parece ter se esquecido do mistério que aporta o desejo humano, o qual é capaz de vergar o corpo sob o peso ardente e descontrolado de uma vontade.

Ele não pensou os riscos das coisas difíceis e temíveis que enfraquece o homem humano quando se vive tentações da carne. É peculiar à natureza humana fraquejar diante dos desejos. Caminho da satisfação e dos conflitos. Tal sentimento segue um percurso que se dá por duas direções: ao ceder, neste instante único, o homem chega ao ápice do prazer, mas também pode revelar-se numa dor de consciência e culpa. Todavia, não ceder e sufocar o próprio desejo é atravessar uma vida longa sem brilho de aventuras, sem o cheiro apimentado

93 do demônio que é o grande mestre das tentações, em que o desejo pode ser “vuestra merced el mismo diablo” (DQ, p. 246). Eis o conflito do eu com o eu mesmo.

E Camila naturalmente ao ouvir as palavras encandescentes da sedução e ao sentir o toque íntimo do momento de cumplicidade não suportou o calor daquele instante e calou: “... porque si la lengua callaba, el pensamiento discurría...” (DQ, p. 346). A razão silencia diante dos alvoroços mais íntimos, de modo que a partir daí os amantes terão em seus corpos a ardência de suas vontades. A natureza humana expõe o homem a toda espécie de fervilhamento de desejos carnais, vestindo-o com um agasalho de pequena resistência. Ainda nesse pensamento, inscreve-se no romance: “... sólo se vence la pasión amorosa con huilla y que nadie se ha de poner a brazos con tan poderoso enemigo, porque es menester fuerzas divinas para vencer las suyas humanas” (DQ, p. 348).

Assim, as “fuerzas divinas” podem inibir a queda a tais desejos, porque o homem em sua condição humana segue os sentimentos ritmicamente ao compasso descozido da razão estabelecida pela sociedade, pois para o amor “no hay fuerza que le resista” (DQ, p. 353). Ele “unas veces vuela y otras anda” (DQ, p. 353), mas, segundo a narrativa, “no tiene otro mejor ministro para ejecutar lo que desea que es la ocasión: de la ocasión se sirve en todos sus hechos, principalmente en los princípios” (DQ, p. 353). Nessa perspectiva, os acontecimentos se preparam e esperam por algumas circunstâncias viáveis ao seu intento de provocar o reverso do autocontrole do indivíduo.

Nesse conto, as marcas do sofrimento são pintadas num quadro de paisagem melancólica. A morte ocupa a cena da narrativa quando o peso da vida tomou o personagem Anselmo pela “su impertinente curiosidad” (DQ, p. 365). O trecho abaixo revela esse momento:

Viéndose, pues, solo, comenzó a cargar tanto la imaginación de su desventura, que claramente conoció que se le iba acabando la vida, y, así, ordenó de dejar noticia de la causa de su extraña muerte; y comenzando a escribir, antes que acabase de poner todo lo que quería, le faltó el aliento y dejó la vida en las manos del dolor que le causó su curiosidad impertinente (DQ, p. 373)

Não há “aliento” diante da “desventura” e pelas “manos del dolor” sucumbe numa tristeza mortal. Sua atitude fotografa gestos comuns a quem melancolicamente passou a viver: “tendido boca abajo, la mitad del cuerpo en la cama e la otra mitad sobre el bufete” (DQ, p. 373). Inicia-se aí o momento do sono eterno. Nesse instante ímpar de sua melancolia, fugia-

94 lhe a vida e da vida o personagem fugia. A tristeza esgotava a sua existência desvitalizada que já adivinhava o seu fim. Num papel branco fez sua triste confissão, mas não terá tempo de concluir porque antes morre. Assim se lia em sua carta:

Un necio e impertinente deseo me quitó la vida. Si las nuevas de mi muerte llegaren a los oídos de Camila, sepa que yo la perdono, porque no estaba ella obligada a hacer milagros, ni yo tenía necesidad de querer que ella los hiciese; y pues yo fui el fabricador de mi deshonra, no hay para qué... (DQ, p. 373)

A curiosidade foi “el fabricador” de sua história infeliz num modo endiabrado de ser. O “diablo”, segundo a narrativa, parece ter participação na desgraça dos personagens: “Todo se lo llevó el mismo diablo” (DQ, p. 71). Pretensamente pode ter provocado a queda do homem, já que, conforme mostra a narrativa, “como suele decirse que un mal llama a otro y que el fin de una desgracia suele ser principio de otra mayor” (DQ, p. 287), de sorte que em poucos días a vida do personagem caiu nas mãos da tristeza e da melancolia. Ambiente propício ao “corposo sofrimento”, falando como o narrador rosiano, a agonia desse sofrimento foi livrada com a morte, guardando-o em liberdade de o amargo sentir.

Temos, assim, uma narrativa tecida na “desgracia” à beira do caminho dos personagens. Em cada história construída dentro do romance encontramos fios de melancolia. Até mesmo Rocinante marcou sua passagem no quadro de pintura entristecida: “melancólico y triste, con las orejas caídas, sostenía sin moverse a su estirado señor; y como en fin era de carne, aunque parecía de leño, no pudo dejar de resentirse y tornar a oler a quien le llegaba a hacer caricias” (DQ, p. 456), fazendo-se semelhante ao seu amo, de pouco porte, “de leño”, um graveto seco, morto em vida. Porém não abandonava seu dono, sofria junto, e junto prosseguia atravessando pela existência.

Observamos, portanto, que na obra de Quijote há uma inter-relação entre o ser e a melancolia. Podemos vislumbrar em toda obra um feixe de viver secundado pela tristeza, em que seres humanos e animais não escapam desse viver sofrido. Nesse trilhar da dor se expressa um aprendizado tocante as questões mais importantes para a compreensão do mundo, a sua nomeação. Os personagens são chamados pelo nome de sua aflição: o cavaleiro de má aparência é o da “Triste Figura”, de “la Mancha”, don Luís é o “moço de mulas”, Juan Pérez de Viedma, o cativo, dentre outros. O autor está atento à substância do signo que permite nomear de forma criteriosa, segundo a aflição de cada personagem.

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