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A loucura de don Quijote é paulatinamente calculada por ele próprio. O cavaleiro planeja e vive seus projetos de fantasias, guiado por sua vontade de semear um mundo menos injusto, menos feio, formando atitudes pautadas no amor solidário e na justiça.

Ele, entre as montanhas da “Serra Morena”, em meio à natureza, desprende de si toda a “desrazão”, paradoxalmente, instituída num trabalho de pura lucidez. Sua atitude simulada rege-se pelo comportamento do homem de juízo enfraquecido que, continuamente, está a dizer ou a fazer coisas à margem da normalidade estabelecida pela sociedade. Louco e lúcido, don Quijote escolhe esta Serra para dizer-se ao mundo e ao amor de Dulcinea. Ele calculou, milimetricamente, seus atos para chamar a atenção do outro, como se quisesse gritar ao mundo sua presença, marcada por um comportamento desajustado.

No limiar da normalidade, tal atitude do personagem sem dúvida seria uma natural esquisitice. Mas os sentimentos, às vezes, seguem as trilhas de um caminho que parece patético e de difícil compreensão. Don Quijote amou em silêncio até o momento, em que por vontade própria, revela o seu segredo. Sem se desligar de sua fantasia ficcional, investe agora numa outra loucura, a do amante. Despiu-se de si e de suas vestes com alegres cambalhotas, passando a portar-se como um louco de amores. Diz assim a narrativa:

Y desnudándose con toda priesa los calzones, quedó en carnes y en pañales y luego sin más ni más dio dos zapatetas en el aire y dos tumbas la cabeza abajo y los pies en alto, descubriendo cosas que, por no verlas otra vez, volvió Sancho la rienda a Rocinante y se dio por contento y satisfecho de que podía jurar que su amo quedaba loco. (DQ, p. 248)

No entanto, Dulcinea, o seu objeto de desejo, longe estava de corresponder a esse sentimento e distante ainda mais de se transformar na pessoa criada pela fantasiosa imaginação do cavaleiro. Assim, restarão a ele a decepção e uma profunda tristeza, disfarçada em atitudes “desconjuntadas”, afinadas pela melancolia. Sua perda se dá antes mesmo de possuir o objeto amado, cabendo-lhe um grande vazio provocado pela ausência da mulher. Essa perda, como nos lembra Freud, embora seja ela real, não há explicação porque não se sabe, ao certo, o que foi perdido, já que a donzela nunca tinha sido do cavaleiro, a não ser em

77 seu sentimento que o embebia na fantasia. Quijote além da perda da amada que o fez sufocar sua dor nos traços da loucura, também perdeu sua própria identidade ao tentar se encontrar, juntas, elas se fortaleceram o bastante para jogá-lo no caminho da melancolia. O estado de loucura e o delírio a que Quijote chegou, pode ser assim explicada nas palavras de Freud (1969, p. 100):

... a realidade... a única inimiga e a fonte de todo o sofrimento, com a qual é impossível viver, de maneira que, se quisermos ser de algum modo felizes, temos de romper todas as relações com ela. O eremita rejeita o mundo e não quer saber de tratar com ele. Pode-se, porém, fazer mais do que isso; pode-se tentar recriar o mundo, em seu lugar construir um outro mundo, no qual os seus aspectos mais insuportáveis sejam eliminados e substituídos por outros mais adequados a nossos próprios desejos. Mas quem que quer, numa atitude de desafio desesperado, se lance por este caminho em busca da felicidade, geralmente não chega a nada. A realidade é demasiado forte para ele. Torna-se um louco; alguém que, a maioria das vezes, não encontra ninguém para ajudá-lo a tornar real o seu delírio.

Pensando assim, a possibilidade do amor renderia ao cavaleiro a alegria da alma, o bem-estar consigo mesmo na relação com o outro. Quijote tendo o amor, mesmo que em silêncio, fluía o desejo de restaurar sua alma perdida, bem como o desejo de recriar o mundo, na possibilidade de eliminar o seu estado de tristeza insuportável, mas por isso mesmo esse seu novo caminho é um encontrar-se também com o nada (FREUD, 1969).

Isto seria uma fuga regida por uma atitude que desafia, de algum modo, o sofrimento. A dor insuportável coíbe a alegria de chegar à alma, de forma que se faz preciso romper com tudo que tenha, direta ou indiretamente, fios de relação com esse sofrer. Portanto, evadir-se de si mesmo e do mundo é, em primeira instância, caminhar lado a felicidade.

No Segundo Livro do Quijote, embora não analisemos neste estudo, reconhecemos que as perdas se configuram mais intensas, pois quando fracassa numa batalha, tudo no cavaleiro retorna diferente ao seu estado primeiro. Ressurge Alonso Quijano nu de fantasias e de loucuras. A ilusão se desfaz e a realidade dura de sua existência o faz perceber que é um homem vencido pela dor. A derrota lhe possibilita enxergar o mundo a sua volta, ao mesmo tempo em que também lhe diz de sua vida sem sucesso. Tudo transcorre para gerar sua perda maior: a sua própria vida, arrancada pelo seu estado de desânimo extremo, fruto da melancolia. Recordamos aqui o pensamento de Kristeva (1989, p. 46), quando põe a melancolia numa perda de sentido: “se não sou mais capaz de traduzir ou de fazer metáforas, calo-me e morro”. Nesse pensamento, don Quijote ao ser jogado ao chão, desencorajado para a vida, faz relação com essa idéia de que não mais seria, não se multiplicaria em outras tantas

78 imagens significativas à existência humana, por isso, toma a morte como o atalho de sua agonia.

Mas foi a “Serra Morena” o espaço reservado ao desencontro do eu de Quijote com ele mesmo. A loucura o arrastou a viver isolado, refugiado na sua própria solidão, fazendo de sua alma uma morada de tristeza profunda, um abismo existencial. No entanto, como tudo nele é matéria contraditória, tudo isso lhe vai propiciando, por um lado, em triste vazio e amarga solidão e, por outro, uma leve alegria que se agarra à esperança do sucesso em seus propósitos. A loucura do cavaleiro toma duas direções: primeiramente, teríamos uma loucura planejada e voluntária, arranjada de acordo com a sua vontade, como é o caso em que se porta como um louco de amores por Dulcinea, de maneira que o sofrimento tem um objetivo claro que é a sua fama e glória; depois, observamos que as suas leituras tornaram-se a fonte de sua vida, por ela paira o seu viver, sendo um louco que em sua pequena estadia entre as montanhas seguiu os moldes dos cavaleiros da ficção. É uma espécie de loucura salvadora por revestir o fidalgo de ânimo para lutar contra um viver sem chão firme. Nesse caso, o homem Alonso Quijano esconde-se nestas vestes de um mundo ficcional, alheio a sua realidade que lhe traz dor ao tornar-se don Quijote, alegre e melancólico e, por isso mesmo, ambíguo no transcorrer de sua vida.

Do mesmo modo que o cavaleiro, outros personagens procuraram o regaço da “Serra Morena”, vendo nela um lugar propício ao refúgio da alma cansada. Diferentemente de don Quijote, Cardenio e Dorotea acreditavam que na natureza teriam o aconchego perfeito para ficarem sozinhos e longe de tudo que um dia foram. A decepção surge na vida destes personagens desarrumando suas vidas, de maneira tal que eles fugiram deles mesmos e passaram a negar-se e anular-se diante do mundo e da sua própria existência.

O personagem Cardenio é levado a gemer de dor pelo simples pronunciar da tão pequenina palavra “sim”, e ao mesmo tempo tão pesada para sua alma. Esta destrói os sonhos do personagem enamorado porque teve consumada a perda do objeto amado. Sua tristeza o silencia do mundo, passando agora a ser outro, num outro lugar. Em um caminho novo de aspecto turvo e perigoso, o personagem segue a partir daí. Sofrimentos se levantam em sua nova jornada como uma pedra de tropeço para movê-lo ao desânimo. Cardenio terá embaçado seu percurso pelo cérebro inquieto a não pensar racionalmente ou até mesmo a não refletir, mas a agir por impulso. É, então, pela impossibilidade de suportar a dor que o seu desespero o

79 faz desistir de seus sonhos e de sua vida. A esse respeito, é elucidativo mais uma vez o pensamento de Júlia Kristeva (Grifo nosso, 1989, p. 11):

O golpe que acabo de sofrer, essa derrota sentimental ou profissional, essa dificuldade ou esse luto que afetam minhas relações com meus próximos são em geral o gatilho, facilmente localizável, do meu desespero.

Serra Morena é o exílio. Longe do próprio convívio e esvaziado de lucidez, Cardenio personagem arrasta-se no desespero de sua escolha de viver em meio à natureza. Diz a narrativa que entre um momento e outro tem o juízo falho, pois a decepção amorosa que sofreu não era o que havia desejado para si (FREUD, 1969). Cardenio tomou o caminho da fuga quando seus ânimos foram enfraquecidos pela dor da perda. Por isso, vendo-se incapaz de suportar esse viver dorido, nega-se dele mesmo e do mundo. Seria um outro que estaria a perambular, como ele mesmo diz, “en el campo solo, y que la escuridad de la noche me encubría y su silencio convidaba a quejarme, sin respeto o miedo de ser escuchado ni conocido, solte la voz y desate la lengua...” (DQ, p. 271), sendo um momento único de desabafo de sua existência dorida.

Dorotea, “una de las más regaladas hijas que padres jamás regalaron” (DQ, p. 278), também dividiu o espaço da Serra Morena. Era o “báculo” da velhice de seu pai. Porém, nem o amor paterno e nem a riqueza lhe eram suficientes para evitar o naufrágio numa monotonia que muito diz de quem vive, lento, ao ritmo da melancolia. Nessa direção, consideremos o que diz a narrativa:

Los ratos que del día me quedaban después de haber dado lo que convenía a los mayorales, a capataces y a otros jornaleros, los entretenía en ejercicios que son a las doncellas tan lícitos como necesarios, como son los que ofrece la aguja y la almohadilla, y la rueca muchas veces; y si algun, por recrear el ánimo, estos ejercicios dejaba, me acogía al entretenimiento de leer algún libro devoto, o a tocar uma harpa, porque la experiencia me mostraba que la musica compone los ánimos descompuestos y alivia los trabajos que nacen del espíritu (DQ, p. 278-79)

Sua vida sucumbe em “ánimos descompuestos” porque não havia outra coisa a fazer, senão repetir todos os dias as horas já vividas. Como pessoa enclausurada pelas ocupações do trabalho seguia seu viver, de maneira que por ele seu “espíritu” desencorajado de alegria denegava o peso da existência. Ao contrário de don Quijote, Dorotea procura ocupar seu tempo e sua mente nos afazeres da família, descartando a ociosidade em seu caminho, pois

80 parecia saber que tal experiência a levaria a um poço sem fundo. Como se vivesse em um “monasterio... sin ser vista, a mi parecer, de otra persona alguna que de los criados de casa” (DQ, p. 279) buscou o silêncio do ser melancólico, isolando-se numa intensa solidão. Assim, ela parecia nada aspirar para si. O que se revela é uma travessia desvitalizada de sonhos e prazeres, desprovida, portanto, do encanto que se vê nas vontades do homem.

Os seus olhos tornaram-se a janela de seus sonhos, os quais lhe permitirão passar pelas agonias do desprezo e da solidão. Por eles encontrará “los del amor” (DQ, p. 279) que “me vieron” (DQ, p. 387), dirá Dorotea, “don Fernando, que este es el nombre” (DQ, p. 387) de sua ilusão. Ela foi cativa de um amor construído nas ciladas da mentira, numa habilidade audaciosa que, aparentemente, se expressou verdadeiro nos sentimentos do falso amante, como ela própria descreve:

... luego se llegó a mí y, tomándome entre sus brazos (porque yo, como digo, no tuve fuerzas para defenderme, según estaba turbada), comenzó a decirme tales razones, que no sé cómo es posible que tenga tanta habilidad la mentira, que las sepa componer de modo que parezcan tan verdaderas. Hacía el traidor que sus lágrimas acreditasen sus palabras, y los suspiros su intención (DQ, p. 281)

Dorotea diverge dos demais hóspedes da “Serra Morena” por ser sempre lúcida, porém traz semelhanças na troca de identidade. Diríamos que ela, assim como outros personagens do romance em estudo, apresenta-se com identidade móvel, portanto, mutável. Ela, em vestes masculinas, oculta a face natural de fêmea. É, pois, fugitiva de todos e de si própria. Temos, dessa forma, a paisagem de um sofrimento causado pela impossibilidade de enfrentar a realidade, posto que esta seja indesejada. Ao deixar-se amar nos braços do voraz desejo daquele homem e este não mais voltar a querê-la, gera um vazio e uma tristeza que lhe inquieta a alma a ir à busca de seu objeto de desejo.

Nessa busca, a donzela descobre os seus sonhos desfeitos, conhece a dor amarga da perda. As mentiras de don Fernando provocaram o desengano e a decepção. Restou a Dorotea sucumbir sua beleza na tristeza. Tudo girou desenfreadamente para que fugisse de si mesma e de todos. O desespero a acompanha até as correntezas do abandono dela mesma. Tudo se faz diferente do que até então tinha vivido. Ela passa a lutar sozinha por sua própria sobrevivência como homem e, a mulher ficará aprisionada na dor. A melancolia é expressa em sua alma todo o tempo que se escondeu em meio à natureza, disfarçada, “al cual he servido de zagal... procurando estar siempre en el campo por encubrir estos cabellos” (DQ, p.

81 288), sendo uma estrangeira dentro de si mesma, aventurando-se numa travessia solitária e sem sentido, já que tinha calado os seus desejos e perdido a esperança de um dia os sonhos desfeitos virem a si concretizar. Aí terá duas grandes inimigas: sua beleza e sua fragilidade de mulher. Por isso, camuflar-se no gênero masculino, possivelmente evitaria a cobiça e o desejo sexual dos homens sobre si, além de não precisar contrariar as idéias de uma sociedade machista.

Constatamos que a fuga de si própria é a porta de escape para o seu sofrimento. Todavia, tal atitude provocará a anulação de si mesmo, sinalizando a existência de um eu que não mais se encontra, mas constantemente estará desencontrando-se e, por sua vez, novas identidades estarão sendo assumidas, de sorte que a roda da vida persiste numa desprogressividade, o retornar é a força motriz. Entretanto, não há como fugir de si mesmo a vida inteira. Por isso, a mulher vem ser totalmente despida de seu segredo quando descoberta pelo barbeiro, o padre e Cardenio. Não pôde mais calar a sua verdade porque, segundo a narrativa, “lo que vuestro traje, señora, nos niega, vuestros cabellos nos descubren” (DQ, p. 276). Ainda com relação a esse pensamento identitário, diz o trecho ao lado: “no deben de ser de poco momento las causas que han disfrazado vuestra belleza en hábito tan indigno, y traídola a tanta soledad como es ésta... “ (DQ, p. 276), caracterizando, pois, a imensidão da dor ao contrariar a lei da natureza: “señora” ou “señor”, eis aí a dúvida que se reflete num viver melancólico dessa “disfrazada moza”. O romance cervantino traz a discussão da condição do homem diante dos obstáculos da vida, como dirá o fragmento seguinte:

...señora mía, o señor mío, o lo que vos quisierdes ser, perded el sobresalto que nuestra vista os ha causado y contadnos vuestra buena o mala suerte, que en nosotros juntos, o en cada uno, hallaréis quien os ayude a sentir vuestras desgracias (DQ, p. 277)

Cervantes traçou o destino de seus personagens numa proliferação de situações regidas pela mera coincidência. Observamos que na Serra Morena o enlouquecido Cardenio tem a oportunidade de receber refrigério para sua alma sem alegria. Como num estilhaçar de correntes sente sua vida libertar-se dos muros da prisão da amargura, quando Dorotea afrouxa a língua num grande desabafo de sua dor. Só então compreenderá o engano que tomou como verdade, pois o diálogo da moça explicará o que o rapaz não teve coragem de esperar ouvir. Estes dois personagens são semelhantes na fuga e na decepção amorosa, além de conhecerem

82 o responsável pela desventura do outro. Ambos tiveram sua dor sufocada numa profunda tristeza melancólica, devido à perda do objeto desejado.

Dorotea além da identidade masculina, também foi a princesa Micomicona, numa farsa que teve a intenção de resgatar o cavaleiro a sua razão. Assim como o cavaleiro, a moça também era leitora de obras cavalheirescas, fato este que possibilitou a realização de uma dissimulação que tinha como objetivo o retorno do Cavaleiro da Triste Figura até o seu lar: “Lo que yo sé decir, señora mía, que, ora tenga valor o no, el que tuviere o no tuviere se ha de emplear en vuestro servicio, hasta perder la vida” (DQ, p. 299).

É interessante aqui ponderar a camuflagem de Dorotea. Pensamos que perdeu completamente sua própria identidade, sempre a renomear a si, é uma estrangeira em si mesma (KRISTEVA, 1994). Sendo assim, é possível perguntarmos de quem finalmente seria aquele corpo e aquela vida insignificante. Nesse sentido, é fundamental vencer a amarga dor que, continuamente, leva o homem a negação de si próprio, a distanciar-se cada vez mais de quem realmente é, para que assim sua única face se encontre. Portanto, o personagem não se deixa apreender pela firmeza de uma identidade una e fixa, mas pela presença incerta de quem só se apresenta pela simulação, na encenação de um eu plural e contraditório.