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2.1 Histórico da regulamentação multilateral dos subsídios no âmbito do GATT

2.1.2 A emenda de 1955

A primeira alteração feita na redação original do GATT 1947 quanto à regulamentação de subsídios ocorreu em 1955, por meio de emenda aprovada na sessão de revisão85. A sessão ocorreu em Genebra, paralelamente à quarta rodada de negociações, que aconteceu na mesma cidade, embora esta última viesse a estender-se até 1956 e tivesse foco na questão tarifária, assim como as rodadas imediatamente anteriores de Annecy e Torquay (HOECKMAN & KOSTECKI, 2001, p. 39). A emenda resultou em acréscimo substancial à redação do artigo XVI: quatro parágrafos foram adicionados à seção que passou a se denominar “B”, enquanto o dispositivo original foi reservado à seção “A” (JACKSON, 2000, p. 285-6).

O parágrafo 2º do artigo XVI passou a registrar o reconhecimento das Partes Contratantes de que subsídios à exportação podem trazer efeitos danosos a outras Partes, sejam elas importadoras ou exportadoras, e que distorções por eles causadas poderiam dificultar o cumprimento dos objetivos do GATT. Chama a atenção, neste ponto, o enfoque

84 Tradução livre. No original: “... including any form of income or price support...”

85 “During the early 1950s the GATT CPs [Contracting Parties] decided it would be necessary to review and

amend the GATT, so as to prepare it for its developing role as the central international institution for trade. The CPs’ ninth regular session, scheduled for 1954-1955, was designated as a ‘review session’” (JACKSON, 2000, p. 42).

dos subsídios à exportação (TREBILCOCK; HOWSE, 1999, p. 192): não há qualquer menção de que subsídios voltados à produção para o mercado interno – os chamados subsídios domésticos (JACKSON, 2001, p. 286) – possam gerar danos a outras Partes. A novidade neste parágrafo reside na introdução da primeira condenação normativa dos subsídios, mesmo que, por si só, o dispositivo não tenha chegado a significar proibição propriamente dita. Deve-se recordar, aqui, que a regulamentação de 1947 havia estabelecido o dever de notificar e consultar, além de autorizar o uso de medidas compensatórias, sem ter proibido, no entanto, qualquer forma de subsídio, ou mesmo declarado incompatibilidade dos subsídios com o livre-comércio ou os objetivos do GATT. A análise de Marcelo Böhlke sobre esse parágrafo destaca, como ponto positivo, o alinhamento da posição das Partes Contratantes quanto à incompatibilidade dos subsídios com os propósitos do GATT, que viria a ganhar força nas negociações seguintes, mas enfatiza, como aspecto negativo, a “pouca aplicabilidade prática” da declaração de incompatibilidade nele contida (BÖHLKE, 2002, p. 219).

A emenda de 1955 introduziu a distinção entre produtos primários e não- primários na regulamentação de subsídios (BARRAL, 1998, p. 373; JACKSON, 2001, p. 286). Para produtos primários – matérias primas e produtos agropecuários –, o parágrafo 3º estabeleceu que as Partes Contratantes deveriam “procurar evitar” o uso de subsídios à exportação. Deve-se observar que a linguagem não implica proibição: seu caráter é recomendatório (JACKSON, 2001, p. 286). Michael Trebilcock e Robert Howse classificaram o dispositivo como “relativamente fraco”86 (TREBILCOCK; HOWSE, 1999, p. 192). O parágrafo apresenta, no entanto, mudança de linguagem em sua segunda parte, que estabelece proibição de que subsídios à exportação de produtos primários sejam utilizados de modo a resultar em “parcela mais que eqüitativa das exportações mundiais daquele produto”87 (GATT 1947, Artigo XVI, §3). Não houve definição do que a expressão parcela mais que eqüitativa significaria (CHEREM, 2002, p. 109-10). A imprecisão da linguagem adotada no dispositivo tornou-o problemático (JACKSON, 2001, p. 286). Afinal, a proibição estabelecida na segunda parte do parágrafo 3º foi anulada, em termos operacionais, pela vagueza do critério definido como limite além do qual esta proibição seria aplicável.

Já quanto a produtos não-primários – industrializados –, o parágrafo 4º estabeleceu que as Partes Contratantes “devem cessar a concessão, seja direta ou indireta, de

86 No original: “relatively weak”.

qualquer forma de subsídio à exportação”88 (GATT 1947, Artigo XVI, § 4º). A proibição a subsídios a produtos industrializados não era, contudo, genérica. Sua aplicação foi limitada a casos em que a existência de subsídio resultasse em preço menor para exportação do produto que o praticado no mercado interno. Configurou-se, assim, o teste do “binivelamento de preços”89 (JACKSON, 2000, p. 286) como critério para incidência da proibição de subsídios. Esse critério tinha por essência a relatividade, porque seu mecanismo principal era a comparação de preços do produto: de um lado, o preço praticado no mercado externo após incidência do subsídio à exportação; de outro, o preço praticado no mercado interno para produtos semelhantes. Se o resultado da comparação indicasse que a aplicação do subsídio fizesse com que o preço para exportação fosse menor que para venda interna, o subsídio a produto não-primário seria proibido. Caso contrário, a proibição não incidiria.

Aspecto relevante contido no parágrafo 4º do artigo XVI foi a limitação temporal de aplicabilidade. Criou-se, em 1955, reserva no sentido de que a proibição supramencionada ganharia aplicabilidade somente em 1958, ou a partir da “mais próxima data subseqüente praticável” (GATT 1947, artigo XVI, §4º). Em nota lançada ao parágrafo, as Partes Contratantes esclareciam o sentido da reserva:

A intenção do parágrafo 4º é que as partes contratantes devem buscar, antes do fim de 1957, alcançar acordo para abolir todos subsídios remanescentes em 1 de janeiro de 1958; ou, falhando isso, alcançar acordo para estender a aplicação da reserva temporal até a data subseqüente mais próxima em que elas esperem alcançar tal acordo.90 (GATT 1947, ad artigo XVI, § 4)

A conseqüência prática do dispositivo de reserva temporal, segundo John Jackson, foi a adoção anual pelas Partes Contratantes de declarações de inaplicabilidade da proibição, ou standstill declarations, até 1962, quando se confeccionou declaração para finalmente tornar o parágrafo 4º aplicável. No entanto, a declaração estava sujeita à assinatura das Partes (JACKSON, 2000, p. 286). Nesse ponto, de acordo com Michael Trebilcock e Robert Howse, o “tratamento diferenciado de produtos primários e não-primários foi interpretado pelos países em desenvolvimento como discriminação contra seu comércio” (TREBILCOCK; HOWSE, 1999, p. 192). A conseqüência disso, pelo relato de John Jackson, foi que “nem todos os

88

No original: “shall cease to grant either directly or indirectly any form of subsidy on the export [...]”.

89 No original: “´bilevel pricing´ test”.

90 No original: “The intention of paragraph 4 is that the contracting parties should seek before the end of 1957

to reach agreement to abolish all remaining subsidies as from 1 January 1958; or, failing this, to reach agreement to extend the application of the standstill until the earliest date thereafter by which they can expect to reach such agreement.”

países estavam preparados para adotar a declaração que implementava o parágrafo 4º do Artigo XVI.”91 (JACKSON, 2000, p. 286)

Com a emenda de 1955, começavam a refletir-se em termos práticos as diferenças entre países desenvolvidos e em desenvolvimento quanto à regulamentação multilateral de subsídios. A partir desse ponto, o tema seria motivo de controvérsia intensificada, que viria a aguçar a dificuldade de acordo nas negociações para sua regulamentação. O ressentimento dos países em desenvolvimento estava focalizado no double standard criado em 1955: dois pesos, duas medidas. Afinal, interpretada em termos gerais, a emenda “[p]roibiu subsídios à exportação de produtos manufaturados e permitiu subsídios à exportação de matérias-primas.” (CHEREM, 2002, p. 109)

Nesse sentido, Celso Lafer afirma que:

Um exame do funcionamento do GATT mostra que as negociações se faziam, e se fazem, favorecendo os países industrializados, grandes produtores e grandes consumidores dos itens transacionados no GATT. Delas não se beneficiavam os países subdesenvolvidos que, por não serem nem grandes produtores nem grandes consumidores destes itens negociados no esquema multilateral do GATT, não tinham, e não têm, locus standi nas negociações, situação que os condenava, por falta de poder de barganha, à periferia institucional deste modelo, onde não tinham condições reais para modificar a realidade da bissegmentação. (LAFER, 1977, p. 42- 3)

Refletindo esse cenário de desbalanceamento no poder de negociação entre os países, a regulamentação resultante da emenda de 1955 pode ser interpretada como desfavorável a países com vantagens absolutas em produtos primários: que tendem a ser os países em desenvolvimento.