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3 CAPÍTULO 2 ELAS E ELAS: A SEXUALIDADE EM

3.1 A EMERGÊNCIA DE DISCURSOS E PRÁTICAS

Quando iniciada a pesquisa no Presídio Regional de Joinville, no ano de 2013, cheguei ao campo com muitas questões. No entanto, não sabia se encontraria mulheres dispostas a falar sobre suas experiências, assim como não sabia como a instituição lidava com a questão da homossexualidade. Desta forma, a pesquisa teve início com conversas informais com profissionais que trabalhavam na instituição, bem como vendo a disponibilidade de outras fontes que pudessem oferecer informações, como o Livro de Ocorrências que trazia registros diários da Ala Feminina desde o ano de 2003.

Nestes primeiros contatos, a psicóloga do presídio me falou sobre a existência de alguns relacionamentos assumidos, mulheres que recebiam visitas conjugais de suas companheiras e que possuíam papéis de união estável oficializada. Além daquelas que traziam marcadores como cabelos curtos, roupas, assessórios e comportamentos masculinizados que indicavam sua sexualidade. Estas últimas eram os “paizinhos”, denominação específica do presídio de Joinville43, que, pelo que tudo indicava, tratava-se de uma expressão que surgiu no ambiente prisional para denominar as mulheres que se relacionam afetivamente e sexualmente com outras mulheres e possuem características consideradas masculinizadas. Foi perceptível, pelas indicações, que existiam vários casos de relacionamentos entre mulheres e que a instituição parecia aceitar, tendo em vista a realização de visitas conjugais e a oficialização e aceitação de papéis de uniões estáveis.

Ao realizar as entrevistas constatei, através das narrativas, que minhas impressões sobre a ala se confirmavam. A Ala Feminina do PRJ se revelava um ambiente tolerante para que mulheres tivessem as mais diferentes experiências afetivas e/ou sexuais com outras mulheres. Uma das entrevistadas, demonstrando senso de humor, afirmou que “se você entra lésbica, você sai mais lésbica do que nunca, né? E se você entra

43 Digo isso tendo em vista o levantamento bibliográfico que realizei. Dentre as pesquisas que

revelam categorias nativas de mulheres que se relacionam com mulheres nos presídios encontrei das mais variadas como: sapatões, caminhão, sapatilha, roçadeira, heterossexuais limpas e sujas, entre outros. Destes, destaco as identificações de “sapatões” e “caminhão” atribuídas às mulheres masculinizadas que se relacionavam com outras mulheres. Em Joinville estas são identificadas como “paizinhos”. Sobre esta questão explorarei melhor no terceiro capítulo.

hetero, pelo menos bissexual você vai sair daqui de dentro... [risos]” (A.N.S.F.O., 2013). Ou seja, a Ala Feminina do PRJ parecia ser um ambiente de possibilidades para que mulheres vivenciassem sua sexualidade, e mais, parecia que poucas mulheres passavam pelo presídio imunes à experiência de se relacionar com outras mulheres.

Segundo as entrevistadas, algumas mulheres apenas “ficavam” com outras mulheres para experimentar, já outras namoravam e casavam com suas companheiras. O casamento em alguns casos consistia em troca de alianças e solicitação para viverem na mesma cela, enquanto outras oficializavam a união através de documentos que comprovavam a união estável. No terceiro capítulo estas experiências foram abordadas mais detalhadamente, mas no momento gostaria de me ater ao fato destas mulheres terem estes direitos garantidos e respeitados na Ala Feminina.

Iniciada a pesquisa documental um pouco antes de realizadas as entrevistas, constatei que nem sempre esta tinha sido a realidade na instituição. Os Livros de Ocorrência, com registros entre os anos de 2003 a 2010, apontavam para alguns momentos da história da ala onde houve perseguição e repressão às mulheres que se relacionaram afetivamente e/ou sexualmente com outras mulheres. Estes relacionamentos, por muito tempo, tiveram que ser mantidos na clandestinidade para que não fossem repreendidos, fato que se contrastava com a realidade que encontrei em 2013. Buscou-se, então assim, apontar transformações ocorridas ao longo destes anos que resultaram nestas transformações.

Primeiramente, é preciso entender que o limiar entre o “dentro” e “fora” do presídio é tênue. Estas mulheres presas não estavam alienadas aos discursos recorrentes na mídia, as transformações no campo jurídico ou as discussões de movimentos sociais em prol de direitos. Historicamente, o cárcere foi concebido como uma sociedade à parte, na qual as pessoas que não estivessem aptas a viverem com as demais deveriam ser isoladas. No entanto, trata-se de uma mesma sociedade. O presídio e as pessoas que lá vivem mantêm, de alguma forma, a comunicação com o ambiente externo, fazem parte do mesmo momento histórico e partilham de acontecimentos.

Como quando as mulheres entrevistadas acionavam e partilhavam, durante as entrevistas, notícias que haviam assistido na televisão sobre a temática LGBT, como o exemplo abaixo:

A gente tava escutando Faustão domingo e ele falou, ‘se você não aceita, né? Então se cala’. [...]

A menina tava no Faustão no sábado... domingo, a Thammy [...]. Ela falou bastante sobre a transformação que ela teve. A mãe dela ta fora do Brasil também né? E tava falando sobre o preconceito que ela sentiu, na verdade né? Perante a sociedade. Que hoje ainda, hoje, na época que nós estamos hoje, ainda existe um preconceito sem limite né? Não adianta a gente falar que existe as lei agora e parou o preconceito que isso... [pensa] é tampar, na verdade é tampar o sol com a peneira (O.S.G, 2013).

O exemplo se referia ao programa “Domingão do Faustão” apresentado por Fausto Silva, que no domingo do dia 15 de abril de 2013 trouxe ao palco no quadro “Eu acho” a atriz Thammy Miranda, mais conhecida como Thammy Gretchen44. Na ocasião, não havia assistido o programa, mas as redes sociais traziam algumas informações sobre a participação de Thammy. Esta já havia participado de outros programas de televisão e falado sobre sua sexualidade, mas a questão era que desta vez ela havia discutido o tema em um tradicional programa da televisão brasileira, exibido todos os domingos à tarde. A abordagem, em rede nacional, fez com que muitas pessoas tivessem acesso àquela informação, como foi o caso da entrevistada. Acionar esta figura pública homossexual e sua fala em um programa tradicional da televisão brasileira foi o respaldo que a entrevistada encontrou para falar sobre a sua realidade.

Para Tania Navarro-Swain,

O mundo em que vivemos é construído de imagens, não apenas as visíveis, mas igualmente as representacionais carregadas de valores, de hierarquias, de posições, de normas nas quais a vida individual se desloca, decodificando, analisando e adequando-se, com maior ou menor pertinência, aos perfis preestabelecidos. (NAVARRO-SWAIN, 2004, p. 69).

44 Thammy ficou conhecida por ser filha de Gretchen e se apresentar integrando o grupo de

bailarinas/os da cantora. Ganhou grande destaque da mídia ao se assumir homossexual e se apresentar com características estéticas masculinizadas, diferente de como se apresentava no inicio de sua carreira. Atuou na novela “Salve Jorge” da Rede Globo, exibida entre os anos 2012 e 2013, onde ganhou maior destaque com sua atuação.

Em nossa sociedade ocidental, há modelos preestabelecidos de como as pessoas devem ser e agir, indicados através de imagens concretas ou subjetivas. Para aqueles/as que não se encaixam dentro de um padrão de gênero binário, ocidental, branco, classe média, heterossexual, não portador de deficiência e magro, por exemplo, é destinado o fardo de tentar se adequar ou viver na clandestinidade da norma. A pouca visibilidade para aqueles modelos que não se encaixam na norma dificulta com que as pessoas construam outros referenciais de identificação.

A escritora feminista Teresa de Lauretis defende a ideia de que o cinema e a literatura, por exemplo, contribuem para perpetuar as diferenças estereotipadas impostas para diferenciar masculino e feminino. O que vai ser chamado por ela de “tecnologia de reprodução do gênero” (LAURETIS, 1987). Nesse sentido, há tecnologias de reprodução de modelos de ser e agir que resultam em normas. Quando outros modelos ganham visibilidade, há a possibilidade de construção de outras tecnologias e consequentemente a identificação com estas. Como foi o caso da entrevistada que encontrou respaldo para falar de si e da questão LGBT através de uma figura pública como a de Thammy.

A partir do momento em que se cria identificação, há a possibilidade de posicionamento coletivo, de visibilidade e de luta por reconhecimento. Ao partir da premissa de que o reconhecimento em um Estado de Direito é alcançado através da legislação, é necessário que se aprovem leis que ofereçam estas garantias. Destaco a importância do movimento LGBT e as lutas travadas diariamente para que sujeitos/as sejam reconhecidos.

Ao longo dos anos 2000 aconteceram debates significativos do movimento que repercutiram com maior visibilidade nos meios de comunicação. O doutorando em ciências humanas Maurício Pereira Gomes, em dissertação de mestrado defendida no PPGH da UFSC, identificou os anos de 2010 e 2011 como um momento de “explosão de discursos” sobre a temática LGBT, com destaque para as discussões sobre os debates em torno do projeto de lei que pretendia criminalizar a homofobia (GOMES, 2014).

Neste período, também ocorreu a aprovação de decisões históricas com destaque para o ano de 2011 quando houve o reconhecimento do Supremo Tribunal Federal à união estável entre pessoas homossexuais e a publicação da Resolução n. 4 de 29 de junho de 2011 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária -

CNPCP, que especificava o direito a visitas íntimas para casais do mesmo sexo45.

Segundo o doutor em Ciências Humanas Felipe Bruno Martins Fernandes, os pesquisadores sobre a questão LGBT vão atribuir estas transformações ocorridas ao longo dos anos 2000 ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011), no entanto o autor enfatiza que estas foram consequência do papel ativo dos movimentos sociais (FERNANDES, 2011).

A atuação destes movimentos repercutiu em uma maior visibilidade para a questão LGBT, assim como em aprovação de leis que ofereceram garantias para estes/as sujeitos/as interferindo em todo o cenário nacional. Até mesmo nas cidades mais provincianas e conservadoras como é o caso de Joinville, que no ano de 2008 vai contar com a fundação da “Arco-Íris: Associação LGBT de Joinville”46.

A fundação destes grupos na cidade vai contribuir para as articulações que resultaram na realização, no ano de 2009, da primeira semana da diversidade e parada LGBT de Joinville, intitulada “Direitos seus, direitos meus = direitos humanos”. No ano de 2010 houve a segunda edição, com o título “Famílias somos todos”47.

Estes eventos possibilitaram que houvesse uma semana aberta para discussões com a comunidade sobre diferentes questões ligadas ao movimento como os direitos e a questão da família. Diferentes atividades eram propostas durante a semana com destaque para mesas redondas e debates com convidados ligados à academia e à militância. O evento recebeu apoio da Fundação Cultural da cidade e teve cobertura pela mídia local, fato que auxiliou na difusão do evento. Esta difusão foi extremamente positiva, tendo em vista que durante este período a temática LGBT esteve em questão na cidade. Isso não quer dizer que houve aceitação e que as pessoas concordaram, apoiaram ou participaram em massa do evento, mas houve a abertura para o debate na cidade.

45 Esta resolução traz a especificação em seus artigos para uniões homoafetivas – união de

casais do mesmo sexo. Anterior a esta, as visitas ficavam a critério da avaliação dos juízes que poderiam interpretar a antiga Resolução nº 01/99 de 30 de março de 1999, que garantia visita

íntima para homens e mulheres. Disponível em:

http://atualidadesdodireito.com.br/jorgecesarassis/2012/04/10/novas-consideracoes-sobre-o- direito-a-visita-intima-na-justica-militar/. Acesso em: 26/08/2013.

46 Mais informações sobre a Associação e as Semanas da Diversidade na cidade disponível em:

http://arcoirislgbt.blogspot.com.br/. Acesso: 19/07/2013.

47 Sobre a segunda Semana da Diversidade disponível em:

http://centraldenoticiasgays.blogspot.com.br/2010/07/2-semana-da-diversidade-de-joinville- sc.html. Acesso em 19/07/2013.

É desta forma que o movimento alcança brechas para se infiltrar nas famílias, no Estado, nas instituições e alcançar direitos. Que seja apenas o direito de falar sobre, mas este já implica em uma série de transformações do cotidiano, como a “abertura de espaço” na Ala Feminina do PRJ apontada pela entrevistada:

Temos que agradecer, vocês né? Que vem pra estar abrindo esse espaço, não é? Que eu, como eu tô desde 2005 aqui, né? Uma grande diferença! Uma transformação assim de 100% do que acontecia antes aqui. [...] Nem poderia estar falando. Na verdade se fosse naquela época nem sei se você seria recebida, na verdade. Tirar as detentas pra conversar sobre isso! (O.S.G, 2013).

Em sua narrativa, a entrevistada refere-se a “abertura de espaço” como um movimento vindo de fora para dentro da instituição. Quando cita “vocês” referencia-se ao meu papel enquanto acadêmica, inserida na instituição para falar sobre a temática, mas acredito que cita “vocês” no plural por ter acompanhado, durante estes anos, a interferência e os reflexos de instituições como o CDH e o CCJ. Entre outras influências dos movimentos sociais e a própria academia com suas discussões que alcançaram transformações no campo jurídico, por exemplo, trazendo garantias para estas mulheres se exporem e vivenciarem sua sexualidade.

A aprovação da união estável e a resolução que garantia que casais do mesmo sexo recebessem visitas conjugais no presídio fez com que as instituições prisionais tivessem que se adequar e respeitar estes direitos. Este passou a ser um trunfo para as mulheres do presídio que possuíam relacionamentos homoafetivos, como enfatiza a entrevistada:

Essa coisa mais aberta, na verdade, facilitou bastante o respeito, com os próprios funcionários. Que agora a gente pode procurar nossos direitos, né?[...] Isso mudou, na verdade, a lei mudou, né? Na verdade, a lei mudou. Que eles sabem que se a gente sofrer, esse tipo de... tipo assim, eu tô com a V., e chegam, algemam e diz: 'você vai pro castigo, você vai pro castigo'. Então a gente tem uma defesa, né? Vem um advogado, não é falar mal, a gente sofreu um grande preconceito, né? Além de separarem a gente, a gente foi de castigo

por isso. A gente tem agora, um escudo. (O.S.G, 2013).

Ao falar sobre o “escudo” que as mulheres que se relacionam afetivamente e/ou sexualmente com outras mulheres no presídio tinham no presente faz uma comparação com o que ocorria anterior à regulamentação das leis na instituição. Relembra:

Antigamente era bem difícil. A gente ia pro castigo, se descobrissem que tava com as mulher. Acabavam indo pro castigo. Eu tô feliz, assim, tô feliz também pelo tipo de comportamento dos funcionários, que agora, né? Como eu puxei cadeia desde 2005, não é? 2005, 2006, era nunca que a gente ia estar aqui fazendo o que nós estamos fazendo agora. Falando sobre isso. [...] Tinha castigo. Uma ia pra um X, né? A outra ia pra outro. Ou primeiro ia pro castigo, e depois voltavam e se separavam. Fora de cogitação de ficar juntos (O.S.G, 2013).

A realidade que encontrei no presídio, composta pela aceitação por parte da instituição, dos funcionários e a liberdade com que mulheres se relacionavam e falavam abertamente sobre seus relacionamentos e experiências com outras mulheres parecia ter sido o resultado de disputas travadas ao longo dos anos. Disputas ocorridas dentro e fora da instituição que resultaram na emergência destas práticas e sua aceitação. Segundo Michel Foucault, a emergência de discursos é o resultado de disputas (FOUCAULT, 1996).

A primeira década dos anos 2000, como discutido anteriormente, foi um período marcado por transformações significativas para a questão LGBT, fato que resultou em mudanças na Ala Feminina do PRJ e na vida das mulheres detidas nesta instituição. Ao compreender que estas transformações foram marcadas por disputas, recorri às análises dos Livros de Ocorrência da instituição no sentido de entender como os conflitos que oportunizaram as mudanças. Estes documentos institucionais se revelaram importantes fontes para a presente pesquisa, não somente para entender os discursos sobre homossexualidade na instituição, mas como o presídio lidou, ao longo dos anos, com a questão de gênero e sexualidades.

3.2 RELAÇÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADES EM REGISTROS

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