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Emergência e expansão do terceiro setor no Brasil

3.1 Origem e antecedentes históricos

3.1.1 Emergência e expansão do terceiro setor no Brasil

De acordo com a análise de Denise Gros (2001), no universo heterogêneo e complexo das organizações empresariais brasileiras das últimas décadas, identificam-se aquelas voltadas para a defesa de interesses econômicos ou corporativos e outras dedicadas à defesa de interesses políticos. Nesse espectro, os Institutos Liberais, criados por empresários em 1983, e mantidos por alguns dos maiores grupos econômicos nacionais e estrangeiros em operação no Brasil, funcionariam como centros de difusão ideológica do neoliberalismo, buscando transformar os conceitos de livre mercado em “pensamento único”:

Diferentemente das organizações corporativas, que negociam diretamente com o Estado os interesses da burguesia, ou das associações setoriais, que defendem interesses econômicos específicos de setores industriais ou financeiros frente ao Estado, os Institutos Liberais se constituem como entidades civis que tomam como eixo central de sua atividade a ideologia, a difusão de uma concepção de mundo entre os segmentos dominantes da sociedade (GROS, 2001, p. 274-275).

A partir da mesma década de surgimento dos Institutos Liberais, que se constituíram em rede nacional com presença em diversos estados, a sociedade brasileira viveu um processo de crescente politização na transição para a consolidação democrática e para a reorganização partidária. Entre os principais episódios mobilizadores de forças sociais incluem-se a campanha das “Diretas Já” (1984); a instauração da Nova República (1985); a promulgação da Constituição Federal (1988) e o impeachment de Fernando Collor (1992). Ainda segundo Gros:

Esses episódios compuseram o início do processo de institucionalização de novas regras do jogo político que, praticamente restrito ao Executivo durante os governos militares, transbordou para toda a sociedade com a redemocratização. O Congresso, os partidos, os meios de comunicação de massa e as instituições da sociedade civil passaram a participar ativamente da vida nacional (GROS, 2001, p. 277)

O contexto da cidadania no Brasil do início dos anos 1990, quando o modelo de sociedade democrática projetado pela Constituição Federal de 1988 ainda não havia saído do papel para a prática social, é descrito por Roberto da Matta como um “cenário de ausências”, ou “de presenças muito mal desenhadas entre nós” (DA MATTA, 1992, p. 5). A despeito de comícios, discursos, celebrações cívicas e elogios à “Constituição Cidadã”, distorções históricas, como, por exemplo, o corporativismo, o clientelismo, o patrimonialismo e o nepotismo, dentre outras, tornavam-se mais evidentes aos olhos da sociedade brasileira, em parte pela maior liberdade de imprensa.

Ao mesmo tempo em que a população brasileira, em geral, alimentava a esperança em relação aos avanços e às liberdades democráticas recentes, crescia a desconfiança de segmentos da sociedade quanto às bases do sistema representativo nacional e à ética dos eleitos pelo povo.

A seguinte afirmação de Da Matta denota o desencanto das elites com seus representantes políticos nesse período histórico: “(...) ter poder no Brasil corresponde também a dispor desta liberdade sem limites que se traduz na capacidade de cada um tirar o partido que puder do domínio público” (DA MATTA, 1992, p. 20).

Na mesma linha “desencantada” com a democracia representativa nacional, o empresário José Mindlin manifestou-se por ocasião de um ciclo de

debates sobre cidadania no Brasil, promovido pelo Banco Bamerindus, em Curitiba, em 1991, cujo conteúdo foi publicado em livro:

Entre um Executivo autoritário e um Congresso que em boa parte pouco se preocupa com os reais interesses do país, passamos a ter uma sociedade dirigida pelo governo, ao invés de um governo dirigido pela sociedade. Clientelismo e paternalismo continuaram sendo uma característica brasileira, que vem de longe, aceita passivamente (MINDLIN, 1992, p. 131-132).

As discussões sobre a suposta incapacidade do Estado de cumprir suas obrigações ampliavam-se no meio empresarial, político e acadêmico na mesma época em que os conceitos de terceiro setor e de responsabilidade social empresarial difundiam-se no país com base em referências originárias, preponderantemente, dos Estados Unidos e dos países europeus.

Desde 1989, em São Paulo, um grupo de representantes de entidades de origem empresarial discutia o tema da filantropia em reuniões informais, e reivindicava maior interação das organizações da sociedade civil com o Estado, rompendo com antigos conceitos no campo da filantropia. Em 1995, o grupo somava 25 organizações que decidiram constituir o Grupo de Institutos Fundações e Empresas (Gife). Um dos fatores que os levou à institucionalização, conforme o histórico disponível no site institucional37, foi “o desgaste das ações filantrópicas na opinião pública, provocado pela corrupção no sistema social e na Legião Brasileira de Assistência (LBA)”.

O termo “pilantropia” era empregado na época em veículos de comunicação brasileiros quando se referiam às atividades de certas organizações da sociedade civil. O esforço para diferenciar as organizações que investiam recursos privados para fins públicos, de forma responsável, daquelas identificadas como “pilantrópicas” marcou os primeiros eventos, manifestações e publicações do Gife. Nesse fórum de origem corporativa, defendia-se que as iniciativas privadas não eram incompatíveis com as políticas públicas orientadas para os segmentos populacionais de baixa renda.

No 3º Encontro Ibero-Americano do Terceiro Setor, realizado no Rio de Janeiro, sob coordenação do Gife, em setembro de 1996, Ruth Cardoso definiu o terceiro setor como “um espaço de participação e experimentação de novos

modelos de pensar e agir sobre a realidade social” (CARDOSO, 1997, p. 8). Segundo a antropóloga, a afirmação do terceiro setor tinha

(...) o grande mérito de romper a dicotomia entre público e privado, na qual público era sinônimo de estatal e privado de empresarial. Estamos vendo o surgimento de uma esfera pública não-estatal e de iniciativas privadas com sentido público. Isso enriquece e complexifica a dinâmica social (CARDOSO, 1997, p. 8).

O conceito de desenvolvimento “sustentado” ou “sustentável”, originado no debate ecológico, migrava para a área social e era usado com frequência para “apontar os problemas dos esforços a longo prazo do desenvolvimento humano”, conforme descreve Marcos Kisil (KISIL, 1997, p. 132). O tema interessava particularmente aos governos do Terceiro Mundo, às agências internacionais financiadoras e aos investidores de projetos e programas sociais que discutiam formas de articulação entre iniciativas locais e mudanças sistêmicas. Sobre isso, Kisil afirmou:

O mito de que o desenvolvimento de base comunitária deve ser sustentado através de esforços locais deveria ser substituído por um entendimento mais holístico do que é desenvolvimento sustentável, e os diferentes papeis que deveriam ser feitos pelos participantes nos níveis diferentes da organização sócio-política de qualquer sociedade (KISIL, 1997, p. 154).

No meio empresarial, nesse período de debates sobre as atribuições de cada setor na vida social, o conceito de “investimento social privado” confundia- se com o de “responsabilidade social empresarial”. O “movimento de responsabilidade social empresarial” estava em expansão quando empresários e executivos criaram, em 1998, o Instituto Ethos, de caráter mais progressista se comparado aos Institutos Liberais, na avaliação de Gros (2001).

Como forma de delimitar suas respectivas competências, o Gife e o Instituto Ethos pactuaram, em 1999, definições mais claras sobre os dois termos. Segundo o Gife, “investimento social privado é o repasse de recursos privados para fins públicos por meio de projetos sociais, culturais e ambientais, de forma planejada, monitorada e sistemática” (ALIANÇA GRUPO CAPOAVA, 2010, p. 11). Conforme a mesma publicação, para o Instituto Ethos,

Responsabilidade Social Empresarial é a forma de gestão que se define pela relação ética e transparente da empresa com todos os

públicos com os quais ela se relaciona e pelo estabelecimento de metas empresariais que impulsionem o desenvolvimento sustentável da sociedade, preservando recursos ambientais e culturais para as gerações futuras, respeitando a diversidade e promovendo a redução das desigualdades sociais.

Depreende-se das duas definições acima que o conceito de responsabilidade social empresarial é o “guarda-chuva” mais abrangente e está relacionado à gestão como um todo, enquanto o investimento social privado é apenas uma parte da gestão, uma modalidade de investimento que envolve articulações entre organizações da sociedade civil, poderes públicos e empresas, e que pode ganhar escala por meio da constituição de redes, como é o caso do Projeto Pescar.

A criação da Fundação Projeto Pescar, em 1995, assinalou a transição da lógica da ação filantrópica empresarial do Projeto Pescar para a lógica do investimento social privado. O Pescar deixava de ser um empreendimento exclusivo de uma só empresa e abria-se para a participação de novos atores e organizações, tanto privadas como públicas e não governamentais, com o objetivo de legitimar-se e habilitar-se à expansão regional e nacional.

Nas seções seguintes, abordam-se o ambiente de constituição da Fundação Projeto Pescar e a linha do tempo da organização, com o objetivo de identificar os principais fatores que contribuíram para a conformação do atual perfil organizacional, em especial no que se refere ao relacionamento com o poder público, as empresas e a universidade.