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Empiricidade e finitude: os limites da investigação antropológica

1. A Tese Complementar como ponto de partida: antropologia pragmática

1.6. Empiricidade e finitude: os limites da investigação antropológica

Neste ponto ficam claras as origens da grande confusão que Foucault explorará como a matriz do pensamento ocidental depois de Kant, qual seja aquela que toma como base a filosofia transcendental, mas ignorando suas fontes, sua extensão e seus limites, como territórios delimitadores do conhecimento possível. Não se pode superar a divisão tripartite da filosofia kantiana: o a priori, o fundamental e o originário, ainda que o último funcione como intermediário entre aqueles dois (FOUCAULT [2008], 2011, p.95). A tentativa de fazê-lo recairia apenas numa repetição da crítica no nível antropológico da finitude: “A Antropologia será precisamente o lugar onde esta confusão incessantemente renascerá” ([2008], 2011, p.95). E esta confusão tenderá a “alienar” a filosofia, diz Foucault, numa insistência em dirigir a reflexão que distende o necessário na existência, confundindo o terreno da análise das condições com o domínio da finitude: “Todas as psicologias fenomenológicas e outras variações sobre a análise da existência são o morno testemunho disso” ([2008], 2011, p.95).

A partir de sua interpretação da Antropologia, Foucault chega a um problema inerente a qualquer filosofia que pretenda investigar o homem, passando das condições a priori do conhecimento ao nível do fundamental. É

possível a passagem do a priori ao fundamental sem referência à empiria? Em

As palavras e as coisas, este movimento é designado como uma “reduplicação empírico-transcendental” atrelada ao “postulado antropológico” (FOUCAULT [1966], 2002, p. 443), que inaugura o pensamento moderno, a partir de um discurso que permite “analisar o homem como sujeito, isto é, como lugar de conhecimentos empíricos, mas reconduzidos o mais próximo possível do que os torna possíveis, e como forma pura imediatamente presente nesses conteúdos [...]” ([1966], 2002, p. 442).

Na Tese Complementar, ao mesmo tempo em que admite aberta a questão, Foucault deixa clara a impossibilidade de se compreender a antropologia kantiana para além de seus próprios propósitos:

A Antropologia de Kant não dá resposta clara a isto. Sem dúvida ela é somente uma compilação empírica; mas precisamente sendo apenas compilação e rapsódia de exemplos o movimento reflexivo que a divide vem de fora e vai para fora, sem que seja definido com precisão o modo de apoio deste conhecimento no domínio empírico que ele recobre ([2008], 2011, p. 97).

Se, de um lado, a Antropologia se guia por uma investigação transcendental, de outro, ela se configura como um texto, comum à sua época, de descrição empírico-antropológica em cujo horizonte Foucault destaca a obra de autores que teriam sido lidos e utilizados por Kant ou que teriam eles mesmos sido influenciados pela leitura da Antropologia ([2008], 2011, p. 18- 19).

A essa leva de textos antropológicos empírico-descritivos, Foucault chamará uma “antropologia nova” face à investigação cartesiana sobre o homem ([2008], 2011, p. 100). Do ponto de vista científico, paira nelas uma crítica ao mecanicismo cartesiano. Aquilo que para o corpo é physis começa a se distanciar do que para os corpos, em geral, é a física. Começa a se gestar a ideia de que o corpo humano difere dos outros corpos, o que teria contribuído para que a antropologia fosse erigida como uma reflexão sobre um ente natural especial. A antropologia é o motivo pelo qual a fisiologia não é simples física ([2008], 2011, p. 102). O homem passa a ser tomado como ponto nodal entre o domínio da técnica aplicável ao seu próprio corpo – a medicina – e a portabilidade de um privilégio metafísico que é a alma ([2008], 2011, p. 101).

Além disso, a antropologia passa a tomar para si os limites da physis, constituindo-se, ao mesmo tempo, como ciência destes limites e passará a

definir: “em termos de relações aquilo que não é relação, em termos de continuidade aquilo que é ruptura, em termos de positividade aquilo que é finitude” ([2008], 2011, p. 102). Possuindo um corpo físico peculiar e uma alma, o homem passa a ser tomado como a extensão do empírico aos seus limites, no sentido de uma “infinitude” metafísica. Tudo se passa como se a antropologia encontrasse seu lugar como ciência destas relações: entre corpo e alma, entre interior e exterior, entre conhecimento e conhecimento de si.

A antropologia envolve assim todo o conhecimento sobre o homem, buscando dar conta de tudo o que ele sabe sobre si mesmo, de modo que cada região do saber encontra, de alguma maneira, seu espaço nela. Ela funda este saber ao mesmo tempo em que o limita, fazendo-o decair em sua função de verdade justamente pelo peso da “verdade do homem”.

Toda essa conjuntura erigida em torno da investigação sobre o homem no final do século XVIII vai gerar uma antropologia que se depara com o problema de que o homem que ela conhece é também o homem que é o sujeito do conhecimento. Neste movimento, a antropologia passa de mero conhecimento sobre o homem ao conhecimento de toda e qualquer forma de ciência sobre o homem ([2008], 2011, p. 104). No entanto, o que mostra a

Antropologia de Kant, de acordo com a interpretação de Foucault, é

precisamente a impossibilidade de o conhecimento histórico do homem saltar até às formas deste mesmo conhecimento sem que esta reflexão seja perpassada por uma crítica que lhe imponha limites e um horizonte de possibilidade60.

A inobservância deste limite levaria qualquer conhecimento a uma “ilusão antropológica”, que, de maneira semelhante à questão da ilusão transcendental na qual a razão produz ideias transcendentes alheias ao crivo da experiência, tende a uma dialetização do pensamento. No caso da antropologia, este movimento significa a confusão entre o domínio do empírico e do transcendental no homem, tornando-o fundamento do saber.

Na interpretação de Foucault, Kant teria empreendido uma antropologia crítica que reconhecia seus limites, mas que se teria configurado como um ícone do pensamento de sua época, constituindo o modelo “essencial” de

investigação antropológica, liberando o terreno para o desenvolvimento de “falsas antropologias" ([2008], 2011, p. 82), voltadas à busca pelas “condições infinitas do finito” ([2008], 2011, p. 108).

Que durante 25 anos Kant tenha ensinado antropologia, diz Foucault, não se deve ao acaso, mas antes a uma obstinação ligada à própria estrutura de seu pensamento: “como pensar, analisar justificar e fundar a finitude em uma reflexão que não passa por uma ontologia do infinito e não se escusa em uma filosofia do absoluto?” ([2008], 2011, p. 107).

Nas origens do “erro gramatical da Menschkenntnis” (p. 105) está o desenvolvimento de uma antropologia pós-cartesiana que aos poucos vai distanciando o ente humano do restante dos entes físicos e onde se vê serem desdobradas as descrições empíricas da Antropologia de Kant. Esta, no entanto, justamente por seu caráter de espelho da Crítica, pauta-se por uma orientação crítica impossível de ser deixada de lado. Há algo de essencial legado por Kant:

[...] esta lição diz que a empiricidade da Antropologia não pode fundar-se sobre si mesma; que ela só é possível a título de repetição da Crítica, mas que não poderia deixar de referir-se a ela; e que se ela figura como seu analogon empírico e exterior, é na medida em que se assenta sobre estruturas do a priori já nomeadas e trazidas à luz. Portanto, a finitude, na organização geral do pensamento kantiano, jamais pode refletir-se no nível de si mesma; só se oferece ao conhecimento e ao discurso de uma maneira secundária [...] ([2008], 2011, p. 106).

É que a empiria nos termos da descrição realizada na Antropologia se articula ao a priori e evoca um saber empiricamente constituído e historicamente desenvolvido, no qual a natureza é compreendida como physis, como um mundo imperfeito e acidentado, onde o homem vive em condição de fragilização e fragmentação – a negatividade no nível da natureza. No nível empírico, a Antropologia se depara com o erro e a fronteira do inefável: “a

Antropologia aponta com o dedo a ausência de Deus e desenvolve-se no vazio

deixado por este infinito. Lá onde a natureza dos corpos físicos diz síntese, a natureza empírica do homem diz limite” ([2008], 2011, p. 107).

Foucault menciona a necessidade de se cumprir uma crítica contra esta ilusão antropológica, remetendo-se a Nietzsche como aquele que primeiro teria aberto um verdadeiro caminho na dissolução do sentido da pergunta pelo homem: a dissolução do absoluto na finitude representa também o termo do

próprio homem – o homem morreria juntamente com Deus. A finitude não deve ser compreendida como “fim”, mas como começo de uma nova tarefa filosófica dirigida ao “além-do-homem” nietzschiano ([2008], 2011, p. 111).

O tema da finitude, além de concluir a Tese Complementar, parece congregar o problema central da antropologia, não só no texto de Kant, mas de uma maneira geral na obra de Foucault. Ela está ligada à condição do homem tanto em termos de existência como de “saber”, e extrai seu sentido da empiricidade de sua existência concreta, cujo conhecimento possível deve se ater ao domínio da positividade. O homem é finito e isto é atestado por sua linguagem, seu corpo e mesmo sua verdade, remetida ao erro e à ilusão fundamentais. No entanto, e é esta particularidade que reverbera na interpretação de Foucault do texto kantiano, há um elemento que confere à antropologia um estatuto de legitimidade epistemológica. Este elemento é justamente o limite assegurado pela Crítica. Vejamos de que maneira isto é possível retornando à definição do próprio Kant:

Por uma crítica assim, não entendo uma crítica de livros e de sistemas, mas da faculdade da razão em geral, com respeito a todos os conhecimentos a que pode aspirar, independentemente

de toda a experiência; portanto, a solução do problema da

possibilidade ou impossibilidade de uma metafísica em geral e a determinação tanto das suas fontes como da sua extensão e limites; tudo isto, contudo, a partir de princípios. (KANT [1781/1787], 2001, A XII).

Trata-se, então, de averiguar os limites da faculdade da razão, para indicar até que ponto ela pode conhecer, “sem erro”, para além da experiência. Os limites, no que diz respeito ao conhecimento do homem, são impostos pela finitude que tem um duplo caráter: ela é limite, mas também condição, tanto das determinações empíricas do homem, como das condições do saber sobre ele; a finitude é o problema nodal na formação do “duplo empírico- transcendental”61. É a partir do fenômeno da temporalização, do “escoar-se do tempo” (FOUCAULT [2008], 2011, p.38) na existência concreta humana, que Foucault aborda, na Tese Complementar, esta relação ambígua entre o sujeito e o saber sobre ele. É que as condições de possibilidade no âmbito da

61 A reflexão sobre o homem como um duplo empírico-transcendental será retomada de forma

mais trabalhada em As palavras e as coisas [1966], que exploraremos a seguir. O texto se mostra como uma espécie de desenvolvimento dos passos iniciados na Tese Complementar e apresenta os temas do homem e seus duplos: o originário e o recuo da origem, a analítica da finitude, o impensado, o mesmo e o outro. Cf. M. Foucault [1966]. As palavras e as coisas. Op. cit. p. 417-476.

antropologia revelam, como vimos, uma espécie de negatividade do ser do homem.

1.7. A antropologia e a norma subjacente a seus duplos: o homem