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Sujeito e homem na Tese Complementar: mais de uma antropologia

1. A Tese Complementar como ponto de partida: antropologia pragmática

1.8. Sujeito e homem na Tese Complementar: mais de uma antropologia

A interpretação de Foucault da Antropologia de Kant se desdobra em questões centrais no desenvolvimento do pensamento do francês. Parece haver uma investida constante na filosofia de Foucault contra uma antropologia normalizadora como uma orientação do pensamento ocidental, marcado por esta ordem a priori do saber sobre o homem, que não se limita a um horizonte epistemológico. Veremos adiante, na abordagem do texto As palavras e as

coisas, que o pensamento antropológico tal qual se engendra na obra de Kant

poderia ser tomado como o ícone de um saber que conduz sujeitos a um modelo normalizado de homem67, suscitado pela orientação antropológica do conhecimento, que se teria convertido em uma prescrição do modo de ser homem. Há uma tese central expressa na obra tardia de Foucault segundo a qual estaríamos sendo governados68 à medida de um modelo de Homem, nascido como “condição de possibilidade” desde a modernidade.

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“É que estamos tão ofuscados pela recente evidência do homem que sequer guardamos em nossa lembrança o tempo, todavia pouco distante, em que existiam o mundo, sua ordem, os seres humanos, mas não o homem”. M. Foucault. As palavras e as coisas. Op. cit., p. 444.

68 No entanto, o pensamento de Kant aparece tardiamente na obra de Foucault de maneira

distinta do que é enunciado na Tese Complementar e n’As palavras e as coisas, como também uma possibilidade de escape às estruturas de submissão dos sujeitos a partir da ideia de esclarecimento (Aufklärung) e da tensão por ela suscitada entre a liberdade dos sujeitos de governarem-se a si mesmos e a obediência a normas de comportamento estabelecidas. Cf. Foucault [1984], M. Qu’est-ce que les lumières. In: Dits et écrits II. Op. cit., p. 1391 e Foucault, M. O governo de si e dos outros. 2010, p.6.

Mas o que é, com efeito, uma “antropologia”? Toda a análise que fizemos até então da interpretação de Foucault sobre o texto de Kant parece ficar mais clara se ela é assim caracterizada: a antropologia é uma disciplina que toma por objeto o homem, mas já partindo do princípio de que este homem também conhece a si mesmo, o que faz com que seu fundamento seja remetido a um recuo infinito: um saber sobre o homem que procura saber o que ele é, sem que jamais se possa delimitar de uma vez por todas o que nesta discussão é o verdadeiramente originário. Esta acepção está na base do nascimento das ciências humanas.

A antropologia pode ser definida também como uma “disposição do saber” que, por seu simples operar, constitui dualidades na abordagem do que no homem é interno e do que nele é externo e, nesta dicotomia, termina por atrelar o estudo do homem a um elemento de normalidade, em que espírito e corpo são remetidos a uma unidade, submetida a um equilíbrio. Este saber sobre um “homem normal” estaria na base de práticas humanas ocidentais como as do sistema jurídico em relação com o crime e a liberdade, a medicina em relação com a doença e a saúde, as disciplinas “psi” em relação com uma dietética da mente e a doença mental.

Nesse sentido, defendo que desde a Tese Complementar, começa a se delinear como problemática para Foucault, ainda que não de maneira determinada, a questão da crítica ao sujeito como objeto de si mesmo no âmbito das ciências humanas, e da psicologia enquanto herdeira da normalização antropológica. Tendo como objeto a Antropologia de Kant, a preocupação de Foucault em torno da antropologia se desenvolve como uma investigação acerca das consequências filosóficas decorrentes de uma investigação sobre o homem em suas formas concretas. Por outro lado, ao compreender a reflexão antropológica como herdeira da filosofia crítica e impulsionadora do projeto geral de uma filosofia transcendental, Foucault enfatiza que este homem, que mais tarde será apontado como o acontecimento histórico que teria dado origem às ciências humanas, sustenta relações muito próximas com o sujeito transcendental do conhecimento. Os desdobramentos desta constatação seriam desenvolvidos ulteriormente, também no contexto de

As palavras e as coisas, quando da enunciação da antropologização dos

empíricos das práticas humanas, sendo o homem aí enraizado numa “subjetividade constituinte” (FOUCAULT [1966], 2002, p.342).

Uma ambiguidade se forma, então, no tocante à consideração, por parte de Foucault, da categoria sujeito: por um lado, uma estrutura de conhecimento, por outro, indivíduo sujeito (ou “assujeitado”) por um modelo de normalidade antropológica que se exerce tanto num domínio psicológico e interno de sua conduta, quanto nas relações que se dão externamente a ele – com a alteridade – numa cultura.

Veremos que a própria compreensão da antropologia se modifica e se desdobra em perspectivas distintas na medida em que se desenvolve o pensamento de Foucault, o que implica também admitir diferentes posturas diante da possibilidade de ultrapassá-la prática ou conceitualmente. Alguns autores consideram isto como o resultado de uma “mudança de posição”69 de Foucault com relação à antropologia. Examinando esta questão nos capítulos que se seguem, pretendo defender que se trata antes da abordagem de vieses distintos, e de um caminho de mão dupla no que diz respeito à compreensão da antropologia em Kant. É que se, de um lado, ela teria aberto o caminho a uma “verdade antropológica”, decorrente da confusão entre o domínio do empírico e do transcendental na investigação sobre o homem, verdade esta fadada à não-verdade pela finitude de seu fundamento, de outro, por se desenvolver sob um ponto de vista pragmático, ela deixa também aberto ao homem o uso de sua liberdade e a possibilidade de ele fazer algo de si mesmo.

Aquilo que estes comentadores compreendem como uma mudança de posição pode ser visto apenas como a possibilidade de, de dentro da própria inclinação antropológica do saber, surgir também a possibilidade de ultrapassá- la, na medida em que nos consideramos, para além de indivíduos assujeitados, como seres de livre ação. Tudo decorre da maneira de se considerar a importância e os efeitos atribuídos à liberdade70.

69De acordo com Marsá ocorre uma “mudança de posição” por parte de Foucault sobre haver

uma antropologia fundamental em Kant que põe em contraste a Tese Complementar e As

palavras e as coisas. Cf. M. Marsá. Op. cit., p. 44.

70 Celso Kraemer, tal como Fonseca e Muchail, faz decorrer este sentido de antropologia

atrelado à liberdade como livre ação do ser do homem como aquela para a qual converge o pensamento de Foucault nos últimos de seus escritos e que giram em torno da problemática ética. Tal constatação colocaria, a seu ver, o pensamento de Foucault em perene relação de herança e consonância com a obra de Kant. Cf. C. Kraemer. Ética e liberdade em Michel

Na Tese Complementar, vemos paradoxalmente expostas as sementes que dão origem a estas acepções de antropologia:

o Como a possibilidade encontrada, em Kant, de uma via de consideração do homem para além do estabelecimento de sua essência, e em favor de sua liberdade pragmática. Neste sentido, haveria para o sujeito a possibilidade de transgredir a norma antropológica;

o Como decorrente do esquecimento da lição sobre a necessidade de se pensar separadamente o domínio do empírico e do transcendental e que, neste sentido, se afasta da própria antropologia pragmática de Kant e;

o Tal como encontrada na própria Antropologia de Kant, que mesmo se mantendo fiel aos limites da crítica, faz decorrer dela uma “moral pragmática do dever”, expressa nas prescrições de uma didática antropológica entre o que no homem é interior e o que é exterior. Como decorrência desta última acepção, a antropologia destaca-se também por uma disposição normalizadora, algo que poderíamos conceber dentro de uma “disposição antropológica”.

Observaremos os desdobramentos destas concepções de antropologia no decorrer da arqueologia de Foucault. Por ora, mantenhamo-nos na antropologia como uma orientação ou inclinação do saber que teria tornado seres humanos sujeitos, cujos desdobramentos vemos reverberarem na obra do autor francês e para o qual estabelecemos a Tese Complementar como ponto de origem conceitual. Esta orientação seria uma “[...] estrutura propriamente filosófica que faz com que agora os problemas da filosofia sejam todos alocados no interior desse domínio que poderíamos chamar o domínio da finitude humana”71.

É esta concepção de antropologia que vemos nascer de par com a investigação de Foucault sobre a psicologia, objeto de nosso próximo capítulo. É a ciência da psicologia que toma como objeto a tensão gerada entre o que no

qual Foucault explora a questão antropológica, e não necessariamente como a mais fundamental.

homem é interno e externo. Considerando-se a antropologia tal como é lida pela Tese Complementar, enquanto um saber que gira em torno do Gemüt no homem, podemos compreender a razão pela qual Foucault considera a

Antropologia como um lugar de passagem na obra de Kant até o

desenvolvimento da filosofia transcendental. É que precisamente ali onde o saber fosse capaz de unir num só discurso o lastro desmistificador da experiência e a universalidade do entendimento, ele alcançaria supostamente seu grau máximo de verdade – a resposta à pergunta “o que é o homem?”, englobando todos os outros problemas da filosofia. Este grau máximo de verdade no âmbito de atuação das ciências humanas se daria numa psicologia embasada por uma antropologia.

Foucault parece ter observado o que considerou uma elevação da subjetividade e de seus poderes na constituição de um homem moderno, síntese e fonte dos saberes em geral. E é na abordagem que o autor faz da psicologia que este problema parece ter sua origem. Cabe-nos agora investigar o contexto que precede cronologicamente a Tese Complementar, e no qual Foucault passa a se interrogar sobre o Homem e a normalização dos sujeitos a partir do fenômeno que nega a normalidade no homem por excelência: a doença mental e os saberes erigidos em torno dela.