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2 A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E AS TÁTICAS DOS

2.4 O EMPREITEIRO PRECARIZADO

Ainda sobre os usos que os empregadores fazem da Justiça do Trabalho, é importante observar a estratégia sofisticada e perversa dos plantadores de cana da Zona da Mata pernambucana. Por realizarem um trabalho ilegal, os empreiteiros, naturalmente, não estão contemplados no Estatuto do Trabalhador Rural. Assim, os senhores de engenho também não se sentiam à vontade para pagar os direitos trabalhistas dos empreiteiros, que, ao fim e ao cabo, também eram clandestinos, pois era assim que eles se sentiam e se definiam.

Em entrevista com um empreiteiro identificado como “Seu Alfredo” na Zona da Mata de Pernambuco em 1974, realizada pelo grupo de pesquisa de Antropologia do Museu Nacional, coordenado por Lygia Sigaud109, a antropóloga relata que Seu Alfredo se definiu como clandestino, “sou clandestino”. Chamou a atenção da pesquisadora a maneira como o empreiteiro formulava suas falas, segundo ela, muito próximas das falas elaboradas pelos trabalhadores rurais clandestinos, “hoje eu to um canto, amanhã eu to em outro, eu não tenho canto fixo”110. Em sua análise, a pesquisadora continua:

Inclusive, quando ele disse que era clandestino, ele disse “empreiteiro não tem direito nenhum”, que é uma formulação, que o trabalhador clandestino faz. “O empreiteiro não tem direito nenhum”, a usina não lhe deve nada, né?111

A emergência do trabalho do empreiteiro nos engenhos e fazendas de açúcar acaba por revelar e aprofundar a situação de precariedade a que eram submetidos os trabalhadores rurais na Zona da Mata pernambucana, e mais ainda os trabalhadores que não tinham sua carteira de trabalho assinada. Se os trabalhadores fichados estavam submetidos às vontades dos patrões, os clandestinos tinham que se submeter aos empreiteiros, e sem qualquer direito assegurado.

109 Esta entrevista está arquivada no Fundo Lygia Sigaud, pertencente ao arquivo Seção de Memória e Arquivo

(SEMEAR) - UFRJ/Museu Nacional. 17 entrevistas compõem a Série Transcrições, Subsérie Fitas Anos 1970. Esta entrevista com “Seu Alfredo” (nome fictício atribuído ao trabalhador pelos pesquisadores) traz uma especificidade: sua transcrição revela que a gravação foi não a entrevista em si, mas a discussão posterior de Lygia Sigaud e seu grupo (especificamente uma mulher identificada apenas como Silvana) sobre os dados reunidos da entrevista, que fora realizada momentos antes. A antropóloga compara as falas do empreiteiro ao roteiro organizado previamente pelo grupo, chegando a conclusão de que as falas de “Seu Alfredo” foram muito mais ricas do que o roteiro delimitava, apesar da grande dificuldade de encontrá-lo. Assim, esta não é uma entrevista onde temos acesso à fala do trabalhador, apenas às falas das pesquisadoras, que em alguns momentos reproduzem o que foi dito por Seu Alfredo. Aqui, esta entrevista será referenciada como “Entrevista de “Seu Alfredo” a Lygia Sigaud. Pernambuco, Palmares, 20 de julho de 1974. SEMEAR – UFRJ/Museu Nacional, BR MN LS, TR FA2, P6-D1, Fita n. 38”.

110 Entrevista de “Seu Alfredo” a Lygia Sigaud. Pernambuco, Palmares, 20 de julho de 1974. SEMEAR –

UFRJ/Museu Nacional, BR MN LS - TR FA2, P6-D1, Fita, n. 38, p. 09. As citações dessa entrevista reproduzem

as falas exatamente como estão transcritas no documento.

111 Entrevista de “Seu Alfredo” a Lygia Sigaud. Pernambuco, Palmares, 20 de julho de 1974. SEMEAR –

Ainda na série de entrevistas feitas por Lygia Sigaud, uma família expulsa do engenho onde morava revela as situações degradantes pelas quais o trabalhador rural é submetido, primeiro quando era fichado e morador, e depois, quando passa a trabalhar para empreiteiros, quando a situação fica ainda pior. O filho mais velho da família, identificado como J.A., relata que trabalhando como fichado o administrador determinava qualquer tipo de serviço, mesmo que ele não soubesse fazer ou não tivesse sido contratado para aquele trabalho. O trabalhador narra:

Quando eu tava lá [morando no engenho, fichado] o administrador disse: “J.A., você é um rapaz novo, moço, eu quero que você vá roçar mato”. Seguinte, eu nunca rocei mato, nunca capei. Ele disse “é o serviço que tem pra você, é o serviço que tem pra você. Se você quis, bem, se não quis, não tem o que fazer, é o serviço que tem pra você aqui dentro do engenho é esse. Eu mode não morrer de fome e nem matar a família de fome112, nós pedia

[para] roçar mato [...]. Coisa que eu nunca tinha feito. Carrear113, mesma

coisa [...]. Com duas semanas que eu tava roçando mato disseram: “você vai carrear, o carreador adoeceu, você vai carrear” – “seu administrador, o senhor sabe que eu nunca carreei, nunca fiz aquele serviço, o senhor vai botar logo eu pra fazer aquele serviço!” [...]. “O serviço que eu tenho pra você, é esse mesmo. Se quis, bem, se não quis, vá procurar seus direito”. [...] Aí mode não cortar o meu serviço, eu fui obrigado a fazer aquele serviço, que eu nunca tinha feito.114

Esta situação também é retratada pela historiadora Christine Rufino Dabat no livro “Moradores de engenho”, quando a fala do trabalhador Cassiano José de Sena, diz que os empregados tinham de se submeter aos mandos do patrão se não quisesse ser dispensado (o que significava também ser despejado, perdendo a morada e a terra):

Gostava muito do trabalhador bom, mas puxava muito pelos trabalhador que era bom, aí castigava ele: “Vá pra lá, vá fazer tal serviço!” O trabalhador ia. “Vá pra tal canto, vá fazer tal serviço! Vá plantar cana!” O camarada ia, viu? Aí castigava o trabalhador bom. Os trabalhador ruim eles chutava, mandava ir-se embora”.115

112 Muitas vezes mesmo o trabalhador fichado só recebia quando cumpria a tarefa. Se não fizesse o serviço

determinado pelo administrador, não recebia o salário da semana. Por isso a referência do trabalhador em afirmar que se não aceitasse a determinação do administrador morreria de fome e mataria a família de fome.

113 Carrear é o serviço de carregar o caminhão com a cana cortada, considerado um dos serviços mais penosos do

engenho.

114 Entrevista de família de trabalhadores rurais. Pernambuco, Palmares, 28 de julho de 1974. SEMEAR –

UFRJ/Museu Nacional, BR MN LS - TR FA2, P6-D2, Fita n. 40, p. 11-12.

115 DABAT, Christine Rufino. Moradores de engenho: condições de trabalho e condições de vida dos

trabalhadores rurais na zona canavieira de Pernambuco segundo a literatura, a academia e os próprios atores sociais. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2007, p. 582.

Estes depoimentos manifestam a arbitrariedade dos empregadores, que coagiam os trabalhadores através (também) do sistema de morada.

J.A. fala ainda da situação com os empreiteiros, na qual ele se encontrava, o mesmo trabalhador relata a insegurança do transporte que leva os trabalhadores às fazendas, além do curto tempo que dispõem para fazer o serviço nos engenhos, precisando passar vários dias para conseguirem fechar uma conta:

Então o perigo porque é o seguinte: pra ir pra Catende116, de carro

[caminhão], desses motoristas dele, motorista de usina, a senhora sabe, é uns com o chuli pesado, com 100, 120 pessoa dentro do carro. [...] Duas turmas, dois empeleteiro num carro só. [...] Saindo daqui de sete horas, chega lá de nove e meia, oito e meia, nove horas, é assim. Não dá tempo de fazer nada. Quando é duas horas, o camarada manda seguir buscar a gente. [E para voltar] Não tem hora certa, não. Tanto faz chegar hoje como o carro quebrar- se no caminho... [...] Tanto faz a gente sair daqui de 5 hora, como chegar de 10 da noite, 11 hora.117

Seguindo seu relato, o trabalhador J.A. ainda relata que o empreiteiro “pula” as contas que os trabalhadores rurais tiram, para ficar com um lucro ainda maior:

“O do seu Fulano, deu cem [braças118]”, mas deixe que no meio da conta ele

já deixou uma conta pra ele, dentro das cem braças. Quer dizer que tem duzentas braça dentro da terra, cem braça já foi pra ele. Só paga cem. Pois é. [...] Porque a usina paga doze conto a ele, e ele paga na base de seis [contos] e quinhentos. [...] O resto é tudo pra ele.119

A precarização do trabalho, entretanto, faz parte de uma cadeia que não para no trabalhador rural. Explorador do trabalho, o empreiteiro também está incluído na lógica de degradação da força laboral. Seu Jacinto, em entrevista a Regina Novaes, do grupo de pesquisa de Lygia Sigaud, relata sua experiência como trabalhador clandestino em Pernambuco e em Alagoas. Quando a pesquisadora pergunta se o empreiteiro era o patrão de Seu Jacinto, ele prontamente responde:

116 Catende é um município da Zona da Mata Sul de Pernambuco, que fica próximo a Palmares – cerca de 20

quilômetros –, local onde foi realizada a entrevista. Os trabalhadores que tivessem serviço fora da cidade eram transportados no caminhão, de responsabilidade da usina.

117 Entrevista de família de trabalhadores rurais. Pernambuco, Palmares, 28 de julho de 1974. SEMEAR –

UFRJ/Museu Nacional, BR MN LS - TR FA2, P6-D2, Fita n. 40, p. 16.

118 A “braça” é uma determinada área que o trabalhador tem que fazer para cumprir o serviço, geralmente

medida com uma vara de 2,20 metros. Cem braças é o mesmo que uma conta.

119 Entrevista de família de trabalhadores rurais. Pernambuco, Palmares, 28 de julho de 1974. SEMEAR –

O empeleiteiro é meu patrão?... Quer dizer que empeleiteiro não pode ser patrão, não é? Porque o empeleiteiro pode ser igualmente um trabalhador, não é isso? Porque uma semana é com um, é com outro, e o ponto não chega na usina daquele trabalhador, pronto! Quer dizer que é o mesmo trabalhador o empeleiteiro.120

Para Seu Jacinto, o empreiteiro se iguala ao trabalhador rural clandestino porque ambos não têm estabilidade, e precisam a cada momento estar em uma usina ou engenho diferente para conseguir trabalho. Esse discurso é o mesmo reproduzido por Seu Alfredo, empreiteiro entrevistado por Lygia Sigaud. A antropóloga chama atenção para a narrativa do empreiteiro:

O negócio que me pareceu interessante é que ele formulou a coisa do mesmo jeito que o trabalhador formula, entende, “hoje eu to num canto, amanhã eu to em outro, eu não tenho um canto fixo”. Exatamente, a definição que o trabalhador clandestino dá dele, não tem canto.121

Lygia Sigaud destaca a proximidade dos discursos do trabalhador rural e do empreiteiro, apesar deste assumir um papel de relativa superioridade na hierarquia do trabalho rural. Sem ter o objetivo de tentar comparar as condições de trabalho de um trabalhador rural e um empreiteiro – haja vista que este ocupa um lugar de autoridade diante do trabalhador que corta a cana, limpa o mato, carrega o caminhão... – é possível identificar pelo menos um ponto de proximidade entre estas duas personagens do mundo rural: a exploração do trabalho. Se para ter o serviço o trabalhador clandestino precisa trabalhar sem folga, fazendo horas extras e sem direitos, o empreiteiro enfrenta essas mesmas condições.

Nessa dupla exploração, os plantadores de açúcar e proprietários de terra da Zona da Mata de Pernambuco são os grandes beneficiados. Diante da Justiça do Trabalho, eles buscam caminhos para tentar escapar do dever trabalhista, construindo um discurso que tira de si a responsabilidade do pagamento dos direitos trabalhistas.

120 Entrevista de Seu Jacinto e Dona Nazaré. Pernambuco, Palmares, 28 de julho de 1974. SEMEAR –

UFRJ/Museu Nacional, BR MN LS - TR FA2, P5-D2, Fita n. 39, p. 5.

121 Entrevista de “Seu Alfredo” a Lygia Sigaud. Pernambuco, Palmares, 20 de julho de 1974. SEMEAR –

UFRJ/Museu Nacional, BR MN LS - TR FA2, P6-D1, Fita n. 38, p. 9. Este trecho faz referência à fala de Lygia