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A aproximação com o ambiente escolhido para a realização da pesquisa, aos poucos ia selando o encontro com o outro e com suas particularidades. Nesses entremeios pude refletir sobre o espaço onde este outro se situa e defrontar-me comigo e com o território dos olhares plausíveis que aos poucos revelavam a atmosfera da observação. Nessa aventura aprendi com Skliar uma das vivências de maior desassossego, quando ele solicita para que não nos

vejamos tentados a traçar equivalências ali onde impera a mais terrível ambigüidade. Que não produzamos simetrias onde as palavras se desfazem em desordem. E, sobretudo, que não insistamos mais em nomear o inominável. Em administrar as diferenças para mitigar a dor, em varrer debaixo do tapete toda a banalidade em torno do outro. (2003: 28)

Narrar vidas de mulheres que experienciaram violências em seus corpos e em suas almas e transformar essas narrativas em texto se constituía em uma experiência desprovida da intencionalidade de assegurar que é possível compreender a totalidade das informações. Ao contrário, me sentia convidada a todo instante a perceber os enigmas que envolvem a complexidade da relação com o outro. Pois como ressalta Skliar (2003: 26), há um outro que

nos é próximo, que parece ser compreensível para nós, previsível, maleável, etc. E há um outro que nos é distante, que parece ser incompreensível, imprevisível, imaleável. (...) O outro pode ser pensado sempre como exterioridade, como alguma coisa que eu não sou, que nós não somos. Mas a mesma dualidade apontada acima (outro próximo – outro radical) existe também em termos de interioridade, quer dizer, que esses outros também podem ser eu, sermos nós.

Encharcada destas concepções e trilhando a trajetória da pesquisa etnográfica tratei,

em primeiro lugar, de estabelecer o vínculo com o contexto em que atuam os técnicos integrantes do Programa Sentinela em que a pesquisa se efetivaria. Ali os encontros foram se delineando através de diálogos e da amorosidade na acolhida, até porque eu já havia feito parte da equipe e conhecia as alamedas das políticas públicas e os atores envolvidos no Sistema de Garantia de Direitos do município onde o programa estava inserido. O

conhecimento prévio da organização dos atendimentos profissionais do programa, da forma de ocupação dos espaços físicos, dos horários mais movimentados em torno das demandas de atendimentos, me facilitou no acesso às fontes, e reforçou a necessidade de ser cuidadosa para não atropelar o ritmo das rotinas pré-estabelecidas pelo programa e não invadir o cotidiano das pessoas que ali habitavam através de seu trabalho e das demandas sociais.

De maneira ambígua sentia que uma das grandes dificuldades era vivenciar com

outros olhos o ambiente outrora tão familiar, onde durante anos trabalhei e convivi com meus

colegas e com as comunidades do entorno, onde partilhei as intervenções profissionais. Retornar com uma proposição diferenciada significava assumir estar em outro lugar: o de pesquisadora. Nesta condição, eu precisava ir ao encontro do que me inquietava no passado, para retomar as questões que se fizeram perguntas de pesquisa, que se concretizaram na consignação de relações cotidianas, mediadas pela angústia que o encontro com a dor e o silenciamento do outro proporcionava. Significava defrontar-me com o não saber o que fazer com a ineficiência que fez crescer o desejo de conhecer aqueles cenários para compreender como o outro se realiza como agente social.

No encontro com a Coordenação do Programa Sentinela, fui informada de que era possível selecionar os sujeitos de pesquisa entre os oitenta casos atendidos em 2008, ou seja, que entre eles havia os casos de três mães que estavam dispostas a falar de suas experiências na relação com suas filhas abusadas sexualmente. Minha intenção era fazer um recorte com mães que também sofreram abuso sexual na infância e que, naquele momento estavam em atendimento, em função dos abusos que sofreram suas filhas, menores de doze anos, a idade limite para a pesquisa. A Coordenação sugeriu que eu olhasse os prontuários de duas mães que já estavam com seus casos “encerrados”, isto é, com os documentos guardados no arquivo morto, por considerar que elas apresentavam histórias de vida com as peças que eu buscava para a minha pesquisa, e uma outra mãe que ainda estava em processo de acolhimento. É importante enfatizar que as narrativas dos abusos vividos pelas mães, na infância, não estivessem sob segredo para que a problematização do fenômeno com suas filhas encontrasse os fios para se fazer texto.

A partir do contato estabelecido com as técnicas do Programa que cuidam das crianças e de suas famílias no processo de atenção, iniciei também a aproximação com outras integrantes da equipe para explicar os objetivos da pesquisa, os desdobramentos possíveis, o que permitiu organizar em parceria a prática no campo, especialmente os procedimentos para dar início ao contato com as mães previamente escolhidas. Através de entrevistas e do estudo

dos prontuários, meu desejo era atentar para os detalhes das falas dos sujeitos, suas expressões corporais durante as narrativas, os gestos mais significativos, o estado emocional tornado visível, ou seja, valorizar todo o conteúdo que deu sustentação à etnografia do campo. Desse modo, a relação se estabelecia com uma observação participante, para que todos os desdobramentos da pesquisa adquirissem uma importância fundamental para o conhecimento do que estava sendo posto a pesquisar, possibilitando a existência de um

esquema aberto e artesanal de trabalho que permitisse um transitar constante entre a observação e a análise, entre a teoria e a empiria. (ANDRÉ, 1991: 38).

O primeiro contato com as mães previamente selecionadas foi marcado por grande alegria. Ao explicar-lhes os objetivos da pesquisa e fazer-lhes o convite para a participação, elas se colocaram disponíveis e apontaram que nossos encontros iriam se constituir em uma possibilidade de reflexão sobre si, suas escolhas, suas trajetórias. Generosamente aceitaram sair de seus afazeres, do cotidiano tão atribulado de responsabilidades maternas, pessoais, profissionais, para se deslocarem até a sede do Programa, onde nos reuniríamos para conversar. As narrativas de suas histórias de vida, aos poucos me faziam entender que a

singularidade é reveladora de um certo convívio social (...); isto não quer dizer que não se valorize o indivíduo (...), mas sim que ele é tomado como amostra da [sua] comunidade

(AMARO, 2003: 68). O espaço definido para os encontros entre a pesquisadora e as mães, tinha por intencionalidade assegurar a privacidade.

Duas mães que fizeram parte da pesquisa já tinham encerrados os casos de suas filhas e foram acompanhadas por mim quando atuava como assistente social do Programa. Constatei que o vínculo anteriormente construído com as duas mulheres favoreceu a abertura do diálogo para que se sentissem seguras em compartilhar seus segredos. Este aspecto me chamou a atenção e me fez pensar sobre os acercamentos das práticas de pesquisa, pois quando se trata de um assunto pessoal, visceral para elas, o cuidado reclama sua presença para que não haja invasões que venham a ampliar os traumas adormecidos. Muitas vezes, a pesquisa e conseqüentemente a pesquisadora não podem aprofundar a temática em tão pouco tempo, dada à complexidade do fenômeno. Esse aspecto pode diminuir a qualidade daquilo que se busca em campo, porque a escuta será limitada pelo tempo acadêmico.

A mãe que ainda estava em processo de acolhimento demonstrava dificuldades para entender em que sua vida estava se transformando, a partir da denúncia de abuso sexual vivido por sua filha. Apesar de verbalizar seu interesse em participar da pesquisa e de tudo que ela solicitava, seu movimento foi de negação dos encontros marcados, demonstrando um

intenso sofrimento em ter que vir conversar. Constatei que o agendamento dos encontros na sede do Programa poderia criar certa confusão de objetivos e uma mistura de papéis, já que os sentimentos não podem ser controlados pela racionalidade científica e as aflições pertencem à dinâmica de inserção dos sujeitos, no Programa de atendimento ás vítimas de abuso sexual.

Minha expectativa é que os leitores desta dissertação reconheçam nas vidas que agora serão apresentadas, muito mais a importância de suas experiências do que o rigor de uma biografia, os intricados fios que transversalizam as narrativas, construídas pela polifonia dos contextos e suas configurações. Para tanto, as violências experimentadas por cada uma delas serão tomadas como ponto de partida, apenas como um barco que, ao se soltar de suas amarras pode navegar no movimento das águas, enquanto durar seu percurso.