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2 CULTURAS INFANTIS ENTRELAÇANDO FIOS DAS INFÂNCIAS E FIOS

3.2 ENCONTROS A PARTIR DE UMA METODOLOGIA

Para realizar o estudo aqui proposto, empreendemos uma investigação de caráter qualitativo. Tal abordagem “exige que o mundo seja examinado com a ideia de que nada é trivial, que tudo tem potencial para constituir uma pista que nos permita estabelecer uma compreensão mais esclarecedora do nosso objeto de estudo” (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 49).

Nesse contexto, o processo de investigação requer do pesquisador um olhar inédito e uma atitude indagativa, com afirmações e interrogações que possibilitem “adentrar o mundo dos sujeitos da pesquisa, não como uma pessoa que sabe tudo, mas como alguém que quer aprender; não como uma pessoa que quer ser como o sujeito, mas como alguém que procura saber o que é ser como ele” (GHEDIN e FRANCO, 2008, p. 194).

A pesquisa qualitativa, primando pela leitura, pela interpretação, pela aproximação das possíveis e diferentes configurações que um problema de investigação assume, rejeita abordagens redutoras e reducionistas, privilegiando aportes teórico-metodológicos que permitam investigações a partir da multirreferencialidade dos fenômenos, dos fatos sociais e dos problemas a serem estudados (OLIVEIRA, 2003).

Dessa forma, considerando as características acima mencionadas, a presente investigação se desenvolveu a partir da pesquisa de tipo etnográfico, que é marcada pela tentativa de compreender a maneira de viver e os meios pelos quais essa maneira de viver se manifesta. Assim, segundo Ghedin e Franco (2008, p. 182, grifos do autor),

O processo de abordagem etnográfica move-se entre uma compreensão do que é o outro em seu próprio espaço e a possibilidade de inferir ou de agir em seu universo experimental e conceitual. De acordo com Castro, 1994 apud Ghedin Franco, (2008, p. 82), os insights, emoções, intuições, tudo é reconhecido e incorporado de forma sistemática no processo de pesquisa, pois o pesquisador se encontra inteiro nela e se modifica em seu decurso.

Portanto, mais do que descrever o universo das crianças, de suas culturas e relações, foi necessário explicá-lo para poder compreender os significados contidos nos gestos e ações realizados pelas crianças em interação com outras crianças e com os adultos, em situações particulares e/ou coletivas vivenciadas no pátio em momentos diversos.

Assim, o referencial teórico-metodológico que apresentamos está fundamentado em uma metodologia interpretativa com elementos da perspectiva etnográfica. A metodologia

interpretativa é assim denominada em função de se centrar na interpretação de um contexto específico, com um grupo também específico, sendo esse contexto acompanhado da forma mais apropriada possível (GRAUE e WALSH, 2003).

Já a etnografia, de acordo com Corsaro (2009), possibilita uma base de dados empíricos, obtidos através da imersão do pesquisador nas formas de vida do grupo, buscando compreender as ações e os conhecimentos culturais que determinados grupos utilizam, no sentido de “apreender a vida, tal qual ela é quotidianamente conduzida, simbolizada e interpretada pelos atores sociais nos seus contextos de ação” (SARMENTO, 2003a, p. 153).

O contexto, segundo Graue e Walsh (2003), não contém apenas a criança e suas ações, mas forma os indivíduos, e por eles é formado em integral reconstrução constante. Assim, ao evidenciar as interações entre as crianças, no contexto do cotidiano escolar, em momentos individuais e coletivos, de troca de experiências, diálogos verbais e gestuais, de brincadeiras, conflitos e amizades, buscou-se compreender e interpretar os seus conceitos, suas redes de significados e as conexões de sentidos partilhados entre pares, nos fazeres, saberes e sentimentos que tornam suas ações e culturas inteligíveis e relevantes.

No entanto, esses sentidos e ações das crianças, passíveis de serem lidos, interpretados e reconhecidos como produções culturais, não se encontram evidentes, pois exigem compreender toda teia de significados produzidos pelas crianças. Por isso, utilizar a metodologia interpretativa, fundamentada em elementos da etnografia, possibilitou vivenciar a pesquisa com as crianças e evidenciar a sua condição de atores sociais implicados nas mudanças e sendo mudados nos contextos sociais e culturais em que vivem.

Dessa maneira, viabilizou compreender as ações, os significados e os conhecimentos culturais que as crianças utilizam para produzir e interpretar as suas atividades cotidianas, nos diferentes momentos de interação e troca de experiências vivenciadas no Centro de Educação Infantil.

O princípio metodológico da reflexividade, considerada por alguns autores (CORSARO, 2009; SARMENTO e PINTO, 1997) como relevante na pesquisa do tipo etnográfica, também foi essencial neste estudo, pois possibilitou “compreender como adultos e crianças, adultocentrismo e processos interpretativos, se influenciam, constrangem, jogam e controlam no terreno das relações e interações sociais ocorridas.” (FERREIRA, 2009, p. 152). Assim, por meio do presente estudo, realiza-se

um duplo exercício de familiarização e distanciamento que é, no mínimo, instigante. Este jogo tenso de estabelecer relações entre o que é estranho e ao mesmo tempo tão próximo e íntimo é o que consideramos um desafio na produção nos estudos com crianças (DELGADO; MULLER, 2008, p. 9).

Diante do exposto, fica evidente que fazer pesquisa com crianças pequenas é um trabalho complexo, pois requer muita perspicácia por parte do pesquisador para compreender seus mundos, captar suas vozes, seus sentimentos, olhares, silêncios contradições, enfim, as “cem linguagens”23das crianças.

Assim, se há cem modos de ser criança, optamos não por uma única forma de aproximação e registro das experiências das crianças no Centro de Educação Infantil, pois, como afirma Oliveira (2001, p. 42),

A utilização de múltiplos procedimentos de pesquisa pode auxiliar os adultos – ainda em processo de alfabetização – na leitura dos cem modos de ser das crianças. Isto porque, pelo olhar dos adultos, há informações que podem ficar invisíveis dentro de uma abordagem, mas visíveis em outra.

Portanto, utilizamos a observação participante, o registro escrito no Diário de Campo (depois transformado em Notas de Campo), os registros fotográfico e audiovisual (vídeo), as entrevistas realizadas com as professoras e crianças e os diálogos estabelecidos com as crianças em situações diversas. A opção por estar e conversar com as crianças em determinados momentos escolares não significou que estes diálogos não tivessem objetivos. A convivência com as crianças propiciou colher, no grupo, as suas formas próprias de se expressar, de entender o mundo que as cerca, numa lógica diferente do adulto.

Fizemos as entrevistas na tentativa de, em vez de falar da criança, sobre ela ou por elas, falar com elas. Sabemos que suas falas são tão limitadas e polissêmicas quanto às dos adultos. As crianças não são as detentoras de verdades absolutas ou dotadas de um conhecimento puro, inovador e irrepreensível. Não se trata de tomar as suas falas como verdades ou mentiras, ou mesmo enaltecer um suposto saber infantil, mas sim entendê-las enquanto enunciados que supõem singularidades.

Os dados provenientes das entrevistas foram importantes para compor uma cartografia sobre os sentidos que as crianças atribuem à escola e às atividades que desenvolvem nesse ambiente, mas mostraram também que as crianças têm um jeito de falar que as diferenciam da fala de outras pessoas, em outras idades, uma maneira singular de falar. Elas não falam

23 A expressão cem linguagens é uma alusão à poesia Ao contrário, as cem existem, de Loris Malaguzzi

linearmente, é uma fala descontínua, mudam de assunto com muita facilidade, dão novas respostas em continuidade a um tema que foi tratado anteriormente, começam falando sobre um determinado assunto e dão continuidade inventando alguma história, etc.

Ainda no que tange aos procedimentos metodológicos, no percurso da pesquisa, já diante das falas das crianças, houve a necessidade de obter informações sobre a vida delas fora da creche e sobre suas famílias, no intuito de melhor compreender e analisar a relação da escola com as famílias e os jeitos de vivenciar a infância por elas vivida. Isso porque as crianças trazem, para o dia a dia no CEMEI, muitos dos elementos que compõem o seu viver fora desse espaço.

Assim, mesmo tendo a infância no CEMEI como centro da investigação, ela não pode ser vista isoladamente em relação aos elementos culturais, familiares e outros que constituem a sua vida para além dos limites territoriais da instituição, pois, na composição do sujeito- criança e de sua infância, há uma complexa rede de significados que existem independentemente de estarem ou não no espaço/tempo onde se originam.

Optamos por colher algumas informações da escola sobre as crianças que seriam essenciais à investigação. O veículo para a obtenção dessas informações foi a ficha de anamnese24 das crianças, que já estavam preenchidas em entrevistas realizadas pelas professoras com pais e responsáveis, no início do ano letivo. Porém, como poucas anamneses estavam prontas, organizamos com a equipe gestora, para que continuássemos a realizar essa conversa com pais e responsáveis.

Dessa maneira, os pais receberam um comunicado para que comparecessem à instituição, a fim de conversar sobre aspectos extra e intraescolares da vida da criança. Para isso, além do roteiro da anamnese, elaboramos uma entrevista25 com algumas questões sobre as crianças. Uma vez apresentados os procedimentos metodológicos utilizados, pode-se apresentar os primeiros passos da investigação e, assim, as primeiras aproximações do local e dos sujeitos da pesquisa.

24 A ficha de anamnese se encontra no Anexo1.

3.3 Primeiras aproximações: expectativas e inquietações do encontro com as crianças na