• Nenhum resultado encontrado

PROCESSOS DE SOCIALIZAÇÃO DAS CRIANÇAS NO COTIDIANO DA EDUCAÇÃO INFANTIL

2 CULTURAS INFANTIS ENTRELAÇANDO FIOS DAS INFÂNCIAS E FIOS

2.1 PROCESSOS DE SOCIALIZAÇÃO DAS CRIANÇAS NO COTIDIANO DA EDUCAÇÃO INFANTIL

As teorias tradicionais de socialização, como as de Durkheim (1858-1917) e Parsons (1930), enfatizaram a “via de mão única” desse processo. Assim, a geração mais velha ofereceria, por meio das instituições, modelos culturais de socialização a serem imitados. A socialização produziria a interiorização pelos novos membros de normas, valores, estruturas cognitivas, conhecimentos e práticas que garantiriam a reprodução social. Nessa perspectiva, as crianças sempre foram compreendidas como “menores” que precisariam ser tuteladas e normatizadas, para futuramente se transformarem em adultos adaptados (CASTRO, 2001).

Assim, as teorias tradicionais de socialização veem as crianças como consumidoras da cultura estabelecida pelos adultos. A socialização é vista como um processo pelo qual as crianças se adaptam e internalizam a sociedade. “Em outras palavras, a criança é vista como alguém apartada da sociedade, que deve ser moldada e guiada por forças externas a fim de se tornar um membro totalmente funcional” (CORSARO, 2011, p. 19).

Utilizarei os estudos de Corsaro (2011) para ampliar as reflexões sobre os modelos tradicionais de socialização, definidos como: o modelo determinista (funcionalista e reprodutivista) e modelo construtivista.

Para o modelo determinista, “a criança desempenha basicamente um papel passivo”. (CORSARO, 2011, p. 19). Dentro desse modelo, o autor define duas abordagens auxiliares diferenciadas, especialmente por conta de suas concepções de sociedade: o modelo

funcionalista e o modelo de reprodução.

O modelo funcionalista propõe a ordem e o equilíbrio da sociedade e destaca a importância de formar e preparar as crianças para se enquadrarem e contribuírem com essa ordem. Esse tem raízes na obra de Emile Durkheim (1858-1917), o qual remeteu as crianças para a condição de seres pré-sociais, assim tematizadas como objetos de um processo de inculcação de valores, normas de comportamento e de saberes úteis para o exercício futuro de práticas sociais pertinentes (CORSARO, 2011).

O modelo reprodutivista, por outro lado, enfocava conflitos e desigualdades sociais e argumenta que algumas crianças têm acesso diferenciado a certos tipos de treinamento e outros recursos sociais. Esse modelo incorpora a produção teórica sociológica de autores como Passeron (1930) e Bourdieu (1930-2002), que compreendem as crianças como objetos manipuláveis, vítimas passivas ou joguetes culturalmente neutros, subordinadas a modos de

dominação ou de controle social que levam à reprodução social ou manutenção das desigualdades sociais.

As teorias funcionalistas e reprodutivistas confirmam os efeitos do conflito social e das desigualdades sociais na socialização das crianças, porém subestimam as capacidades ativas e inovadoras de todos os membros da sociedade e ignoram a natureza histórica da reprodução e da ação social.

Outro modelo evidenciado por Corsaro (2011, p. 19) é o modelo construtivista, no qual “a criança é vista como agente ativo e um ávido aprendiz. Sob essa perspectiva a criança constrói ativamente seu mundo social e seu lugar nele”. Assim, esse modelo busca superar as teorias dominantes da psicologia do desenvolvimento e comportamento, que são universais e unilaterais, com a criança sendo formada e moldada por reforços e punições do adulto. Portanto,

neste modelo muitos psicólogos do desenvolvimento passaram a ver a criança como mais ativa do que passiva, envolvida na apropriação de informações de seu ambiente para usar na organização, construindo sua própria interpretação do mundo (CORSARO, 2011, p. 22).

Inicia-se na Psicologia, na Pedagogia e nas Ciências Sociais – Sociologia da Infância e Antropologia – uma busca para tirar as crianças do anonimato social e cultural em que essas áreas do conhecimento as colocaram. Para Corsaro (2011), a mobilização teórica e as pesquisas realizadas pela psicologia do desenvolvimento foram na direção certa, porém seu foco principal continua a ser o desenvolvimento individual.

Pode-se ver isso nas repetidas referências à atividade da criança, ao desenvolvimento da criança, ao processo da criança de se tornar adulta, bem evidentes na teoria de Piaget, que apresenta uma visão de criança ativa, mas solitária, isolada em seus próprios termos, pois o foco permanece sobre os efeitos das diferentes experiências interpessoais no desenvolvimento individual.

Outra limitação apontada por Corsaro (2011) à psicologia construtivista do desenvolvimento é a preocupação exagerada com o ponto de chegada do desenvolvimento, com o percurso da criança que iria da imaturidade à competência adulta.

O autor destaca que recentes debates teóricos e pesquisas realizadas por seguidores de Piaget e teóricos socioculturais influenciados por Vigotski, expandiram a teoria construtivista, reconhecendo a importância para o desenvolvimento infantil da atividade coletiva e conjunta: como as crianças negociam, compartilham e criam cultura entre si e com adultos.

No entanto, para Corsaro (2011), dizer que uma perspectiva sociológica de socialização destaca a importância de processos coletivos e conjuntos não é suficiente para construção de uma nova sociologia da infância. Segundo o autor, o problema está no termo socialização, pois ele traz uma conotação individualista e progressista que é incontornável.

Essa conotação é visível quando pais e professores da Educação Infantil falam sobre a importância desse nível de ensino para as crianças. Normalmente, afirmam que a Educação Infantil é importante para a socialização das crianças, pois estas aprenderão regras de convivência e se prepararão para a escola.

Assim, concordamos com Corsaro (2011, p. 31) que “qualquer pessoa que ouça a palavra, socialização, imediatamente pensa em formação e preparação da criança para o futuro”. É por conta dessa constatação que o autor propõe o conceito de reprodução

interpretativa:

O termo interpretativo abrange os aspectos inovadores e criativos da participação infantil na sociedade, pois as crianças criam e participam de suas próprias e exclusivas culturas de pares quando selecionam o se apropriam criticamente de informações do mundo adulto para lidar com suas próprias e exclusivas preocupações. O termo reprodução inclui a ideia de que as crianças não se limitam a internalizar a sociedade e a cultura, mas contribuem para a produção e mudanças culturais. O termo também sugere que as crianças estão, por sua própria participação na sociedade, restritas pela estruturação social existente e pela produção social. Ou seja, as crianças e sua infância são afetadas pelas sociedades e culturas que integram. Essas sociedades e culturas foram, por sua vez, moldadas e afetadas por processos de mudanças históricas. (CORSARO, 2011, p. 31-32)

Sarmento (2009) compartilha os pressupostos teóricos apresentados por Corsaro (2011), quando apresenta o conceito da reprodução interpretativa em alternativa à concepção que identifica nas crianças e em seus comportamentos; uma dinâmica passiva de reprodução da realidade. Dessa maneira, acredita que

as crianças não recebem apenas uma cultura constituída que lhes atribui um lugar e papéis sociais, mas operam transformações nessa cultura, seja sob a forma como a interpretam e integram, seja nos efeitos que nela produzem a partir das suas próprias práticas (SARMENTO, 2009, p. 29).

Nesse sentido, as crianças não incorporam passivamente os valores, crenças e conhecimentos socializados a partir da sua interação com os adultos, mas transforma-os, gerando juízos, interpretações e condutas infantis que contribuem para configuração e transformações sociais.

Os estudos de Corsaro (2011) e Sarmento (2009) assinalam e priorizam a dimensão da ação das crianças na construção dos seus modos de vida, pois apresentam a criança como ator social e a infância como categoria social do tipo geracional, socialmente constituída.

Portanto, a passagem da compreensão da criança de simples objeto ou produto da ação adulta para a de um ator (ou parceiro) de sua própria socialização é a grande mudança que se estabeleceu por meio dos estudos da nova Sociologia da Infância: a criança não é receptáculo passivo de socialização numa ordem social adulta. Essa releitura crítica do conceito de socialização no quadro estrutural-funcionalista, que leva a considerar a criança como um ator social, também questiona a visão moderna de infância (PINTO, 1997), e isso, por sua vez, permite compreender o caráter essencialmente político das visões de infância e criança nas sociedades, porque estão relacionadas à constituição e manutenção de determinada ordem social.

Ao estudar a infância, não é apenas com as crianças que a Sociologia da Infância se ocupa, mas com a totalidade da realidade social, pois as crianças constituem uma porta de entrada fundamental para a compreensão dessa realidade, seja no aspecto educacional, político ou econômico.

Dessa forma, utilizaremos os estudos das infâncias, das crianças e de suas produções culturais para adentrar os espaços da escola e compreender como os fios da(s) infância(s) foram e são tecidos nas tramas da escola, a partir de um olhar sobre/com o cotidiano escolar, em que uma multiplicidade de socialização pressupõe o confronto e o entrelaçamento entre culturas das crianças e culturas dos adultos.