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A fênix, o dragão, a grande enchente1, cabeça de boi e cara de cavalo. Esses são alguns personagens conhecidos do público por suas aparições em obras e são referências recorrentes de histórias, mais próximas de nós. Outros são inéditos e até mesmo bizarros. Porém, o que mais fascina na cultura chinesa é a riqueza que sua mitologia apresenta.

Estima-se que muitos dos contos que chegaram até nós possuem mais de 4.000 anos e que pertencem a um período em que ainda não havia uma corrente filosófica propriamente dita na China. A maioria dos relatos que foram compilados em livros e obras acadêmicas foi selecionada a partir de ditos populares que chegaram até os dias modernos por meio de

divulgação oral, o que é sem dúvida um feito notável. Quando se lê essas lendas, a primeira impressão é a de que são relatos mais ordeiros, por assim dizer, do que as histórias greco-romanas, por exemplo. Até mesmo mais inocentes. Algo que, com certeza, teria atraído Walt Disney a fazer suas versões animadas mais elaboradas.

Mesmo assim são histórias que encantam pela sua diversidade cultural, algo que em vários outros países do mundo não consegue atingir tal nível. Como vimos nos capítulos anteriores (e faço questão de lembrar isso nos próximos), a China de hoje é formada por mais de 20 etnias, cada uma com uma longa história. Por isso, é um trabalho hercúleo conseguir resumir essas influências de uma maneira que seja um retrato dessa diversidade.

Como veremos mais para frente em algumas das histórias coletadas, esses relatos sofreram influências das correntes políticas e religiosas que conquistaram o país. Na antiguidade, por exemplo, o país viveu sob grandes divisões. Depois da Dinastia Shang (que começou em 1766 e terminou em 1122 a.C.), que foi a primeira a unificar os reinos chineses, o país viveu sob o domínio de diversas outras dinastias e também sob intensas divisões étnicas.

A época áurea do pensamento chinês aconteceu sob a Dinastia Tang (que reinou entre os anos 618 e 907 da era cristã), quando houve um grande

avanço significativo da unidade do país e houve a reunificação dos reinos. Foi nesse período que foi registrado um grande desenvolvimento das artes e da literatura e também houve o aparecimento de correntes como o

confucionismo e o taoísmo, sobre os quais falamos com mais detalhes no capítulo passado.

Do confucionismo veio o gosto pelo trabalho, pela verdade e pela

lealdade. Já do taoísmo veio a simplicidade pelas diversas formas da vida, das quais a poesia é apenas uma delas. E não poderia deixar de citar o budismo, que também teve um papel marcante, afinal deixa clara a busca pela perfeição através do Buda. Essas três filosofias predominaram naquele país até a vinda dos comunistas, em 1949, quando passaram a governar o país. Embora o marxismo não tenha muita ligação com as tradições

culturais de lá, os governantes chineses buscam a preservação da identidade cultural do país.

Hoje em dia os avanços da China estão presentes nos principais

noticiários. Prestes a atingir a auto-suficiência alimentar, os chineses, que se juntam em um bilhão e duzentos milhões de habitantes, não podem ser colocados de lado quando o quesito é a cultura milenar. E nenhum outro documento pode atestar essa importância cultural do que os relatos que fazem parte de sua tradição. Por isso, vamos conhecer agora a mitologia chinesa e provar um pouco dessa cultura tão rica e densa que possui poucos padrões de comparação no mundo.

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Comecemos com uma rápida análise dos meios pelos quais essas lendas foram transmitidas. As lendas da mitologia chinesa falam, como não

poderia deixar de ser, da criação e fundação da cultura e do Estado chineses. Os pesquisadores acreditam que, como nas demais mitologias, essa é uma maneira de relembrar fatos há muito tempo passados.O início dessas lendas seria, segundo alguns, por volta do ano 1100 a.C. É mais ou menos nessa época que surgem os primeiros relatos escritos das lendas em livros como oShui Jing ZhuShui Jing Zhu e o Shan Hai JingShan Hai Jing.

O primeiro é um trabalho sobre a antiga geografia da China e pode ser traduzido comoComentário sobre o Pergaminho das ÁguasComentário sobre o Pergaminho das Águas. A versão escrita foi compilada por Li Daoyuan durante a Dinastia Wei, que unificou o norte da China por volta do ano 439. Esse trabalho, que já seria uma versão de um texto ainda mais antigo, foi aumentado em até 40 vezes seu tamanho srcinal. O texto anterior, que descrevia 137 rios diferentes na China, é tido como uma compilação realizada durante pelo menos três reinados por causa da diferença que se conhece entre os nomes dos países apresentados. Sua autoria srcinal é atribuída ao pesquisador da Dinastia Jin (265 – 420), Guo Pu. Basicamente fala sobre as hidrovias da antiga China e apresenta muitos aspectos de localidades sem ser ficcionalizado, embora acrescente algumas lendas a seus relatos.

Já o segundo é um texto clássico que possui pelo menos 2 mil anos e pode ser traduzido comoPergaminhoPergaminhodas Montanhas e Maresdas Montanhas e Mares. É um relato

fabuloso com informações geográficas e culturais da China na Pré-dinastia Qin (que reinou entre 221 e 206 a.C.), além de apresentar uma coleção de mitos. O livro possui cerca de 31.000 palavras e é dividido em 18 seções que descrevem 550 montanhas e 300 canais. Descreve os mitos, a magia e a religião chineses. É tido como uma das primeiras enciclopédias daquele país.

Além desses relatos por escrito, outros mitos encontraram meios diferentes para serem preservados, como o teatro e as canções. No final, grande parte deles foi registrada na obraFengshen YanyiFengshen Yanyi, uma das maiores novelas chinesas já escritas na Dinastia Ming (que reinou entre os anos de 1368 e 1644). A história trata do declínio da Dinastia Shang e da ascensão da Dinastia Zhou (1122 a 256 a.C.) e intercala vários elementos da

mitologia chinesa, incluindo deuses, deusas, imortais e espíritos. No geral, é uma extensão representativa e descritiva da vida chinesa naquela época, em que a religião tinha um papel importante na vida cotidiana. Sua autoria

é atribuída a dois escritores diferentes, Xu Zhonglin (morto em 1566) e Lu Xixing (morto em 1601).

Outros livros foram, com o tempo, reconhecidos como oHei’an ZhuanHei’an Zhuan

(traduzido comoO Épico da EscuridãoO Épico da Escuridão), uma coleção de lendas em forma de poesia épica. Foi preservado pelos habitantes da área montanhosa de

Shennongjia e contém histórias variadas.

No teatro e na literatura os destaques são a poesia dos estados antigos, comoLisaoLisao, de autoria de Qu Yuan, srcinário do Estado Chu; o romance A A

ornada para o Oeste

ornada para o Oeste, de autoria de Wu Cheng’en, um relato de uma peregrinação para a Índia, em que os personagens deparam com grande quantidade de espíritos, monstros e demônios; e, por fim, o Baishe ZhuanBaishe Zhuan, um conto romântico ambientado em Hangzhou (localizada na costa sudeste da China, hoje uma metrópole perto de Shanghai considerada a capital e centro cultural, político e econômico da Província de Zhejiang), que fala de uma cobra que assume forma humana e se apaixona por um homem.