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No Brasil, também o espaço de moradia dos pobres sempre foi olhado com certa desconfiança. A literatura mostra que, desde seu início, a favela foi considerada local da pobreza, mas também refúgio de criminosos.

Alba Zaluar (1998), no livro organizado por ela e Marcos Alvito, Um Século de

Favela, faz uma interessante reconstituição da história da favela no Rio de Janeiro.

Através de pesquisa em arquivos de jornais do começo do século, mostra que, já no seu início, os espaços eram divididos: a “cidade” representando o “progresso” e a favela, o “atraso”. A autora também mostra que a favela e seus moradores foram, nos diferentes momentos históricos, construídos como o outro, um espelho invertido do “tipo de

identidade de cidadão urbano que estava sendo elaborada, presidida pelo higienismo, pelo desenvolvimentismo ou, mais recentemente, pelas relações auto-reguláveis do mercado e pela globalização” (Zaluar & Alvito, 1998: 15). A dualidade se inspira na

realidade, mas tem a função de reforçar a diferença e a existência de dois Brasis, conforme podemos perceber no texto que segue:

Mas a favela ficou também registrada oficialmente como a área de habitações irregularmente construída, sem arruamentos, sem plano urbano, sem esgotos, sem água, sem luz. Dessa precariedade urbana, resultado da pobreza de seus habitantes e do descaso do poder público, surgiram as imagens que fizeram da favela o lugar da carência, da falta, do vazio a ser preenchido pelos sentimentos humanitários, do perigo a ser erradicado pelas estratégias políticas que fizeram do favelado um bode expiatório dos problemas da cidade, “o outro”, distinto do morador civilizado da primeira metrópole que o Brasil teve.” (Zaluar e Alvito, 1998: 7/8)

Para a autora, estudar uma favela carioca, hoje, é antes de tudo combater certo senso comum que já possui longa história e um pensamento acadêmico que apenas reproduz parte das imagens, idéias e práticas correntes que lhe dizem respeito. É tentar desconstruir um imaginário social arraigado em boa parte da sociedade que continua olhando a favela como o local da desordem e da falta e mostrar que esta é uma imagem reducionista de um local que prima pela complexidade. É, sobretudo, mostrar que a favela não é periferia, nem está à margem. (Zaluar,1998) Estimulados por alguns trabalhos de cunho contestatório, aumentaram, nos últimos anos, os trabalhos que enfocam os bairros populares e as favelas sob um prisma de maior diversidade, revelando a riqueza simbólica, apesar dos problemas estruturais. Trabalhos sobre bairros pobres do Recife também procuram iluminar as estratégias coletivas e individuais para agir e pensar, inserindo o grupo nos interstícios possíveis, para que estes moradores possam se diferenciar positivamente no campo de relações entre os ricos e os pobres no meio urbano. (Scott, 2007)

Infelizmente, com o crescimento do narcotráfico em algumas destas localidades, o enfoque volta a ser a violência. Esta construção social, no entanto, só perdura, porque existe, subjacente à ideologia, a necessidade de dicotomizar os espaços e separar o bom do mal, o feio do bonito, o sujo do limpo.

Os trechos citados e uma vasta literatura reforçam aquilo que no dia-a-dia e na mídia é possível confirmar: ainda perdura a associação da pobreza com o negativo e com a falta. Caldeira (1999) pesquisou os discursos sobre a violência na cidade de São Paulo e verificou que “mais do que manter um sistema de distinções, as narrativas

sobre o crime criam estereótipos e preconceitos, separam e reforçam as desigualdades”

(Caldeira, 1999: 48). A autora defende uma análise apoiada não apenas nas variáveis sócio-econômicas/urbanização para explicar a pobreza e o crime, como na combinação de fatores que tornam o sistema judiciário mediador de conflitos ilegítimos e encorajam a privatização dos processos de vingança (Caldeira, 1999).

Fechar os olhos para os aspectos negativos que as condições de extrema pobreza acarretam seria no mínimo ingenuidade. Também não é minha intenção camuflar a falta de condições básicas de vida que uma parcela significativa da nossa população enfrenta. Mas, apesar de discursos contrários, existe certa facilidade em reduzi-los a isto. O efeito impactante de algumas informações favorece a generalização de aspectos que são particulares a alguns e não a todos que vivem nestas condições (e em outras também). Uma família pobre não é necessariamente desestruturada, descuidada com seus filhos e sem condições de decidir como deseja educá-los. Por outro lado, quando um adolescente opta pela vida do crime, não podemos, antes de uma análise mais aprofundada, responsabilizar automaticamente sua família, independentemente da classe social a que ele pertença.

Procurei até aqui ilustrar o que venho afirmando sobre a construção da negatividade da pobreza determinando de forma mais ou menos arbitrária o final do século XIX como um marco. Não existe efetivamente um ponto de origem, mas alguns acontecimentos históricos, como a lei do ventre livre e, posteriormente, a abolição da escravatura, foram fatores desencadeantes de discussões e ações dirigidas a uma nova população livre que “surgia”. O livro “Olhares sobre a criança no Brasil – séculos XIX e XX”, organizado por Irene Rizzini ilustra, com vários textos, esta passagem.

A juventude, ao longo da história, marca sua “presença” de diferentes formas e contextos24. O jovem pobre, como ator social e alvo de preocupações, entra em cena bem mais tarde. A década de noventa é palco de grande mobilização em torno desta categoria, principalmente os jovens da periferia que insurgem com manifestações culturais que os situam como atores políticos. O hip-hop, principalmente, passa a ser alvo de grande interesse da intelectualidade brasileira. (Alvim, 2002) A partir deste momento, a juventude ganha um novo status como sujeito de direitos, mas também, devido à conjuntura política e social, como problema social.