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89 Analisando essa sequência de evoluções fonético-fonológicas, é possível formular a seguinte sequência de regras:

Nessas três regras se apresenta, portanto, a cadeia evolutiva da consoante nasal em final de palavra, com o estágio intermediário por que deve ter passado antes de sua completa supressão do sistema fonológico. Primeiro a vogal assimila o traço [+nasal] da consoante posvocálica /m/. Após essa nasalização, o /m/ sobre apócope, como demonstra a regra (2), restando somente do traço [+nasal] na vogal. Em (3), por fim, a vogal deixa de ser nasalizada.

Como já foi aqui comentado, esse foi um fenômeno ocorrido em todas as línguas neolatinas, sendo, portanto uma tendência românica geral de evolução fonética.

O interessante é que esse processo de apócope continua a acontecer atualmente no português do Brasil. Há, por exemplo, o caso da palavra homem, que na linguagem informal, na maior parte dos casos,

90 torna-se home, realizando-se como [ ] ou [ ]. Na língua padrão temos /omeN/, onde os fonemas /eN/ formam um ditongo nasal [ ], segundo nos indicam o ALERS24 e o ALiB. Segundo os dados do

ALERS, o apagamento do /N/ em homem, nos três estados da região Sul do Brasil, ocorre em mais de 70% dos casos, em média, considerando a amostra coletada. Contudo, não ocorre, no Brasil, o apagamento desse fonema apenas em homem. Esse processo ocorre de forma generalizada em outras palavras, como viagem > viage, virgem > virge, garagem > garage, entre outras (NARO & SCHERRE, 2007, p. 32).

Essa mudança fonética – já encontrada no latim vulgar – acaba por ter repercussões na estrutura morfológica. A consequência mais evidente do total apagamento do /m/ é a neutralização entre o nominativo e o acusativo na primeira declinação do latim. Os dois casos passam a ser expressos por morfema zero. E a alteração da morfologia provocará, como que um efeito em cadeia, alterações na própria sintaxe da língua.

Com essa mudança fonológica, o morfema [-m], que é marcador de primeira pessoa do singular em alguns tempos verbais, também é apagado, transformando-se em um morfema zero, tal como ocorreu com o marcador do acusativo. Será tal estrutura morfológica a herdada pelo português: ego amaba[m] > ego amaba[Ø] > eu amava[Ø].

No que se refere ao português contemporâneo, em variantes da modalidade não-padrão da língua, igualmente, a perda da nasal /m/ terá repercussões morfológicas. A terceira pessoa do plural neutraliza-se

91 com a primeira e segunda do singular nos contextos de menor saliência fônica: eu amava/ele amava/eles amava. Esse fenômeno de neutralização no português moderno pode ocorrer na fala de pessoas com pouca escolarização tanto no português de Portugal como no português brasileiro (NARO & SCHERRE, 2007). Neste último é possível encontrar essa variação em vários dialetos, como, por exemplo, no dialeto do litoral de Santa Catarina, que é influenciado pela imigração açoriana, e no dialeto caipira ou – para ser mais preciso – as variedades dialetais genericamente agrupadas sob essa denominação.

Dados empíricos confirmam a correlação entre a mudança fonética, que tem eliminado o /m/ em final de palavra, e a mudança morfológica, a concordância ou não de número nos verbos. Rodrigues (2007), estudando a fala de 40 moradores de favelas da periferia da capital de São Paulo, com até quatro anos de escolarização e provenientes de diversas regiões do Brasil, revelou que em 71% dos casos não houve a concordância de terceira pessoa do plural. O que confirma que o português brasileiro popular “tende a não aplicar sistematicamente a regra padrão de CV [concordância verbal] estabelecida pela gramática normativa [...]” (2007, p. 118).

A falta de concordância verbal revela uma relação com mudanças fonológicas, pois Rodrigues (2007) mostrou que quanto menor a saliência fônica entre a forma do singular e a do plural, maior é a não concordância. A falta de concordância em fala/falam alcançou 94%. Isso significa que quanto menor é a diferença sonora entre a concordância e a não concordância, esta é a que prevalece.

92 O fator relevante na variação/mudança é a posição do /m/ posvocálico: se ocorre no meio ou no fim de palavra. Ele é apagado com altas porcentagens quando em final de palavra, justamente pela menor perceptividade acústica por parte do falante/ouvinte desse fonema em posições átonas finais. O vocábulo barragem, por exemplo, teve 92% de apagamento no sul do Brasil.25 Por outro lado, quando em meio de

palavra, a síncope não ocorre comumente, pois sua ausência ou presença serve para a distinção semântica entre palavras diferentes, como em popa/pompa ou boba/bomba. No caso dos vocábulos bomba e pomba não se registrou o apagamento da nasal. Sua posição no interior da palavra ou em sílaba tônica favorece o não apagamento, porque nesses contextos sua realização é mais perceptível, também servindo para estabelecer uma oposição de significados.

A realização fonética desse arquifonema, no português atual, está condicionada pelo contexto seguinte. Há sempre um processo de assimilação do ponto de articulação pelo arquifonema /N/. Realiza-se como alveolar diante de alveolar, velar diante de velar, e bilabial diante de bilabial. Exemplos:

Canta – [t] é bilabial > Canga – [g] é velar > [ g Campa – [p] é bilabial > [

25 A variante com apócope, “barrage”, teve 46 ocorrências, de um total de 50. Esse dado foi obtido no questionário semântico-lexical (QSL) do ALERS (questão 022).

93 2.4 A PERDA DAS OCLUSIVAS EM FINAL DE SÍLABA

A estrutura fonológica do latim clássico permitia a ocorrência de oclusivas em posição de coda, tais como /k/ e /t/: actionem, nunc, amat, atque. Contudo, já no latim vulgar observa-se uma progressiva perda das oclusivas em final de sílaba:

Essas codas com oclusivas deixam de existir em português, como bem recorda Mattoso Camara (2008 [1970]). Palavras eruditas como atmosfera ou acne, apesar de na ortografia aparentar ter a presença de oclusiva em coda, na verdade se realizam foneticamente como [atimos f ] e [ akin ], respectivamente, vocábulos nos quais há um /i/ epentético que surge após a oclusiva.

Como acabou de ser dito, a perda das oclusivas posvocálicas remonta ao período do latim vulgar. As inscrições descobertas nas escavações feitas em Pompeia, que foi soterrada pelo vulcão Vesúvio no ano 79 d.C., revelaram um grande corpus do latim vulgar. Nessas inscrições feitas informalmente, nas paredes de banheiros, por exemplo, é comum ver que “as consoantes finais da desinência de terceira pessoa do singular (-t) dos verbos de modo finito apocopavam-se” (CUNHA LOPES, 2004, p. 110). Há, portanto, uma mudança fonética que desencadeia uma mudança morfológica, que é a perda do morfema

94 verbal [-t]. Desse modo, a terceira pessoa passa a ser expressa por um morfema zero: ama (-t) valia (-t) (=valeat) peria (-t) (=pereat) vota (-t) nosci (-t) (=nescit)

O Appendix Probi também indica a queda a oclusiva /k/ na posição de final de sílaba. Os vocábulos latinos auctor e auctoritas tornam-se autor e autoritas, e serão estas formas, com padrão silábico simplificado, que vão ser herdadas pelas línguas neolatinas.

Outro fonema oclusivo, /g/, também se perde pelo processo de palatalização diante da nasal /n/, como nos casos ligna e signum que se transformam por meio da aplicação de leis fonéticas regulares em lenha e senha. Nesse exemplo, a oclusiva sonora velar palataliza a nasal [n], por efeito de uma assimilação progressiva, transformando este fonema na palatal [ ]. É evidente que nesse caso não há uma mudança morfológica, mas o que importa destacar é o caráter geral da mudança, a alteração da coda silábica, com a posterior possibilidade de alteração na estrutura morfológica, em certos contextos.

A oclusiva em final de sílaba também pode se vocalizar, como nos indica novamente, o Appendix Probi, no qual vemos pegma26 passar