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22 Tradução: “A ti, que dominas as regiões infernais, peço e encomendo Júlia Faustila, filha de Mário, para que a leves mais rapidamente e a conserves aí no número (dos mortos)” (COUTINHO, 1978, p. 37).

85 No exemplo acima as palavras em negrito estão no caso acusativo, e deveriam ter, portanto, segundo a língua padrão, um m final como marca da função sintática de objeto direto. O interessante é ver como ainda há um processo de variação nesse caso, pois os vocábulos eam e numerum ainda apresentam a consoante nasal ao seu fim.

Porém, antes do total apagamento do m em posição final de sílaba, temos vários testemunhos de gramáticos latinos que comentam sobre as diferentes realizações desse fonema, que estavam condicionadas pela sua posição, se no início meio ou fim da palavra. Um desses gramáticos é Quintiliano, que fornece uma precisa descrição da pronúncia do m no latim de seu tempo.

Ora aquela mesma letra (i.e, o M) tôdas as vêzes que termina uma palavra e se torna contígua da vogal inicial da palavra seguinte, de sorte que com ela se possa juntar, ainda que se escreva é pouco pronunciada, como em multum ille e quantum erat, tanto que produz o som de uma espécie de nova letra; com efeito ela não é suprimida mas se obscurece (é debilmente articulada) e nesta posição é apenas como que um sinal entre as duas vogais para que elas não se contraiam (apud FARIA, 1957, p. 96).

Dessa forma, o fonema nasal tem uma pronúncia em início de sílaba, bilabial, mais forte, e outra em posição final, um fonema mais debilmente articulado, mas que ainda assim se pronuncia. Ao falar de

86 obscurecimento da consoante, Quintiliano talvez se refira ao fato de que o fonema havia evoluído para se tornar uma simples nasalização da vogal antecedente. De fato, “vários especialistas modernos acham que o –m final latino não deveria ter sido articulado, consistindo o seu valor apenas em nasalizar a vogal que o precedia [...]” (FARIA, 1957, p. 98). Outro gramático latino, Prisciano, também comentou sobre a pronúncia do m em posição posvocálica:

o m soa obscuro (quase imperceptível) no fim das palavras, como em templum; claramente no princípio, como em magnus; com um som médio no meio das palavras como em umbra. (apud FARIA, op. cit., 95).

Os testemunhos dos gramáticos latinos são importantes, porque deles se pode inferir quais fatores internos (contexto fonológico) influenciavam na variação do fonema /m/. Um primeiro fator importante é o de estar em final de palavra sucedido por vogal, na palavra seguinte. Esse é o contexto que menos favorece a pronúncia do /m/, que tende aqui a se enfraquecer, ou melhor, sofrer abrandamento, possivelmente pelo contexto intervocálico. Já o contexto de meio de palavra e fim de sílaba favorece sua preservação.

Como foi dito, no latim vulgar perde-se o fonema /m/ em posição posvocálica. É evidente que o completo apagamento da consoante nasal /m/ em final de palavra não ocorreu de forma mecânica e rápida. Pode-se inferir, pelo que ocorre hoje no português do Brasil, que a mudança deve ter passado por alguns estágios intermediários.

87 Primeiro, ainda no período arcaico do latim, o /m/ deveria ser pronunciado plenamente como uma consoante posvocálica nasal.

Num segundo momento, deve ter ocorrido a nasalização da vogal anterior com a manutenção do /m/. Nesse caso acontece um típico processo de assimilação do traço de nasalidade, como ainda é comum no português, em que a primeira vogal da palavra banana, por exemplo, pode se tornar uma vogal nasal devido ao contexto seguinte, que é constituído por consoante nasal.

Posteriormente, a pronúncia da própria consoante nasal em coda deve ter se abrandado por causa da nasalização da vogal precedente. Não é possível precisar em que período deve ter ocorrido esse processo de mudança, mas ele já estava consolidado na língua no final da república, época em que encontramos um curioso fato envolvendo a figura de Vérrio Flaco. Pouco antes de nossa era, ele queria propor a invenção de uma nova letra para representar esse som nasal, que já não era mais pronunciado como o /m/ de início de palavra. Vérrio Flaco “queria notar o m mal percebido no fim de palavra com a metade anterior da letra apenas [...]” (HIGOUNET, 2008, p. 105). É o gramático Vélio Longo que em sua obra informa sobre a invenção dessa letra:

[...] como usava Vérrio Flaco, tôdas as vêzes em que a primeira palavra terminasse por m e a seguinte começasse por vogal, não se escrevia a letra m inteira mas apenas a primeira parte dela, para indicar que não deveria ser proferida. (apud FARIA, 1957, p. 97)

88 A ideia de Vérrio Flaco tem sua lógica, pois se o som nasal era mais “fraco” do que o /m/ de início de palavras, como em mater, poderia ser escrito com um símbolo que transmitisse a ideia dessa diferença fonética na articulação. De qualquer forma, mesmo a ideia não tendo sido concretizada, ela confirma que as grafias da época – principalmente nos registros mais informais da língua, como os grafites de Pompeia – tendiam a reproduzir a fonologia da língua. Com essa constante tendência à representação da estrutura fonológica por parte da escrita, deduz-se que no latim clássico – na verdade bem antes disso – o fonema grafado com m era de fato pronunciado como um fonema nasal bilabial.

Após a nasalização da vogal anterior e o posterior enfraquecimento do /m/, como nos indica Vérrio Flaco, há o total apagamento do fonema, ficando somente o traço nasal na última vogal. Posteriormente, essa nasalidade da vogal, como atestam todas as línguas neolatinas, foi também perdida na passagem ao latim vulgar.

rosam > rosãm > rosã(m)23 > rosã > rosa

Esse apagamento da nasalização final deve ter se iniciado nos contextos em que no latim clássico o /m/ já se apresentava em processo de abrandamento, ou seja, quando a palavra seguinte começava em vogal. Depois, a mudança deve ter se expandido aos demais contextos, eliminando a marca de acusativo e uma das flexões verbais de primeira pessoa do singular.