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Capítulo I – O sujeito e o normativo na modernidade: a construção social do racismo e

Capítulo 3 O GENOCÍDIO DE JOVENS “NEGROS” EM SÃO GONÇALO (RJ): a

3.2.5 Enfrentando práticas de um passado permanente

Em contra partida, enquanto a favela e a periferia clamam pelo direito a vida, segmentos conservadores da sociedade com uma força patológica (MARTINS, 1996) clamam pela volta da intervenção militar, sem levar em consideração que a intervenção militar de 1964 nunca se apartou das favelas e das periferias para garantir a paz que eles temem estar ameaçada, um medo produzido já início da modernidade, mas que se potencializou no século XIX e perdura até os dias atuais (BATISTA 2003.a)114.

114 De acordo com Batista (2003.a) P. 168) o discurso racista da medicina social do XIX no Brasil, do

qual teve sua origem no século XVIII na Europa, potencializou a invenção do “negro” como uma criatura maligna e tenebrosa, A disseminação de que o “negro” era portador de malignidades torna “negro” “(...) como um obstáculo à higiene e à “criação de uma família brasileira sadia”, seja pelas “patologias produzidas”, pela amamentação, pela degradação dos costumes, pela prostituição ou pela moral.”, constrói uma atmosfera de medo no centro urbano do Rio de Janeiro do século XIX, por conter, de acordo com o censo de 1849, a maior população “negra” das Américas.

Dessa forma, para se combater o “inimigo” construído pela racionalidade burguesa, as “elites” cariocas recorrem ao seu braço protetor, o Estado e as suas forças militares, evocando uma militarização permanente dos lugares e seus nativos. Sendo assim, resquícios da ditadura militar de 1964 é o aporte da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro, formas arcaicas que se estendem até a atualidade (ZAVERUCHA, 2010; MARTINS, 1996)

A comissão da verdade do Rio – CEV-Rio – sobre a ditadura militar demonstrou no seu relatório em 2015, como foi a ditadura nas favelas do Rio de Janeiro. Para além de uma política habitacional e urbana elitista e segregadora, por meio das remoções forçadas e erradicação das favelas do estado da Guanabara, o regime militar se voltou contra as populações moradoras das favelas com o aumento do aparato repressivo. Sob dois argumentos: a criminalização da população residentes nas favelas e a existência de esquerdistas infiltrados o que ocasionariam em perigo de uma insurreição comunista dos favelados liderados pelos “elementos esquerdistas”. Dessa forma, uma série de violações de direitos se acirrou nas favelas na ditadura, já que a favela sempre foi alvo de criminalização e discriminação, desde antes de sua gênese pelo estigma que carregava sua população que era de maioria “negra” (CAMPOS, 2007). Dentre elas, estão à limitação ao direito de circulação dos moradores, o cerceamento da expressão de sua identidade individual e coletiva presente, como por exemplo, a perseguição aos bailes black, perseguição as organizações de esquerda que negavam as ideias de democracia racial, prisões arbitrárias de trabalhadores, invasões às casas dos moradores, tortura física e psicológica, grupos de extermínio de homens e mulheres “negros”, principalmente nas de favelas, no subúrbio e na Baixada Fluminense.

A CEV-Rio (2015) também nos apresentou a dimensão racista da ditatura e sua tentativa de velar esse racismo por intermédio do discurso da democracia racial reforçando a violência de Estado contra os “negros” evidenciadas por três eixos:

Outra passagem que nos chama a atenção em Batista (2003.a) sobre a invenção do africano na diáspora como o ser “negro” pela medicina social é a de que o leite de escrava que foi usada de ama de leite por longas décadas contaminaria os filhos brancos de suas sinhás: “Pelo peito das negras as crianças brancas sugavam todo tipo de vício, de acordo com a intelligentsia médica em formação: “Não pararão aqui os males, de que podem ser victimas os innocentes meninos, confiados a cuidados, a que preside quasi sempre a estupidez, a preguiça, a indolência, e para cumulo de miséria, em alguns casos de malignidade”. Tudo o que restringe, como disse Machado de Assis, “toda a quinquilharia da infância ocuparia muito mais do que o lugar dos seus nomes”, dos nomes das amas-de-leite do século XIX.” (BATISTA, 2003.a, P. 165).

Violências estruturais de teor racista, mobilizadas por agentes do Estado e impactadas pelo incremento geral da violência vivenciada no período; práticas adotadas pelo aparato repressivo da ditadura contra as articulações de combate ao racismo que foram se desenvolvendo no período; graves violações de direitos humanos sofridas por negros que militaram nas organizações políticas de esquerda, de forma a que sejam conhecidos ex-presos, mortos e desaparecidos negros do período e que seja desmistificada a ideia de que revolucionário não tem cor. (CEV-RIO, 2015 P. 125-126)

Segundo o CEV-Rio (2015) durante a ditadura, com o aumento militarização do Estado, as violências praticadas pelas polícias civil e militar contra a população negra se intensificaram. Significava a implementação pelo Estado de uma política criminal com raiz no colonialismo escravocrata, se desdobrando no racismo institucional das forças de segurança.

No entanto, conforme já citado, “aonde há poder há resistência” (FOUCAULT, 1988), dessa forma, a resistência do povo Negro à estas violências da ditadura militar mobilizou na década de 1970 um movimento político-cultural de crítica ao racismo e à discriminação racial, em que deu origem à criação do Movimento Negro Unificado (MNU) em 1978. O CEV-Rio (2015) cita as entidades que tinham como objetivo a denúncia e o enfrentamento das desigualdades raciais e da violência do corpo negro e sua trajetória histórico-política, como por exemplo, o Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA) em 1973, a Sociedade de Intercâmbio Brasil-África (SINBA) em 1974, o Instituto de Pesquisas da Cultura Negra (IPCN) em 1975, o Grupo de Trabalho André Rebouças em 1975 e o Centro de Estudos Brasil-África (CEBA) em 1975. O regime militar considerou a organização desses grupos como uma ameaça as ideias do mito da democracia racial e a luta antirracista como um movimento de contestação à ditadura.

Um dos legados deixados pela ditadura são as blitz, no entanto, enquanto na ditadura o resultado era o encarceramento demasiado e ilegal, hoje a resultante é o extermínio legitimado no “auto de resistência” que também fora criado no período da ditadura militar conforme Decreto-Lei 3.689/41, ou na "lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial" ou "homicídio decorrente de oposição à ação policial", sendo os dois últimos termos formulados em substituição do termo auto de resistência, mas que na prática não deixou de ser velho auto de resistência, conforme foi questionado pela Anistia Internacional e apresentado aqui anteriormente. O fim do auto de resistência é um reivindicação de vários grupos de defesa dos direitos humanos,

especialmente das mães vítimas de violência, contudo não basta apenas por fim na nomenclatura, mas nas ações letais por funcionários do Estado.

Em busca de pôr fim às ações violentas do Estado legitimado pelo auto de resistência, lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial ou homicídio decorrente de oposição à ação policial, uma Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI115

da ALERJ foi aprovada e deu origem a CPI dos autos de resistência. O estopim para a formação da CPI foi à ação de cinco policiais militares no Morro da Providência no Rio de Janeiro em 29 de setembro de 2015116, em que após execução de um adolescente de 17

anos, forjaram o auto de resistência colocando uma arma na mão do adolescente depois de morto e disparando tiros com o intuito de provar que ele estava em uma troca de tiros com os policiais. Porém, toda ação foi filmada por moradores que denunciaram por meio das redes sociais e mídia de grande circulação. Cabe lembrar que, como já foi demonstrado nos dados acima, mais de 70 % das vítimas são jovens “negros”. Logo consideramos que a CPI se constitui como um marco importante de enfrentamento ao genocídio “negro”. Até a presente data a CPI ainda não havia sido concluída.

Na segunda audiência da sessão da CPI de auto de resistência, em 05 de novembro de 2015, o Deputado Paulo Ramos do PSOL cita os policiais do 7º Batalhão de São Gonçalo, batalhão esse apontado como o líder no ranking dos batalhões mais letais do estado do Rio de Janeiro, conforme demonstramos acima. O deputado cita o caso da juíza Patrícia Acioli assassinada por policiais desse batalhão em agosto de 2011. Segundo o deputado um dos policiais envolvidos possui dezoito “autos de resistência”. Dessa forma, para o deputado é passível de interpretar que há um consentimento, uma cumplicidade jurídica em todas as suas esferas, pois em suas palavras117:

Se um policial, em uma unidade operacional, ele subscreveu dezoito autos de resistência, existe uma cumplicidade ali, que dezoito autos de resistência na mesma unidade! Se aquilo fosse um inconveniência para administração e para a sociedade que não tem conhecimento, obviamente, ele não teria

115 “As comissões parlamentares de inquérito (CPI) são temporárias, podendo atuar também durante o

recesso parlamentar. Têm o prazo de cento e vinte dias, prorrogável por até metade, mediante deliberação do Plenário, para conclusão de seus trabalhos.”. Texto extraído do site da camara dos deputados.http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-

temporarias/parlamentar-de-inquerito. Consultado em 25 de abril de 2016.

116 Fonte: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/09/imagens-mostram-pms-mexendo-em-cena-

de-homicidio-na-providencia-rio.html. Consultado em 25 de abril de 2016.

117 Fala do deputado aos 5’20. Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=WFMifIMlhUU.

permanecido naquela unidade a partir do segundo ou já teria sido responsabilizado. Dezoito? Só se o ministério público estava cumpliciado e o juiz da comarca também. Não pode haver outra interpretação! (RAMOS, 2015)

Outro aspecto também levantado na CPI pelo Deputado e relator Marcelo Freixo - PSOL118 na sessão de 26 de novembro de 2015, foi o fato de que o “auto de

resistência” acaba por buscar a folha criminal da vítima e isso representa um perigo. No qual 98 % dos casos são arquivados, não havendo instauração de inquérito contra o homicida, conforme transcrevemos no trecho abaixo:

Tem uma prática que é comum, e isso precisamos falar aqui, muitas vezes o dito auto de resistência acaba sendo utilizado para investigar o morto. O que acaba gerando, evidentemente, o resultado que nós já sabemos. É uma prática comum e é muito perigoso isso. A gente define o padrão do cumprimento da lei conforme a vítima. Isso é muito perigoso e sabemos que parte da sociedade, inclusive, apela para isso. Mas o Estado existe não necessariamente para cumprir aquilo que parte da sociedade, independente do quantitativo, diz que tem que ser, senão não precisaria existir Estado. E nesse sentido é comum, têm provas e pesquisas sobre isso, do delegado pedir, por exemplo, a ficha criminal do morto na investigação do auto de resistência. Qual a necessidade disso? Isso pode ser necessário em um momento ou em outro. Mas isso virá regra. (FREIXO, 2015)

Levando em consideração a seletividade das vítimas expressa nos dados, homens, jovens e “negros” corroboramos com Batista (2003) ao apontar que os depoimentos e discursos de técnicos e agentes do Estado não são em nada neutros e por vezes proclamam e escondem em seus pareceres conteúdos racistas, moralistas e segregadores, construindo estereótipos com um olhar lombrosiano. Dessa forma, compreendemos a prática mencionada por Freixo, de investigar a vida pregressa da vítima do “auto de resistência” como uma forma de legitimar sua ação letal já que como Mbembe (2014) nos coloca, o ser “negro”, já nasce como um jazigo, símbolo da morte, portanto já morto, sendo assim, no imaginário racista dos agentes do Estado amantes de práticas de “autodefesa”, se já estão mortos, não há problema em apertar o gatilho.

118 Fala do relator aos 2’44. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=f4ZLk0r8RZg.