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Capitulo 2: Mulheres no movimento hip hop: um breve perfil

2.6. Constituição de lideranças femininas

2.6.1. Enfretamentos individuais

O primeiro grupo corresponde às jovens que desenvolvem estratégias de enfretamentos individuais. As ações individuais são necessárias para pensar os processos de transformações e mudanças nas relações de gênero, haja vista que são nas relações mais íntimas, de suas vidas cotidianas, que a opressão também é exercida de forma a limitar a experiência das mulheres.

Esse grupo está dividido entre as jovens que possuem a) um estilo próprio e mais autônomo na sua arte, e as que b) provocam resistências às tensões entre o público e o privado. Sobre a questão do estilo próprio e autônomo, destaca-se Amanda. No mundo artístico a autoria é uma peça importante para se adquirir reconhecimento. No movimento hip hop percebe-se que muitas jovens não possuem reconhecimento enquanto artistas. Como já destacado no inicio deste capitulo, nas observações de campo sempre ouvia reclamações de que elas eram sempre referidas como “a namorada de fulano” e sua arte sempre estavam atreladas a ele. Costa e Samico também discutem essa afirmação:

A ausência desse reconhecimento do trabalho artístico feminino, a existência de uma escala de valoração, a qual o trabalho das mulheres está subordinado e as implicações das relações afetivo-sexuais com jovem que pratica o mesmo elemento artístico, para dar visibilidade à condição de subordinação do trabalho feminino (COSTA & SAMICO, 2011, p. 12).

Essa relação hierárquica que se constitui no movimento hip hop entre os trabalhos masculinos e os femininos reflete esse espaço machista. Percebe-se que apesar das mulheres serem um grupo oprimido nesse espaço, não implica na ausência de autonomia. O que está em jogo muitas vezes é o “mau olho” (BHABHA, 2010), a invisibilidade do potencial da mulher nesse espaço. Ao desenvolver características autônomas em suas artes, elas provocam uma estratégia de resistência importante para disputar esse espaço hierarquizado e naturalizado.

Exemplarmente, destaco algumas jovens que vêm construindo atributos diferenciados em suas artes. Amanda é uma grafiteira, na faixa dos vinte anos, que ao fazer a arte no muro, se destaca por utilizar outros acessórios, aqui mais especificamente, pano de chita. O grafite com chita sinaliza uma diferente forma artística de desenvolver sua arte e uma forma de chamar atenção a partir de um autonomia em relação ao uso da estética.

No rap também destaco duas cantoras Cristiane e Valéria. Elas fazem parte de um grupo na cidade de Recife. Em suas músicas, essas jovens, além de publicizarem temáticas do cotidiano e do mundo privado, têm como outro ponto relevante a vizibilização da sexualidade feminina. Ao estar no palco utilizam-se da sensualidade que diz respeito a um chamamento à liberdade, do exercício sexual feminino e do desejo. Elas usam roupas curtas, ao cantar utilizam-se do rebolado e de posturas sensuais. Sua música, intitulada, “Nêgo Show” também se insere nesse cenário, pois diz respeito à valorização da figura do homem negro e do desejo que ele provoca nas mulheres.

Em contraposição a esse cenário, constata-se que historicamente a entrada das mulheres no movimento hip hop da cidade de Recife é marcada por vestimentas e estilos masculinos, elas usavam roupas de homens com o objetivo de serem aceitas nesse espaço (COSTA & SAMICO, 2011; SILVA, 2011). Atualmente esse cenário vem sendo modificado, muitas jovens se vestem a partir de um estilo próprio, sem necessariamente seguir a estética masculina. Ao se utilizar de vestimentas justas e de um estilo mais “feminino” essas jovens implantam signos de comunicação na ordem de uma afirmação e diferenciação de status. Elas sinalizam para uma forma de ser própria e maior autonomia em relação à estética.

Se por um lado essas posturas sensuais podem significar ambiguidades, pois, em certa medida esse posicionamento evidencia um padrão corporal que ressalta a mulher como “o belo” e ligado ao valor da sexualidade. Por outro lado, diferente, do estilo Gangstar, estilo muito frequente nos Estados Unidos, que ressalta a mulher sexual, com roupas curtas, fácil, em busca de dinheiro e fama às custas dos rappers, essas jovens se colocam enquanto protagonistas. Elas evidenciam seus desejos e utilizam-se do corpo e da voz para expressá-los, não são os homens que discorrem acerca delas. Elas também não se posicionam enquanto objetos sexuais que são atraídas pelo dinheiro e fama, o

que elas evidenciam são seus desejos sexuais, ação que de acordo com Matsunaga (2008, p. 113) é interpretada pelo movimento hip hop “como promiscuidade quando vivenciada livremente”.

Assim, essas jovens vêm provocando situações contra hegemônicas no espaço do movimento, ao chamar atenção sobre sua decisão acerca do seu corpo e sua sexualidade, elas desafiam as posições de gênero e os códigos corporais do movimento. Esse corpo sensual e sexual se apresenta enquanto um artefato político que colocam em xeque posturas e “papéis” valorados para ser mulher nesse universo e evidenciam a transformação desses corpos ao longo do tempo.

Além do mais, o direito sobre o corpo faz parte de uma demanda feminista. Exemplifico aqui a reivindicação posta pela Marcha das Vadias, que por meio da mobilização faz-se uma crítica em âmbito internacional da cultura machista que reprime a sexualidade feminina e rotula-as numa dicotomia: “Santa” ou “Vadia”. Usar roupas curtas é um direito da mulher sobre seu corpo, fato que não dá ao homem o direito de invadir esse espaço, nem depreciá-la por isso.

No que se refere às características que versam sobre resistências às tensões público e privado, refiro-me especificamente as jovens que vivenciam situações de casamento e responsabilidades com os filho (a)s. Essas, em sua maioria, enfrentam dificuldades de negociar o tempo no movimento devido as duplas e tripas jornadas ocasionadas a partir das responsabilidades domésticas, vida profissional dentre outros compromissos. Como já mencionado no inicio deste capítulo, esses são motivos que fazem com que as jovens abdiquem da sua participação no movimento.

Algumas das jovens informaram que o casamento e a maternidade colaboram para o afastamento do movimento e mesmo do investimento artístico, já que normalmente, após o casamento e especialmente após o nascimento de filho(a)s a rotina muda devido à ausência de uma “divisão de tarefas e de responsabilidades que possibilite a continuação da carreira artística para as mulheres depois do casamento ou do nascimento dos filhos”. (COSTA; SAMICO, 2011, p. 9).

A maternidade, o matrimonio e/ou nascimento de filho(a)s, de acordo com a pesquisa de campo e outros trabalhos aqui mencionados, se coloca como um forte marcador na desistência/afastamento das jovens do movimento. A partir dessa afirmação, as mulheres que conseguem permanecer no movimento após a maternidade e o matrimônio provocam resistências às atribuições dos “papéis” sociais. “Papéis” esses

que estão configurados na estrutura que determina a relação público/privado e divisão sexual do trabalho. De acordo com Danièle Kergoat (2009, p.67).

A divisão do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais de sexo; essa forma é historicamente adaptada a cada sociedade. Tem por características a destinação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera da reprodutiva e, simultaneamente, a ocupação pelos homens das funções de forte valor social agregado (políticas, religiosas, militares, etc.).

Sendo o movimento hip hop um espaço político, com suas ações na esfera pública, as mulheres que estão nesse ambiente precisam negociar essa dimensão socialmente atribuída ao homem, como também a dimensão reprodutiva, destinada socialmente ao âmbito feminino. Das mulheres que continuam no movimento após a maternidade e/ou matrimônio emergem novas configurações que tendem a questionar a própria existência dessa divisão.

É importante destacar que essa permanência ou não no movimento não se trata apenas de uma decisão pessoal. São dimensões mais amplas e de âmbitos materiais, como apoio de familiares e companheiro, dentre outras, que impedem que essas jovens possam continuar praticando sua arte. No caso da liderança Bruna, ela comenta que para estar nos espaços do movimento precisa levar seu filho ou contar com o apoio de parentes e amigos que se disponibilizem a ficar com a criança. Apoio que nem todas as jovens possuem. Percebi durante minha inserção no campo que também existem alguns casos em que as jovens se afastam por um tempo e depois retornam. Esse tempo dura em média dois (2) anos.