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No momento em que Charles Chaplin idealizou Tempos Modernos, a depressão econômica era uma realidade nacional e mundial, manifestada em todas as instâncias da vida pública. Este foi o grande tema do momento, muitas vezes discutido pelo autor junto às autoridades européias durante sua viagem ao continente no início dos anos 1930. Um bom exemplo disto foi sua conversa com Mahatma Gandhi. O líder hindu, que lutava para eliminar o domínio inglês sobre a Índia e que se encontrava em Londres no período, acreditava que a tecnologia resultante do avanço das máquinas industriais teria contribuído para a hegemonia inglesa na região. Não por acaso, Chaplin incluiu em seu filme uma sátira contundente à mecanização do ser humano nas grandes fábricas.

Uma outra importante circunstância foi a ascensão do cinema sonoro e de suas técnicas. Enfrentando com audácia os presumidos avanços da sétima arte, Chaplin manteve mudo o seu protagonista, ainda que tenha acrescentado alguns mínimos diálogos em personagens secundários. Optou por incorporar uma partitura musical, que ele mesmo compôs com a supervisão de Alfred Newman, e uma canção conhecida como Titina, cuja letra era um apanhado de inúmeras palavras sem sentido ou tomadas de outros idiomas, fato que para muitos biógrafos de Carlitos corresponde a uma crítica do autor às “amarras” impostas pela sonorização do cinema. As notícias de que Carlitos estava produzindo um filme com sérias implicações sociais criou esperanças e medo por parte de alguns setores que se opunham ao autor. Para Georges Sadoul:

Chaplin afastou-se mais do que nunca do mundo Hollywoodiano com Tempos Modernos. Dizia-se até que ele pensava em deixar ao mesmo tempo a capital do cinema americano e a personagem de Carlitos. Teria encetado negociações com Alexandre Korda para uma produção em Inglaterra. Teria ao mesmo tempo considerado propostas que lhe davam carta branca para realizar um filme na URSS. Mas Chaplin não se decidia a deixar o seu estúdio e a equipe dos seus colaboradores.41

Durante os anos de 1934 e 1935 se afirmava que o filme manifestaria a odiosa luta de classes, a tragédia do pequeno burguês frente ao capitalismo e uma mensagem revolucionária. Certamente não seria o primeiro filme da época a tocar em temas sociais, mas prometia ser um expoente entre eles, promessa fortalecida graças à importância e repercussão garantida pelo nome do seu criador. O filme efetivamente proporcionava um receio capitalista frente ao risco de que ali estivesse preconizada a revolução social, mas ao mesmo tempo desiludiu a muitos dos que acreditaram que Tempos Modernos apresentaria as reais condições de vida naquele período. Boa parte do enredo é composta de variados números cômicos, sem qualquer relação com o social.

Os episódios do princípio apresentam o vagabundo Carlitos como o trabalhador de uma fábrica, função que permite ao personagem burlar algumas regras impostas. Sua obrigação de apertar continuamente uma mesma peça o

leva a perder a cadência dos segundos, atrasando a cadeia de produção e provocando uma grande confusão. Há um momento em que é utilizado como beneficiário de uma estranha máquina de comer, que colocava alimentos em sua boca mediante braços mecânicos, até enlouquecer o aparato e sua vítima. O que transparece em Tempos Modernos certamente não é uma oposição de Chaplin à indústria, sem a qual não teria sequer uma câmera para expressar sua arte, mas o perigo de que o ser humano tivesse uma vida canalizada e manipulada, resumindo sua existência às engrenagens de uma máquina.

Aproveitando seu individualismo e freqüente repugnância ao consenso, Chaplin utilizara a complexidade do maquinário moderno para defender o ser humano perante elas. Os seus inimigos, fiéis aos princípios anticomunistas e imbuídos de falso patriotismo, não foram suficientemente capazes de deduzir que mesmo a União Soviética não seria um paraíso para Chaplin ou para seu personagem. A genialidade de Carlitos foi expressa através de intencionais ambigüidades, permitindo a cada espectador diferentes interpretações. Há um momento central no filme, em que o vagabundo recolhe um pano vermelho, recém-caído de um caminhão, e o agita freneticamente para chamar a atenção do descuidado motorista, sem perceber que às suas costas uma manifestação estava se aproximando. Conforme Walter da Silveira:

Muito sutilmente, Chaplin elegeu a sátira como forma. Necessitava conciliar a individualização artística com o pensamento social. E a sátira tradicionalmente serviu aos grandes artistas para golpear a opressão com uma fantasia pessoal. Panfleto contra a sociedade industrial, o filme castiga as suas contradições. Desde a máquina que desumaniza o operário ao limite de enlouquecê-lo à fome que aliena os desempregados em assaltantes de rua. Há uma greve. A polícia intervém. Um trabalhador é morto. E Carlitos, que não participava do movimento, vai preso por ter apanhado na rua a bandeira dos grevistas.42

Os espectadores da esquerda entenderam que Chaplin manifestava uma acusação contra a polícia, famosa por deter aqueles que empunhassem bandeiras vermelhas. Com similar coerência, a crítica cinematográfica de perfil

42

SILVEIRA, Walter da. Imagem e Roteiro de Charles Chaplin. Salvador: Editora Mensageiro da Fé, 1970. p. 42.

conservador propôs o inverso, em que Carlitos estaria ironizando a credulidade dos manifestantes os quais não suspeitavam do “líder” que os conduzia ao mesmo tempo em que os ignorava, desconhecendo os seus motivos. Não nos arriscaríamos a propor uma saída para este “impasse”, o certo é que estes “enigmas chaplinianos” foram responsáveis por formar uma brilhante geração de intelectuais por todo o mundo, independentemente de suas convicções.