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Capítulo II: A criação de repertório da canção de protesto em Portugal e no exílio na

1) Enquadramento político: as “crises académicas” e a Guerra Colonial

Na viragem da década de 1950 para 1960, o país vive algumas das maiores experiências na luta contra a ditadura. O início da década de 1950 é marcado por uma certa acalmia política, a que se seguiu uma forte repressão a organizações e movimentos de contestação ao regime ditatorial, de que são exemplo as perseguições e prisões de alguns influentes membros do PCP que operavam na clandestinidade. A nível internacional, observou-se o desenvolvimento de movimentos de libertação das colónias, sobretudo a partir do final da II Guerra Mundial. Estes movimentos tiveram um forte apoio dos sectores intelectuais e estudantis dos países colonizadores o que em Portugal levou a que o Estado Novo procurasse solucionar as críticas vindas do estrangeiro às políticas coloniais. Entretanto, já em finais dessa década ocorrem as eleições que iriam ser essenciais no contexto do desenvolvimento dos movimentos populares de contestação ao regime por todo o país. Em 1958, as eleições que opuseram o Almirante Américo Tomás – candidato da União Nacional - e o General Humberto Delgado - pela oposição - provocou uma onda de manifestações verificada nas grandes massas de apoio que se reuniram nos comícios de Humberto Delgado, algumas delas marcadas por uma intensa repressão policial. O resultado das eleições – 25% para Delgado e 75% para Tomás – apesar de repetidamente apontados como desvirtuados, influenciaram vários sectores da população e em particular nos meios estudantis das Universidades de Coimbra, Lisboa e Porto, onde a oposição ao regime havia começado a desenvolver-se com firmeza.

Para Eduardo Raposo, a publicação em 1956 do Decreto-Lei 40 900, pôs em causa a autonomia das estruturas associativas e provocou uma onda de unificação nas universidades que contagiou grande parte da população estudantil. A imposição de representação de delegados nas Assembleias Magnas das Associações Académicas impedia a participação livre de todos os seus associados, transgredindo o que era considerado uma característica essencial das academias, como refere Raposo: “a representatividade e a legitimidade assegurada através do mecanismo de eleição directa dos seus dirigentes a que se juntava a reivindicada tradicional posição de

«neutralidade ideológica» (política e religiosa), para além da sua importância no quotidiano académico devido à sua intensa actividade de carácter sociocultural” (Raposo, 2004:34). No mesmo sentido, para José Mário Branco a onda de contestação ao Decreto-Lei 40 900 “propiciou a unificação das lutas nos três polos universitários então existentes (Coimbra, Lisboa, Porto)” e contagiou igualmente a mobilização de estudantes dos liceus em várias cidades do país (Branco, 2008:149).

Em Coimbra, a crescente participação de estudantes ligados a uma tendência “esquerdista” nas Assembleias Magnas e as constantes vitórias que iam conseguindo contra elementos afectos ao regime que se iam misturando nas reuniões, teve repercussão nas eleições para a Direcção Geral da Associação Académica de Coimbra (AAC) com as vitórias de listas apoiadas em grande parte por elementos ligados a organizações da esquerda política e democratas. Em 1962, o I Encontro Nacional de Estudantes em Coimbra e as comemorações do Dia do Estudante foram os dois momentos marcantes da crise académica desse ano. Segundo Accornero (2009), desde 1956 que as celebrações do Dia do Estudante, para além de aspectos lúdicos, envolviam o debate de questões sociais e problemáticas políticas ligadas a questões universitárias. Desta forma, a realização do Encontro de Estudantes em 1962 foi marcado por um discurso reivindicativo no sentido de apelar à mobilização da massa estudantil para as comemorações, tendo provocado a intervenção da polícia e a proibição dos festejos nos três polos universitários, acabando com uma invasão policial à sede da AAC. Como consequência foi lançado o luto académico, que entre outras medidas, implicava greves às aulas e exames, suspensão das festas académicas, ocupações de salas de aula e edifícios da universidade. O movimento académico estendeu-se às universidades de Lisboa e Porto, assim como abrangeu o envolvimento não apenas de alunos, mas também de professores e dirigentes das três universidades15 do país. As prisões, julgamentos e cargas policiais caracterizaram fortemente esse período, durante o qual os convívios e plenários de alunos eram realizados quase diariamente. Para Eduardo Raposo, foi durante esta crise que se cimentou o ponto de viragem dos movimentos estudantis, tanto na luta pelos seus direitos como na tomada de posição contra o regime ditatorial e as suas políticas:

“Fruto de uma conjuntura particular em que a crise funcionou como catalisador positivo de uma convergência de sensibilidades tão diversas como comunistas, católicos, «humanistas laicos» e até a direita académica – que aderindo nas primeiras semanas quando os dirigentes associativos lançaram o luto académico, possibilitou o êxito e a quase unanimidade inicial do movimento” (Raposo, 2004:46).

A agitação estudantil tornou-se assim uma das referências no contexto das lutas políticas e a sua “politização (…) representou um dos sectores mais combativos da resistência nos anos seguintes” (Côrte-Real, 2010:222). Outro acontecimento que veio influenciar decisivamente os desenvolvimentos de uma consciência social em alguns sectores da população e em particular as temáticas e percursos de alguns cantores de protesto foi a Guerra Colonial. Tal como já foi referido, após a II Guerra Mundial vários movimentos de independência das colónias, localizadas sobretudo em África, foram-se desenvolvendo tendo sido apoiados por grande parte do sector intelectual e académico de vários países europeus. Em 1961, a sublevação dos movimentos de independência e resistência em Angola provocou um efeito de catadupa nas outras colónias portuguesas, em particular Guiné-Bissau, Cabo Verde e Moçambique, provocando assim o início da Guerra Colonial que se estendeu por um período de treze anos, apenas terminado com o sucesso da revolução. Como consequência, verificou-se o aumento do apoio de vários sectores da população aos movimentos de contestação à Guerra, exigindo direitos de liberdade e independência dos povos das colónias. Milhares de soldados que cumpriam o serviço militar obrigatório foram reconduzidos para as frentes de guerra, provocando a insatisfação no seio das forças militares e a fuga para o exílio dos que não queriam participar na guerra.

Tanto a crise académica como as consequências da Guerra Colonial são representativas do contexto político e geográfico de desenvolvimento da canção de protesto que se desenvolve através da consciencialização de problemas sociais que afectaram a população e os estudantes. A seguir, são descritas algumas formas de como a canção utilizada como forma de protesto no início dos anos 60 e nos contextos de expressões musicais em Coimbra e no exílio, está profundamente ligada a todo este conjunto de contestações sociais que marcaram a vida política nesse período.

Não se pretende aqui determinar ou identificar traços distintivos de uma prática no sentido de definir a autonomia da mesma como género ou estilo musical, mas sim procurar compreender essas práticas inseridas num contexto social, cultural e político com contornos geográficos identificados. Desta forma, descrevem-se sinteticamente os contextos de criação desse repertório nesses dois terrenos, bem como a interpretação de valores que enformaram as expressões musicais a que ficaram associadas canções e intérpretes.

2.2 – Explorações da “balada” na Canção de Coimbra: a criação do repertório da