• Nenhum resultado encontrado

Capítulo II: A criação de repertório da canção de protesto em Portugal e no exílio na

4) Os novos intérpretes

Denotam-se assim certas confluências entre os trajectos dos cantores de protesto em Portugal e no exílio. Por um lado, é possível depreender que o percurso de alguns intérpretes que estavam em Portugal, como José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e Carlos Paredes, começa a associar-se aos valores partilhados por uma geração essencialmente estudantil mobilizada em movimentos de contestação que estão na base do apuramento de variações estilísticas de materiais musicais pré- existentes da canção de Coimbra. Por outro, alguns cantores que se evidenciaram no exilio carregam já uma consciencialização política e começam a escrever canções enformados tanto pelas influências dos que já o faziam em Portugal, como pelo ambiente político e cultural que encontraram em França.

A partilha de ideologias e valores estéticos comuns neste grupo de cantores pode ser verificado nas relações de contactos que estes vão fazendo em contextos performativos, mas igualmente de gravação e produção fonográfica, como será discutido no capítulo seguinte. Exemplo paradigmático das relações entre os músicos é

48 idem

a organização do espectáculo “La Chanson de Combat Portugaise”, realizado no Théatre de la Mutualité em 1969, que contou com a participação de José Mário Branco, Luís Cília, José Afonso, Tino Flores, Sérgio Godinho, Vitorino, entre outros. Para Tino Flores este espectáculo teve o intuito de mostrar o papel da canção e a união dos cantores na resistência e lutas políticas, representando na óptica dos músicos um importante momento não só no relacionamento entre este grupo de cantores, mas também a importância das canções para a denúncia da situação política portuguesa na Europa49.

Neste contexto a noção de “consciencialização social” aliada a formas de expressão musical e protesto social pode ser aferida a partir da proposta de Eyerman e Jamison (1998), segundo os quais o envolvimento de cantores em processos de mobilização social é construído na base da sua consciencialização e na partilha de valores comuns. Isto é verificado pelo facto de todos estes cantores e outros associados à produção musical das primeiras canções de protesto estarem envolvidos em actividades de resistência política que igualmente enformou essa consciência. Assim, a relação com a audiência e a transmissão de ideias de consciência política articulada pelos contextos de criação musical, destaca-se nos usos de algumas canções que são reconhecidas pela maior parte dos envolvidos nos movimentos sociais académicos e reflecte-se na forma como estas são construídas a partir da rejeição de expressões de estilos musicais “convencionais” e através do uso de conteúdos de ideologias políticas partilhadas nas letras das mesmas.

Entretanto, em Portugal, vários acontecimentos proporcionaram que este repertório e a sua preponderância em contextos performativos se tornassem um meio de transmissão e partilha de valores em diversos movimentos de contestação ao regime, em particular em eventos de solidariedade e manifestações de trabalhadores e estudantes. No campo político, com o acidente de Salazar em 1968 e o afastamento deste da presidência do Conselho de Ministros, assiste-se à mudança da liderança do

49 Este espectáculo terá tido, no entanto, alguns percalços, com a circulação de um folheto que denuncia a música de José Afonso como demasiado próxima à balada e a supostos valores estéticos veiculados pelo regime, em contraste com a apologia a uma autêntica música de combate atribuído ao “folk” de Tino Flores. Igualmente este episódio é revelador de algumas diferenças ideológicas em grupos de extrema-esquerda ligados à resistência politica portuguesa e que se manifesta nas concepções genéricas da música de protesto

regime. Marcello Caetano assume a governação e enceta um conjunto de mudanças de liberalização de estruturas do regime, num período conhecido como “Primavera Marcelista”, mas que na prática não passavam de reformas que em nada alteraram o papel das políticas repressivas e ditatoriais que então caracterizavam o Estado Novo50. Mantiveram-se as prisões políticas, a censura e as perseguições a oposicionistas ao regime, bem como a Guerra Colonial e, como consequência, os exilados políticos e a emigração, motivando a continuação da organização de estruturas de oposição ao governo. No espaço universitário, uma nova crise académica em 1969 provoca novas ondas de contestação ao regime no meio estudantil de Coimbra, Lisboa e Porto.

É praticamente unânime a posição de vários agentes consultados nesta investigação em apontar que a conjuntura de mudanças sociais, culturais e políticas ocorridas no país na viragem da década de 1960 para 1970 influenciaram um vasto sector da população estudantil e intelectual e que no campo da música levaram letristas e intérpretes a identificarem-se com o movimento musical da canção de protesto – agentes e práticas - e a integrarem esse movimento. Dessa forma, em finais da década de 1960 são já vários os intérpretes, como Manuel Freire, José Jorge Letria, José Barata Moura, Pedro Barroso, António Macedo, Samuel, Francisco Fanhais, entre outros, que surgem em diferentes contextos de contestação social a adoptar as diversidades estilísticas da “balada”, tendo sido este movimento fundamental para o desenvolvimento e construção de um repertório de canções associadas ao protesto social.

Assim, o aparecimento de canções e cantores de protesto durante todo este período ganha toda uma nova dimensão com a circulação de repertório não apenas em contextos performativos associados a eventos de contestação política, mas também em contextos de mediatização massificados. Esta ideia da importância de valores ideológicos de partilha que podem ser verificados nas práticas musicais e nos percursos biográficos de alguns cantores enformados pela integração em movimentos sociais e políticos, terá também impacto nas formas como são desenvolvidas relações de contacto com os diversos agentes envolvidos na produção fonográfica dos cantores de protesto.

50 Por exemplo, a mudança de designações de instituições como a PIDE, que passa a designar-se Direcção-Geral de Segurança, ou a Censura, agora designada de Exame Prévio

No próximo capítulo, tendo em conta as propostas existentes de configuração da indústria fonográfica em Portugal, explorarei as motivações e significados atribuídos à gravação e comercialização deste repertório, verificando o papel de determinadas editoras e meios de comunicação na difusão de alguns desses intérpretes.

CAPÍTULO III – A CANÇÃO DE PROTESTO E A PRODUÇÃO FONOGRÁFICA EM TEMPOS