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O Estado enquanto formador de consenso e relação social: revisitando os conceitos de Gramsci e Poulantzas

CAPÍTULO I – A RELAÇÃO TRABALHO E EDUCAÇÃO NO CONTEXTO DA REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA

EXISTÊNCIA DO HOMEM E DO SER SOCIAL

1.2 ESTADO NEOLIBERAL E A CRISE NO MUNDO DO TRABALHO

1.2.1 O Estado enquanto formador de consenso e relação social: revisitando os conceitos de Gramsci e Poulantzas

Gramsci apresenta o Estado como uma formação específica dentro da organização social de produção da vida, em que se estrutura como organismo próprio, resultante da correlação de forças sociais, sendo hegemônica12 a classe dominante. Ele consiste em “todo o complexo de atividades práticas e teóricas com as quais a classe dirigente não só justifica e mantém o seu domínio, mas consegue obter o consenso ativo dos governados” (GRAMSCI, 2011, p. 331). Como grupo dominante dentro do Estado, a classe dominante cria condições favoráveis à ampliação do seu domínio através da incorporação de determinadas demandas da classe trabalhadora e pela educação do consenso (GRAMSCI, 2011)

O Estado é concebido por um processo dinâmico de luta de classes, entre os interesses da classe dominante e os interesses da classe trabalhadora, se constituindo em

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Tratamos hegemonia, segundo o conceito de Gramsci, como uma forma de dominação, em que uma classe legitima sua posição obtendo, muitas vezes, aceitação irrestrita da outra classe.

um espaço de embate entre os interesses dos diferentes grupos, os quais exercem tanto influência ou pressão no Estado como resistem à dominação.

A relação de forças estabelecidas na sociedade também se manifesta no âmbito do Estado, e, como um campo de forças, seu movimento é orgânico (permanente) e conjuntural (momentâneo).

Gramsci amplia o conceito de Estado ao explicá-lo como resultado da conjunção entre sociedade política e sociedade civil, no qual o exercício do poder é exercido por meio da “hegemonia couraçada de coerção”. Como partes do Estado, nas suas funções, a sociedade civil e a sociedade política mantêm uma relação orgânica e dialética, estruturando-se da seguinte forma:

A sociedade política (que Gramsci também chama de “Estado em sentido estrito” ou de “Estado-coerção”), que é formada pelo conjunto dos mecanismos através dos quais a classe dominante detém o monopólio legal da repressão e da violência e que se identifica com os aparelhos de coerção sob controle das burocracias executiva e policial militar; e a sociedade civil, formada precisamente pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias, compreendendo o sistema escolar, as Igrejas, os partidos políticos, os sindicatos, as organizações profissionais, a organização material da cultura (revistas, jornais, editoras, meios de comunicação de massa) etc. (COUTINHO, 1999, p. 127)

O Estado burguês, ao incorporar em seu interior as demandas das diferentes camadas de classe, amplia seu campo da ação, mantendo o equilíbrio, no sentido de evitar conflitos que afetem a ordem estabelecida. No âmbito da sociedade civil, a classe dominante, por meios coercitivos combinados com o consentimento, contribui para a conformação da classe trabalhadora aos imperativos da hegemonia burguesa. É nesse âmbito que a hegemonia, na relação dialética entre coerção e consenso, é construída sob a disputa entre as classes sociais que a compõem. Considerando que o modo de produção capitalista não consegue manter-se exclusivamente pelo aspecto econômico, faz-se necessário que a classe dominante, na disputa pela hegemonia na sociedade civil, sustente sua ideologia.

Em resumo, o Estado exerce um papel educativo formativo, tendo como objetivo final “elevar a grande massa da população a um determinado nível cultural e moral, nível (ou tipo) que corresponde às necessidades de desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, aos interesses das classes dominantes” (GRAMSCI, 2011, p. 284). Gramsci entende Estado como a correlação entre sociedade política e sociedade

civil, sendo a primeira formada pelos aparelhos como o governo, a justiça, a burocracia, as instituições militares e policiais; já a segunda abrange os “aparelhos privados de hegemonia” como as organizações escolares, as organizações religiosas, os partidos políticos, as ordens e os conselhos profissionais, os grupos de mídia e produção cultural etc. Desse modo, o Estado “educa o consenso”, por mediação, tanto dos aparelhos governamentais quanto dos aparelhos privados de hegemonia, sob a perspectiva da classe dominante, criando um ambiente de conformação social em torno da aceitação ideológica às determinações das relações sociais capitalistas.

Poulantzas (2000) enfatiza a necessidade de se compreender a importância e de como é forjada a luta de classes na ossatura institucional do Estado. Ao conceituá-lo, o autor afirma que o Estado se constitui pelas relações sociais. Assim, não é uma “coisa” nem tampouco um “sujeito”, mas uma materialidade específica formada na luta de classes. O Estado como “coisa” é sem autonomia e se configura como instrumento a serviço de uma única classe ou fração de classe. O controle político seria exercido unicamente pela burguesia e sempre a seu favor. Sob esse entendimento, as contradições de classe estão restritas ao exterior do Estado.

Em outro extremo, o Estado como “sujeito” aparece com autonomia absoluta, desempenhando o papel de árbitro entre as classes sociais. Este Estado sujeito seria submetido a uma vontade racionalizada, oriunda da sociedade civil. Dessa forma, o Estado seria então gerido por uma política externa ao próprio Estado, pela burocracia e pelas elites políticas, submetidas aos interesses mais diversos da sociedade civil.

Ao abordar o tipo de relação que forma o Estado, o autor diz que ela é uma “condensação material e específica de uma relação de forças entre classes e frações de classe.” (POULANTZAS, 2000, p. 131)

É a relação do Estado como condensação na separação capitalista do Estado e dessas relações de produção e da divisão social do trabalho, concentrada na separação capitalista do Estado e dessas relações, que constitui a ossatura material de suas instituições (...) O Estado não se reduz à relação de forças, ele apresenta uma opacidade e uma resistência próprias. (Ibid, p. 133)

A burguesia enquanto classe dominante no seio do Estado capitalista se apresenta não de forma homogênea e absoluta, mas relacional com as demais frações burguesas. Poulantzas (2000) explica que o processo de organização do Estado não resulta de uma prévia existência da burguesia como classe dominante que se utiliza do

Estado como instrumento da sua dominação. Mas que o processo de organização do Estado se faz no bojo das relações de produção capitalista estabelecidas pela luta de classes no processo histórico específico.

Desse modo, a política do Estado se manifesta como resultado das contradições de classes que formam o bloco no poder13 na estrutura do Estado. E é no jogo dessa condensação material de uma relação contraditória que, paradoxalmente, torna-se possível a função de organização do Estado (POULANTZAS, 2000, p. 136). Isso mostra que os conflitos e contradições sociais manifestam-se dentro do Estado, mas que também o constituem e o definem em toda a sua opacidade.

Assim, o nível de contradição que se manifesta no interior do Estado está relacionado ao grau de correlação de forças de cada uma das classes ou frações de classes, numa determinada conjuntura específica. Contudo, o Estado encontra limites na organização do capital, na perspectiva de que este consegue superar suas contradições pela política de Estado.

Esses limites do papel organizacional do Estado não lhe são impostos somente do exterior. Eles não se referem unicamente às contradições inerentes ao processo de reprodução e acumulação do capital, mas igualmente à estrutura e ossatura material do Estado, que, ao mesmo tempo, fazem dele o lugar de organização do bloco no poder e lhe permitem uma autonomia relativa em relação a tal ou qual suas frações. (POULANTZAS, 2000, p. 136)

A teoria relacional do Estado, elaborada por Poulantzas, não se refere apenas à relação de forças entre as frações dominantes do bloco no poder, mas também à relação de forças entre as classes dominantes e as classes dominadas. As contradições e divisões dentro do Estado também são resultado das lutas populares no Estado. A existência da classe trabalhadora não se materializa no seio do Estado da mesma maneira que as classes e frações dominantes, mas de maneira específica. Sobre esse aspecto, o autor afirma que:

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Poulantzas (2000) explica o conceito de bloco no poder como classes ou frações de classes distintas que se relacionam, de forma dinâmica e contraditória, no seio do Estado, sob a hegemonia de uma dessas frações ou classes. Isso permite explicar as classes que compõem o poder numa situação concreta. Quando falamos da classe burguesa, entendemos que ela é composta por frações como burguesia agrária, burguesia industrial, burguesia de serviços, burguesia financeira, que em determinado momento histórico detém a hegemonia do Estado.

Os aparelhos de Estado consagram e reproduzem a hegemonia ao estabelecer um jogo (variável) de compromissos provisórios entre o bloco no poder e determinadas classes dominadas. Os aparelhos de Estado organizam-unificam o bloco no poder ao desorganizar-dividir continuamente as classes dominadas, polarizando-as para o bloco no poder e ao curto-circuitar suas organizações políticas específicas. A autonomia relativa do Estado diante de tal ou qual fração do bloco no poder é necessária igualmente para a organização da hegemonia, a longo termo e de conjunto, do bloco no poder em relação às classes dominadas, sendo imposto muitas vezes ao bloco no poder, ou a uma ou outra de suas frações, os compromissos materiais indispensáveis a essa hegemonia. (POULANTZAS, 2000, p. 142-3)

“Em resumo, as lutas populares estão inscritas na materialidade institucional do Estado, mesmo se não se esgotam aí” (Ibid, p. 167). O caráter relacional do Estado é condensado, no que Poulantzas chama de ossatura material do Estado, que é uma organização específica que garante a dominação, mas uma dominação que está sempre em construção dentro de uma materialidade específica. Nesse sentido,

a relação das massas com o poder e o Estado, no que se chama especialmente de consenso, possui sempre um substrato material. Entre outros motivos, porque o Estado, trabalhando para a hegemonia de classe, age no campo de equilíbrio instável do compromisso entre as classes dominantes e dominadas. Assim, o Estado encarrega-se ininterruptamente de uma série de medidas materiais positivas para as massas populares, mesmo quando estas medidas refletem concessões impostas pela luta das classes dominadas. (Ibid, p. 29)

O autor ainda enfatiza a necessidade de se analisar o Estado como materialidade histórica, que se caracteriza por formas específicas de atuação que sofrem mudanças constantes com fim de manter-se operando. As transformações do Estado ocorrem no compasso das transformações nas relações de produção e da divisão social do trabalho, e tais transformações permitem a reprodução do capital no seu tempo e espaço.

Ao abordarmos as especificidades das políticas de Estado, entendemos que elas são práticas que detêm um papel importante na constituição do Estado capitalista. As políticas de Estado entendidas como relação são constituídas pelos resultados das contradições de classe inseridas na própria ossatura do Estado, sendo este formado tanto pelas contradições como pela reprodução das divisões de classe nos diversos ramos e aparelhos que o representam. Suas práticas expressam seu caráter tanto de coerção quanto de consenso, e são expressas na relação contraditória que estabelece com as classes dominadas na sua materialidade.

Compreendemos que tanto o Estado quanto a sociedade civil não são um corpo homogêneo. O Estado não é apenas um corpo político administrativo, e, assim como na sociedade civil, não está isento de conflitos. Ele se configura como arena de disputa de projetos societários, na qual a correlação de forças tende aos interesses da classe dominante, que, no geral, leva à ampliação da acumulação capitalista e em maior grau, da fração da classe dominante hegemônica do bloco no poder (POULANTZAS, 2000).

Gramsci e Poulantzas, ao analisarem o Estado, respectivamente, como formador do consenso e como relação social, fornecem o entendimento de como o Estado se constitui e atua, sendo esse entendimento fundamental para uma proposta contra a hegemônica. Ao definirem o Estado como uma arena de disputa, esses autores sugerem o domínio dessa condição de suma importância para a proposição da luta de classes com vias à construção da sociedade socialista.