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Ensinamentos maquiavelianos: novos marcos da história e da ideologia.

Capítulo II O nascimento da ideologia no humanismo cívico florentino

2.5. Ensinamentos maquiavelianos: novos marcos da história e da ideologia.

O grande ensinamento de Maquiavel, segundo Lefort, foi o de ter empreendido uma reflexão sobre os fundamentos da política, sobre os princípios geradores responsáveis pela forma que adquire a coexistência humana numa sociedade. Diz o pensador francês: “para o intérprete que junta suas leituras do Príncipe e dos Discorsi, [a interrogação de Maquiavel] sobre o principio se revela indissociável da descoberta de uma divisão originária do corpo social”101. O estatuto da divisão

social, que Lefort retira de Maquiavel, continua uma questão aberta, que está longe de encontrar consenso entre os comentadores102. Afinal, em que dimensão se localiza a divisão do corpo político?

101 LEFORT, C. Le travail de l’oeuvre. Machiavel. Paris: Editions Gallimard, 1972, p. 722.

102 O entendimento sobre o estatuto da divisão civil em Maquiavel é objeto de infindáveis controvérsias no debate atual.

Houve, no século XX e ainda hoje, um reconhecimento de que as noções de conflito e divisão são centrais em Maquiavel. O trabalho de Lefort se destaca nesse sentido, ao elaborar uma interpretação sui generis acerca da divisão originária do corpo político, extraindo consequências que extrapolam o âmbito da interpretação da obra maquiaveliana e se revelam estruturantes no desenvolvimento de sua concepção contemporânea acerca da democracia. Para ficarmos apenas com as principais linhas de interpretação sobre a divisão civil em Maquiavel, indicamos algumas das principais posições: 1) a interpretação “liberal” de Skinner em seu livro Maquiavel. São Paulo: Brasiliense, 1988; 2) a interpretação de Helton Adverse no artigo Maquiavel, a república e o desejo de liberdade. Trans/Form/Ação. São Paulo, 30(2),p. 33-52, 2007; e, 3) a interpretação de José Luiz Ames: Liberdade e conflito – o confronto dos desejos como fundamento da ideia de liberdade em Maquiavel. Kriterion, Belo Horizonte, n.º 119, p. 179-196, Jun. 2009.

Podemos apreendê-la tão somente pela observação? Lefort não toma a via da observação empírica para compreender a divisão própria à sociedade. A divisão de que fala, e cuja descoberta atribui a Maquiavel, não é uma divisão inscrita apenas na experiência, ainda que se manifeste nela, não é uma divisão que encontra sua razão de ser na ordem dos fatos, não é a divisão que se refere a uma necessidade natural oriunda da escassez ou da distribuição desigual dos bens materiais, em suma, não é propriamente a divisão entre ricos e pobres. Para nos aproximarmos da natureza dessa nova divisão, é preciso empreender uma análise do desejo, pois é ela, sustenta Lefort, que “esclarece para além do fenômeno do antagonismo social uma dualidade primeira”103. Reportar a divisão do social

ao desejo assimétrico e inconciliável das duas partes constitutivas da cidade nos põe em contato com uma concepção da política como espaço de uma tensão infinita, sem conciliação prevista no fim da história, de uma vida civil constituída pela dialética sem síntese entre dominação e resistência. Mais do que isso, ancorar a história na dimensão de desejos rivais nos fornece um ensinamento precioso, a saber, “a distância [décalage] do particular e do universal, a distância das leis tais como elas se definem em sistemas instituídos de obrigações, ou como uma relação geral das forças que se cristaliza em cada momento, e [a distância] da Lei, tal como ela se dá, transcendente a todo sistema de fato”104.

Insistimos nessa ideia: Lefort não reduz o desejo das classes aos fenômenos da ambição, da honra ou da avareza - numa palavra, não reduz o desejo à suposta animalidade da natureza humana -, mas busca no reduto dos desejos inconciliáveis de classe a fonte política da capacidade de instituição do social, instituição como movimento que contesta e transcende todo sistema de fato, todo sistema instituído (de leis, direitos, costumes, órgãos governamentais e representativos, por exemplo). Localizar o motor da vida civil na oposição de desejos que estão para além do empírico e constitui o ser do social significa manter aberta a possibilidade de ultrapassar a ordem estabelecida, os limites postos. Em outras palavras, é conferir primazia à força da instituição frente ao instituído, dar legitimidade a uma ação política que se faça também fora dos limites instituídos ou institucionalizados, o que sugere a importância de imprimir na sensibilidade política a necessidade de uma fundação contínua.

A obra de Maquiavel se revela como um contradiscurso que opera uma desconstrução imanente aos discursos coletivos da época. Ela faz com que esses discursos se nomeiem e revelem suas intenções. O apoio na tradição para pregar a união como valor supremo da vida pública, a

103 LEFORT, C. Le travail de l’oeuvre: Machiavel. Paris: Éditions Gallimard, 1972, p. 723, grifos nossos. 104 Ibid., p. 723.

admiração pela constituição de Veneza (a república sereníssima), a exaltação do princípio de moderação, da política do menor risco ou da temporização se mostram como expressões do conservadorismo, na medida em que tal exaltação faz pesar o descrédito sobre toda tentativa de mudança. Essa imagem da política, construída pelo humanismo cívico, mobiliza a experiência para ressaltar os perigos da inovação, seja porque Deus já pôs os fundamentos da experiência social, seja porque eles foram herdados da Roma antiga. Ora, afirma Lefort, “essa linguagem tem por principal função mascarar o conflito”105 e fazer da história um jogo já jogado. O contradiscurso de Maquiavel

se elabora pela sustentação de que “toda sociedade é dilacerada pela luta de classes, que a união é uma ilusão, que a potência da Cidade é subordinada à criação de ordini nuovi, que a necessidade de restaurar o principio está ligada àquela de uma fundação contínua, que a oposição república-tirania está ligada à relação entre o poder e o povo, que a eficácia da lei está suspensa à iniciativa do Sujeito e que a segurança interna como externa é adquirida no maior risco”106.

A leitura da obra maquiaveliana – eis o que pretendemos sustentar – conduziu Lefort a adquirir uma perspectiva nova sobre a dinâmica dos desejos de classe, sobre o lugar das representações sociais e, acima de tudo, sobre a história. A partir da interrogação da obra maquiaveliana, Lefort elabora uma nova compreensão sobre a lógica da história, fundada na divisão originária do corpo social e na ideia de um conflito insuperável, cuja figura é a marcha de uma história sem télos.

Por oposição a esses fundamentos que fazem da história luta incessante entre dois desejos irreconciliáveis, Lefort compreenderá a ideologia como toda manifestação do imaginário social que busca oferecer uma representação da sociedade que denega o conflito, obstrui as vias da instituição social, conjura o novo, oculta as divisões e desmonta os seus efeitos libertários: a criação de leis e direitos que refreiam a opressão e exprimem reivindicações universais, por exemplo. Perante a descoberta dos fundamentos de uma sociedade histórica, dos quais Roma nos fornece uma medida exemplar, poderíamos dizer que a ideologia é essa ação que visa repor a dimensão da sociedade sem história na sociedade histórica, e, desse modo, fechar a história ao contato e ao confronto com o acontecimento, bloquear a contestação contínua dos fundamentos da política, protegendo-os da sua exposição ao movimento agônico da história.

Sem dúvida, Lefort não se limita a fornecer esse esquema geral de funcionamento da ideologia que a nossa análise acaba por enfatizar. Sua reflexão é indissociável dos acontecimentos

105 LEFORT, C. Le travail de l’oeuvre: Machiavel. Paris: Éditions Gallimard, 1972, p. 762. 106 Ibid., p. 762.

históricos e se faz, ora aberta ora implicitamente, a partir da análise de situações políticas determinadas107. No entanto, é essa perspectiva fundamental, adquirida no estudo da obra maquiaveliana, que orienta Lefort tanto nas suas análises históricas quanto nas suas tomadas de posição teóricas. Essa perspectiva está presente quando Lefort, na análise da ideologia, acompanha os deslocamentos trazidos pela história, que conduzem a novas reconfigurações do fenômeno ideológico. É nesse sentido que o filósofo francês discerne o princípio de mudança da ideologia, esboça o movimento que faz a ideologia burguesa se transformar em totalitária e, esta, em ideologia invisível. O seu esboço das transformações históricas da ideologia se mantém fiel ao espírito de esboço e não esgota o tema, mas nos fornece as armas para a identificação e a crítica das expressões ideológicas, sugerindo que o ocultamento das divisões é um movimento que não cessa de se rearticular108. Identificar essas transformações históricas da ideologia é a tarefa que temos a realizar na sequência. Mas, antes, uma pergunta se impõe: com a reflexão sobre a obra maquiaveliana, o que ocorre com a vinculação ao marxismo, que definia a primeira matriz teórica de Lefort?

107 Com relação às análises históricas de Lefort, remetemos aos célebres artigos em que o filósofo analisa as contradições

sociais presentes na Polônia e na Hungria. Neles, o funcionamento da ideologia se deixa apreender em ato. Cf. LEFORT, C. A insurreição húngara. In:______. A invenção democrática: os limites da dominação totalitária. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p. 165-194. E também, do mesmo autor, Volta da Polônia. Ibid., p. 213-252.

108 Conferir o artigo de Lefort intitulado “Esboço de uma gênese da ideologia nas sociedades modernas”. In: ______. As

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