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CAPÍTULO 2 – LÍNGUA, SUJEITO E LÍNGUAS ESTRANGEIRAS

2.2 Ensino-aprendizagem de língua estrangeira na perspectiva discursiva perpassada

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Uma das minhas perguntas de pesquisa se refere às possíveis implicações que a passagem dos participantes pelo programa Idiomas sem Fronteiras teria sobre sua experiência de aprendizagem da língua inglesa, assim como de que forma suas representações sobre a língua podem incidir nessa experiência. No entrecruzamento da Análise de Discurso com a Psicanálise no qual me encontro, adoto o pressuposto de que a aprendizagem de uma língua estrangeira não é algo pacífico, homogêneo ou estável. Assim como postula Revuz (1998), o encontro com uma língua estrangeira faz balançar as estruturas até então tidas como estáveis entre falante e língua materna.

Retomo, aqui, a elaboração de Lebrun (2008) segundo a qual a entrada do sujeito na linguagem é fator determinante para a instauração da falta, o que implica em entender que é na linguagem e pela linguagem que advimos como sujeitos. Portanto, a concepção de língua que adoto consequentemente a enxerga como algo constitutivo do sujeito, uma vez que ela é o próprio material fundador do nosso psiquismo e das nossas relações com o mundo (REVUZ, 1998). Isso resulta em não a entender como algo exterior ao falante que necessita ser adquirido e compartimentalizado que ficaria disponível sempre que necessário. Se a língua é parte constitutiva da nossa subjetividade, ela jamais pode ser, portanto, completa, pois, é sempre passível de erro, do furo e daquilo que não é possível de ser simbolizado na linguagem.

Entender que a língua não é completa e transparente, acarreta na implicação de que ela não pode ser, portanto, um reflexo nem de nosso pensamento e nem das coisas que nos cercam. A forma como experienciamos o mundo, ou seja, aquilo que comumente chamamos de realidade é entendida, numa perspectiva discursiva, como sendo um produto constantemente construído por meio da história dentro de uma determinada cultura. A realidade social-histórica, assim chamada por Castoriadis (2005), seria, na verdade, uma criação promovida pela ação imaginária dos indivíduos em uma determinada sociedade, podendo ela ser inconsciente e não voluntária ou consciente e deliberada com o propósito de encobrir, manipular ou propagar ideologias.

Se Pêcheux nos auxilia a entender os mecanismos discursivos por meio dos quais nosso dizer se relaciona com a exterioridade e com uma memória discursiva sobre determinado objeto, o pensamento de Castoriadis contribui com uma análise sobre as sociedades humanas e como os indivíduos que se encontram nelas estão pré-

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determinados a querer e a buscar a satisfação de demandas que são sempre instauradas pela exterioridade.

Castoriadis defende que não se pode pensar em uma realidade social a priori para o ser humano e para as civilizações, uma vez que essa noção acarretaria em entender que há determinações já instituídas na realidade. Isso não significa dizer que não haja determinações as quais estamos submetidos, mas sim que essas determinações são em si mesmas criações, podendo elas vir a ser destituídas e substituídas por outras.

A história é criação; criação de formas totais de vida humana. As formas sociais- históricas não são "determinadas" por "leis" naturais ou históricas. A sociedade é autocriação. Quem cria a sociedade e a história é a sociedade instituinte, em oposição à sociedade instituída, imaginário social no sentido radical. A auto-instituição da sociedade é a criação de um mundo humano: de coisas, de realidade, de linguagem, de normas, de valores, modos de viver e de morrer, objetivos pelos quais vivemos e outros pelos quais morremos - e obviamente, em primeiro lugar e acima de tudo, ela é a criação do indivíduo humano no qual a instituição da sociedade está solidamente incorporada. (CASTORIADIS, 2005, p. 271).

Entendo o que Castoriadis chama de sociedade instituinte e sociedade instituída como frutos de discursividades correntes e de possibilidades de discursividades outras cujo embate pode resultar em algo novo que desestabiliza o regime atual; em criação segundo Castoriadis ou em acontecimento segundo Pêcheux (1983).

Um outro conceito central na elaboração de Castoriadis é a sua proposição de

imaginário. Para além de uma reflexão da realidade em nossos sentidos, o imaginário

seria também produto sócio-histórico, tornando-se impossível ter acesso a uma realidade primordial.

[...] O imaginário de que falo não é imagem de. É criação incessante e essencialmente indeterminada (social-histórica e psíquica) de figuras/formas/imagens, a partir das quais somente é possível falar-se de "alguma coisa". Aquilo que denominamos "realidade" e "racionalidade" são seus produtos. (CASTORIADIS, 2005, p. 101)

A instância imaginária seria, então, aquela por meio da qual percebemos o mundo a nossa volta, sendo ela constantemente atravessada pela linguagem e, portanto, não transparente e sempre falha e parcial.

No Capítulo 1, o termo necessidade foi discutido dentro do contexto da abordagem de ensino de inglês para fins específicos. Acrescento, aqui, a discussão sobre necessidade nos estudos culturais numa tentativa de entender como elas, as necessidades, são instauradas nas sociedades humanas. Comumente, entendemos esse

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termo como sendo algo já dado, algo que nos precede e ao qual devemos responder. Toda a argumentação presente nos documentos do programa Idiomas sem Fronteiras sobre sua relevância na sociedade acadêmica gira em torno de munir os alunos com habilidades linguísticas para que eles estejam aptos a atuar em contextos acadêmicos estrangeiros. Portanto, os cursos de inglês visam suprir as necessidades de aprendizagem da língua para que seus alunos atinjam este objetivo determinado. Levando em consideração o pensamento de Castoriadis sobre o fazer histórico e social, é possível perceber que não se pode pensar em necessidade como um elemento pré- estabelecido, desconectado de uma realidade social, já, que, tais necessidades podem ser muito mais da ordem de demandas sociais.

As proposições de Orlandi (2004) sobre o imaginário se encontram em concordância com as apresentadas por Castoriadis. Para a autora, é graças ao imaginário que conseguimos fazer uma relação aparentemente direta entre mundo e linguagem, apesar dela ser totalmente arbitrária, como nos disse Saussure em seu pensamento inicial e fundador dos estudos linguísticos modernos. A dimensão imaginária de um discurso seria sua capacidade para remissão de forma dieta à realidade, e, tal ilusão referencial provoca em nós um efeito de evidência:

[...] se se tira a história, a palavra vira imagem pura. Essa relação com a história mostra a eficácia do imaginário, capaz de determinar transformações nas relações sociais e de construir práticas. No entanto, em seu funcionamento ideológico, as palavras se apresentam com sua transparência que poderíamos atravessar para atingir os “conteúdos”. (ORLANDI, 2004, p. 32)

As considerações sobre o sujeito de linguagem são importantes para a discussão sobre representações e memória discursiva dos participantes dessa pesquisa, uma vez que o furo e aquilo que se deixa flagrar momentaneamente na materialidade do dizer indiciam para a subjetividade dos participantes. Além disso, a análise das ressonâncias discursivas6, construídas pela recorrência de significantes, ajuda a construir sentidos dominantes em determinado enunciado que apontam para as inscrições discursivas dos participantes.