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CAPÍTULO III: UMA CASA NA ESCURIDÃO

2.1. O Enterro

Faz parte da tradição humana sepultar o corpo do defunto. Ao narrar o enterro da mãe, o escritor dá a conhecer que a cova é toda envolvida pela morte. É enfatizada a escuridão que dela brotava, a água negra e os trovões que sobre ela descem. Coloquemos a nossa atenção sobre um aspeto comum a quatro enterros:

“Telefonei ao príncipe de calicatri e pedi-lhe que me acompanhasse ao enterro do meu editor.”; “No dia em que fiz dezoito anos, eu, a minha mãe e a escrava miriam fomos levar o meu pai e a escrava madalena ao cemitério.”; “A terra cobriu a minha mãe.”141

O narrador não se refere somente ao sepultamento do corpo. É a pessoa que é sepultada, em todo o seu ser. Esta tese é agora retomada, depois de ter surgido em Morreste- me.142 É, porventura, ponto de encontro entre a antropologia de José Luís Peixoto e a antropologia bíblica. A tradição hebraica aponta para uma visão monista do homem. Ele é um todo. Uma unidade, em três dimensões: “bāśar”, que se associa à carne e poderá designar o parentesco da pessoa, ou a simples ligação aos outros seres humanos, como criaturas de Deus;

140 J. L. PEIXOTO, Uma Casa na Escuridão, 237. 141 Ibidem, 50; 53; 211.

142 Cf. IDEM, Morreste-me, 52: “Cheguei onde sei que estás, onde ficas, ficaste; onde estás, sob uma campânula

48 “nefeš”, que designa “sopro de vida” ou “respiração”; “ruaḥ”, que significa “vento” e “espírito”.

Temos o que podemos chamar de corpo, alma e espírito, respetivamente. Veja-se a exortação

de São Paulo (cf. 1 Ts 5, 23). Segundo o pensamento hebraico, não se pode dizer que ele tenha “nefeš”, “ruaḥ” e “bāśar”, mas antes que ele é “nefeš”, “ruaḥ” e “bāśar”.143 Gabriel Marcel deprecia a expressão de posse: “eu tenho um corpo”. Suplanta-a com uma substancial correcção: “eu sou um corpo”.144 Dada a importância da dimensão corpórea, depreende-se a solenidade de um ato fúnebre. O enterro é a última despedida. Torna-se, daí em diante, impossível o contacto com a pessoa por via da sensibilidade.

A importância dada ao corpo humano em Uma Casa na Escuridão projeta um misto de bizarria e esperança. Ao sair do cemitério, no fim do funeral do seu editor, o protagonista deparou-se com a campa da sua amada. A mulher que ele encontra na sua mente. Apercebe- se, então, de que se tinha apaixonado por um cadáver. Decide regressar ao cemitério para a ver cara-a-cara:

“Tirámos os cintos das calças e usámo-los para erguer o caixão. A noite. A cova negra da sepultura, como se chegasse ao centro da terra. O caixão a subir lentamente. A distinguir-se cada vez mais na solidão, no ar fresco da noite. O caixão solene. A subir lentamente. O peso dela nos meus braços.”145

O corpo do defunto é um verdadeiro sinal da sua presença-ausência. Diante do corpo morto e em decomposição, ele tocou-a. Beijou-a. Encostou a cabeça ao seu ombro. Envolveu- a com os braços. Permaneceu uns momentos para a sentir.146 Na decisão de desenterrar a amada, o amor fala por si. Assemelha-se à expressão do Cântico dos Cânticos: “Pois o amor é

143 Cf. F. FIORENZA & J. METZ, “O Homem como União de Corpo e Alma”, in J. FEINER & M. LÖHRER

(eds.), Mysterium Salutis, vol. II/3, Editora Vozes, Petrópolis, 1980, 32-34. As três dimensões entrecruzam-se e assumem as funções umas das outras. Atendamos às palavras do salmista: “Senhor, sois o meu Deus, desde a aurora Vos procuro,/ A minha alma tem sede de Vós” (Sl 63, 2). A alma sente sede. Característica própria do corpo. Observemos o episódio da agonia de Jesus no Horto: “E, cheio de angústia, orava com mais insistência ainda, e o suor se lhe tornou semelhante a espessas gotas de sangue que caíram por terra.” (Lc 22, 44) A alma de Jesus encontra-se em profundo sofrimento, diante do combate derradeiro. A sua dor manifesta-se no corpo, através da reação psicossomática de suar sangue.

144 Cf. Ibidem, 58.

145 J. L. PEIXOTO, Uma Casa na Escuridão, 75. 146 Cf. Ibidem, 76.

49 forte, é como a morte, o ciúme é inflexível como o Xeol. Suas chamas de fogo uma faísca de Iahweh! As águas da torrente jamais poderão apagar o amor nem os rios afogá-lo.” (Ct 8, 6b- 7a) Para Peixoto, o amor é o verdadeiro imortal, mesmo se todos os amantes são amantes infernais. É exaltada a grandeza de amar sem medida. Sem fim.147

Uma realidade que se impõe ao corpo é a sua decomposição. Ao cessar funções biológicas, perde a força da vida, a “nefeš”, e desaparece progressivamente. Isto se dá a entender quando o autor descreve o corpo da amada, retirado da sepultura:

“E o corpo dela: os ossos; pedaços de pele dura e castanha derretida, entornada sobre os ossos; pedaços de pele seca e castanha; o lugar cego dos olhos; os dentes; o vestido branco, rasgado e velho, colado à pele; os ossos finos dos dedos; os cabelos longos, negros e secos.”148 O narrador transmite mesmo a ideia crua do corpo humano morto que apodrece. Desfaz-se. Propaga um odor nauseabundo. De suma importância são os sentidos, como meio de contacto. Os sentidos documentam o nosso noivado no sepulcro. Mas também o nosso berço. A noiva e a mãe de todos os homens são cadáveres.149

A abordagem a vários enterros concede-nos uma ulterior temática para estudo: as desigualdades sociais. Todos os homens da família do escritor estão sepultados num jazigo exclusivamente a eles destinado.150 Uma outra forma de sepultura substancialmente diferente é atribuída às escravas. Não têm direito a uma sepultura própria. Os corpos são lançados a uma vala comum.151 Quanto ao editor, foi apenas sepultado sobre a terra, com um número a

147 Cf. L. GARCIA, “Dois livros, uma casa com vista para dentro”: “Penso que como se diz, justamente, nesse

romance [Uma Casa na Escuridão], o amor, a felicidade, só são ridículos para quem os vê de fora. Quem os sente nunca os vê como ridículos. Portanto, parece-me que, às vezes, palavras como amor, adjetivos como bonita foram tão banalizados pela nossa linguagem que parecem irrecuperáveis para a literatura. No entanto, é uma pena que assim seja e que, de alguma forma, está nas mãos de quem escreve resistir a essa banalização e contrariá-la de alguma maneira. É um pouco isso de que se fala [no romance], que é não ter medo de dizer palavras que, no fundo, são tão importantes.

148 Cf. J. L. PEIXOTO, Uma Casa na Escuridão, 75. 149 Cf. Ibidem, 208.

150 Cf. Ibidem, 52. 151 Cf. Ibidem, 54.

50 identificar.152 Era um desertor na sociedade. Despoletara a desordem, pela revolução. Morreu só. Abandonado a si. A mãe do protagonista não é sepultada no espaço próprio da família, mas num outro espaço disponível.153 Os enterros diferem consoante as pessoas. Um senhor não é um escravo. Uma mulher não é um homem. A desigualdade teima em prevalecer.

O narrador faz referência ao jazigo da sua família. Restava apenas um lugar. O seu.154 Reconhece que lhe é impossível a vida. A sua amada habita no íntimo da sua mente. Vive a angústia de não poder trazê-la ao exterior.155 Tudo isto é um prenúncio do fim.

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