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Associações no Brasil hoje: números e significados

III. Entidades de assistência social

Optamos por considerar as entidades de assistência social um campo próprio, separado do segmento das entidades de educação e saúde tradicionais, por alguns motivos. Inicialmente, apesar da gênese comum vinculada à Igreja Católica, as políticas públicas no campo da educação formal e da saúde, diferentemente da assistência, pela própria natureza dos serviços disponibilizados, foram as primeiras a ganhar certa institucionalidade, mediante a formatação de uma estrutura de atendimento com serviços e procedimentos padrões, a partir de regulamentações públicas e, no caso da educação, com parâmetros curriculares nacionalmente definidos.

A política da assistência social, pelo contrário, continuou a ser a política para os “pobres”, alimentada pela lógica clientelística e assistencialista da doação de cestas básicas, óculos, colchões, muletas, encaminhamentos tutelados a outros órgãos e serviços públicos, em troca da formação de uma clientela eleitoral fiel. Até hoje, a gestão pública dessa política, em muitos municípios, continua a cargo da primeira-dama, que representa a velha cultura política da tutela e da caridade.12

As entidades de assistência social, também chamadas de “filantrópicas” – ou, de forma depreciativa, como entidades “assistencialistas” –, seguem majoritariamente uma lógica (de forte inspiração cristã) de tutela e subordinação com relação aos beneficiários de suas ações. É

12 Em pesquisa coordenada por Ivanete Boschetti (GESST/UnB) preparada para a IV Conferência Nacional de

Assistência Social (Brasília, 7 a 10 de dezembro de 2003), sob o título: “Avaliação dos dez anos de implementação da Lei Orgânica de Assistência Social: o olhar os conselhos estaduais, municipais e do Distrito Federal”, a influência da política partidária foi um dos aspectos mais abordados nas oficinas regionais de conselheiros/as da sociedade civil ao discutirem os fatores que emperram o processo de escolha e nomeação de conselheiros/as. Foram indicados vários fatores, entre eles: a cooptação das entidades pelo governo, em que este repassa recursos para as entidades e ainda escolhe quem será o seu representante, e a existência de lei que estabelece como presidente do conselho de assistência social a primeira-dama ou o secretário da assistência social. (p.157)

o segundo maior campo associativo no país, reunindo aproximadamente 32 mil associações, ou 12 por cento do universo total. Configuram um amplo conjunto de orfanatos, albergues, asilos, centros de reabilitação, obras sociais diversas, casas de passagem e outras iniciativas sociais que buscam atender e “confortar” os indivíduos e grupos mais vulnerabilizados da nossa sociedade.

Embora a origem desse campo seja distante de uma concepção de direitos, políticas públicas universais e participação política ampliada, especialmente a partir do final da década de 1980, o campo de entidades de assistência social começou lentamente a passar por um processo de reconfiguração. Novamente, temos avanços institucionais na carta constitucional de 1988, que reconheceu a assistência social como uma política pública, compondo o tripé da política de seguridade social, em conjunto com a saúde e a previdência. A Loas – Lei Orgânica da Assistência Social –, promulgada em 1993, detalhou a política de assistência como um política de direitos, descentralizada e participativa, e abriu caminho para a construção de uma grande estrutura de conselhos deliberativos e paritários de políticas públicas (4.671 conselhos municipais – ver Quadro 2 – dados de 2003). Nos últimos três anos aprovou-se a Política Nacional de Assistência Social, que prevê a constituição de um Sistema Único de Assistência Social – SUAS, nos moldes universalizantes do SUS.

As entidades de assistência social configuram um campo associativo emblemático, uma vez que é formatado por uma lógica antiga e cristalizada, baseada na filantropia e na benemerência. Esse campo é pressionado por uma perspectiva participativa de direitos a partir da Constituição de 1988, e, durante os anos 90, enfrenta o discurso modernizador neoliberal, com base em conceitos como profissionalismo, eficiência e eficácia na prestação dos serviços assistenciais.

Contudo, as velhas condicionantes históricas que estão na origem da constituição desse campo continuam a atuar. Nas últimas eleições da sociedade civil para o Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, gestão 2006-2008, ocorridas em abril de 2006, no campo das entidades de assistência social a CNBB fez uma aliança conservadora para defender os interesses da filantropia13 – que envolvem também as universidades e hospitais filantrópicos – com a Confederação das Santas Casas de Misericórdia e com a Associação Brasileira de Universidades Comunitárias – Abruc, que reúne muitas universidades católicas. Essa aliança conservadora, pautada por interesses corporativos, foi vitoriosa, tendo a CNBB e

13 Afirmação feita com base na participação do autor no processo de articulação das organizações da sociedade

civil para a eleição do CNAS e com base na participação do mesmo na assembléia de eleição dos representantes da sociedade civil no CNAS ocorrida no dia 25 de abril de 2006, em Brasília.

a Confederação das Santas Casas sido eleitas como conselheiras titulares, e a Abruc como conselheira suplente, a partir do voto de inúmeras entidades de assistência social ligadas à Igreja. Aliás, somente a título de ilustração, um dos bispos da CNBB14, justificando a candidatura da Igreja para o CNAS, afirmou que ela o fazia porque “os interesses da Igreja estavam em jogo”.

Temos, portanto, um campo associativo atualmente em disputa, perpassado por várias perspectivas e lógicas políticas. Cabe ressaltar que essa disputa ocorre entre as próprias entidades de assistência social, entre elas e outros campos associativos – em especial as associações de defesa de direitos e as entidades e educação e saúde – e nas tensões com o Estado. Estas últimas devem-se à presença em espaços institucionais participativos da política de assistência – conselhos e conferências de assistência social – e surgem no acesso aos recursos públicos para a execução da política.

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