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ENTRE APOIO E SALVAÇÃO: A CAPACITAÇÃO PROFISSIONAL

No documento O aluno em inclusão no discurso docente (páginas 93-98)

Um dos temas mais abordados pelas educadoras é a “capacitação”. Diante das muitas afirmações de que é isso que falta para que a inclusão se suceda a contento, perguntamos como ela pode ajudar. As respostas frequentemente se estruturam como a de Lurdes (informação verbal, 2015), que assevera: “Ia treinar a gente a lidar com ele” (aluno) e, após obter concordância da colega Isabel, continua: “Como que você vai fazer um bolo se você não tem a receita? Você já está treinada”.

A professora também menciona que a pesquisadora, que é psicóloga, “já está treinada”. E, dessa forma, nos remete ao que discutíamos no tópico que versa sobre o conhecimento conferido aos “especialistas”, acerca desses alunos. Como referimos, as professoras citam várias profissões como aptas a lidar com a criança “em inclusão”, mas mantêm a Pedagogia fora desse leque. A menos que se trate da Psicopedagogia, como no caso das professoras de atendimento educacional especializado.

Aqui a ideia é de que esse conteúdo, de posse de especialistas, e que poria fim aos impasses do trabalho inclusivo, possa ser transferido para o educador. Há embutida nessa perspectiva, a crença de que exista uma espécie de fórmula que produza eficiência por si só e a despeito da experiência junto ao aluno. A confiança na eficácia isolada de um método ou programa pré-formulado.

A lógica do “treino”, mencionada pela professora, permeia a visão, comum entre as profissionais, de que há um modo de se preparar, via instrução, para lidar com as crianças “em inclusão”. Mais uma vez nos deparamos com uma “solução” que se supõe vir de fora, além de estar pronta, restando ser aplicada por quem, em forma de treinamento, a receba. Como uma “receita de bolo”: um passo-a-passo a ser executado para que se tenha o resultado almejado.

Lajoquière (2009) aponta a insistência com que educadores se queixam da ineficácia da prática pedagógica. Segundo o autor, eles a justificam, por um lado, com a insuficiência do método utilizado e, por outro, com a “inabilidade” dos alunos. Para ele, essa tese envolve a crença na possibilidade de adequação natural entre proposta pedagógica e aluno. E acrescenta que é, nessa lógica, que se baseia o que chama discurso (psico)pedagógico hegemônico.

A forma como os docentes agenciam esse discurso, que caracteriza como ilusório, age de modo a tornar a educação um ato de difícil acontecimento. Isto porque recalca a desigualdade inevitável entre criança e adulto, que, como vimos, para o autor, necessita ser reconhecida e desdobrada. Em seu lugar instalam a ilusão.

Lurdes (informação verbal, 2015) exprime o lugar de ilusão ocupado por essa convicção, ao cogitar que já existe um modelo, restando que ele seja acessível às pedagogas:

Você não sabe como agir. Deve ter até, já devem ter descoberto até, uma maneira eficiente de você cuidar dessa criança, já devem ter descoberto, mas não chegou até nós isso. Então, quer dizer, não adianta os técnicos, os técnicos fazem ler, os técnicos bolam [...] se esse conhecimento não chega até o chão da escola, não chega na mão da pessoa que vai lidar com o assunto. [...] Agora nós [...] o negócio chega pronto, você é obrigada a aceitar, você tem toda a responsabilidade sobre, você não pode discriminar, não pode isso, não pode aquilo. É claro que a gente não discrimina porque nós somos treinadas a tratar todas as crianças iguais, mas o nosso trabalho vai por água a baixo, a nossa expectativa. Nós estamos frustradas, deprimidas, dá depressão.

A educadora atribui o fracasso do trabalho, que “vai por água a baixo”, e a frustração por ele gerada, à falta de conhecimento. Ausência de um saber que nos parece supor inteiro: está pronto e alguém já desvendou o “segredo”. O educador, portanto, apenas precisa obtê-lo para, então, aplicá-lo.

A pergunta sobre suas ações é dirigida ao especialista, de quem espera uma solução. Ocorre que, assim, demite-se do ato de educar, pois, ao delegar a resposta ao

outro, fecha-se a possibilidade de que se implique em seu fazer. Ou, em outras palavras: “Assim, o adulto sempre espera um pouco mais na ilusão de intervir em nome de uma certeza. Essa espera – que não deve ser confundida com a atitude de sábia cautela inerente à douta ignorância – implica na renúncia ao ato educativo” (LAJONQUIÈRE, 2009, p. 37, itálicos do autor).

Essa espera também decorre do lugar condicional que ocupa a “capacitação” almejada pelas profissionais, como Antônia (informação verbal, 2015), que acredita que para trabalhar, satisfatoriamente, em sala de aula, precisaria ter “uma preparação boa”, que, segundo ela, não existe, a menos que busquem “por fora”. Já Eliana, crê na necessidade de que se aprenda, a priori, como dar aula para “crianças especiais”, função que as formações oferecidas pela prefeitura, de acordo com ela, deveriam cumprir, mas não cumprem:

Tem uma aqui que ela faz uma palestra só, essas formações que a gente vai. A realidade da formação é totalmente diferente da sala de aula. Falar é lindo. Vamos para sala de aula, ficar comigo para você ver a realidade sem auxiliar. Aí você vai sentir na pele, sem ninguém. Diz que a quantidade de aluno é X e quando você entra a quantidade, ó, pega um diário e olha. É outra realidade. Eu, me desculpe, eu particularmente não gosto da formação. Porque para mim, eu acho que tem que ser: vamos colocar a realidade da escola pública. Aqui não é escola particular. É totalmente diferente. (informação verbal, 2015).

Ponderamos que essa moldura, na qual predomina a certeza de que a realidade escolar possa ser apreendida pela formação, acaba por deixar de fora as construções junto ao aluno. Se há algo findo a ser apreendido, não há porque delinear uma conduta, não há motivo para criar.

A discussão, tomada por esse ângulo, outra vez se envereda por uma lógica na qual a inclusão do aluno está subordinada a receber um saber acabado. Somente o educador que acessa esse conhecimento se torna especialista e, então, está apto a fazê-la. Caso contrário, incluir se julga impraticável.

Deposita-se na conta desse saber, absoluto, a educação das crianças e, por essa via, cria-se um lugar passivo para o professor. Essa passividade se faz presente em diversas sentenças elaboradas pelas educadoras, que repetidamente se referem ao Outro, escola, como culpado: aquele que “joga” a criança ali sem estrutura, que as obriga a receber esses alunos ou que não as dá a formação necessária, como justifica Lurdes (informação verbal, 2015):

Olha [...] quando foi feita a lei da inclusão, eles esqueceram da capacitação dos professores. Como você não é [...] um médico tem diversas especialidades, só que você não é médico cirurgião. Você acha que podem colocar você numa sala de operação para você operar alguém, se você não é cirurgião? A mesma coisa: o desenvolvimento das crianças é, assim, muito fraco – dessas que estão incluídas – e elas também atrapalham o andamento da sala.

A comparação com o cirurgião, utilizada acima, é uma mostra desse posicionamento, de certa passividade: “colocam” na função de operar alguém, que, por não ser especializado em cirurgias, nada pode fazer. Aqui se funda uma impotência, fundamentada na dependência do “ato educativo” de informações que existem, mas não foram fornecidas. E, se não as fornecem, a escola nada pode pedir de seu corpo docente. Assim explicita Lurdes (informação verbal, 2015), que assinala que esses alunos “[...] não podem chegar na sala de aula sem a professora saber: quem é esse sujeito? O que é que eu vou fazer com ele? Sem a professora saber o que vai fazer com a pessoa”.

A serviço de um ideal de controle, coloca-se a capacitação como passível de antecipar aquilo que se deve esperar da criança. Esse tipo de funcionamento se assemelha ao que Mannoni (1977) trata como uma lógica administrativa. A autora nos alerta sobre o risco de essa lógica se apossar da teoria, que se torna dogmática e perde seu poder de interrogação. Para ela, isso ocorre porque as medidas administrativas podem antepor o verdadeiro progresso do conhecimento, tamponando o espaço onde haveria a construção de um saber.

Nesse caso, é suprimido todo movimento que ocorra às margens do previsto, quando é justo nas bordas que construímos o “sentido” de nossas formulações teóricas. Nega-se toda palavra que escape a essa previsão, havendo uma inversão: supõe-se que a teoria detenha o dizer do sujeito, quando é o dizer que detém a verdade sobre a teoria. Essa negação aparece na fala de Lurdes, que afirma que o aluno deve chegar já com “instruções” a serem seguidas. Não há nada a ser descoberto.

Nesse sentido, quanto ao aluno, a crença de complementaridade da prática pela teoria, da realização pela via do treino, nos parece destiná-lo ao compromisso de meio para atingir esse objetivo. O pedido de que a criança dê provas da eficácia de uma doutrina, a chama a assumir uma posição passiva, função de objeto. Trata-se de um ideal que colabora para iminência de que o professor desconsidere qualquer sinal que o aluno indique exterior aos pressupostos. E, assim, a criança tem sua verdade suprimida.

De outro modo, podemos dizer que em busca da técnica ideal, os professores perdem o sujeito de vista. E, sabemos, esse olhar incide sobre sua existência, na medida em que abre ou não espaço para ela. É necessário que seja avistado para que exista.

Já vimos que a dúvida que funda essa brecha de onde pode advir o sujeito. E aqui acrescentamos que é também fora da teoria que essa construção se delineia, tanto para a criança como para o educador, que podem aí tecer narrativas “próprias” acerca do vivido. Dessa maneira, a “grande preparação” para lidar com esses meninos e meninas, que Carla (informação verbal, 2015) presume ser necessária, não encontra chances de operar, se, quem dela faz uso, não reconhece sua condição faltosa. A capacitação acaba por não produzir aberturas, visto que sua dimensão, para as professoras “Não tem nada a ver com sentimento. É questão mesmo do trato, é de saber lidar, saber controlar” (SIMONE, informação verbal, 2015).

Mas essa relação hermética com a capacitação profissional, embora predominante, não é a única expressada nas falas das educadoras. Algumas vezes as docentes relativizam o poder conferido ao saber teórico e técnico. Áurea (informação verbal, 2015), por exemplo, compreende que um “curso de inclusão” ajudaria em “certas ocasiões” que ela sente dificuldade.

Nuances como essa, apontam para a produção de uma visão menos totalitária quanto à formação teórica. Em vez de tomar a teoria como ideal e a proferir como queixa, motivo que inviabiliza uma prática, Áurea apenas compreende que poderia ajudar. Há aí reconhecimento de um furo que permeia esse saber.

Beatriz (informação verbal, 2015) também demonstra que não é necessário desconsiderar a importância da teoria para que haja abertura às “surpresas” do que ela não abarca. Ela pontua que “Claro que é importante a teoria, óbvio, para ter um embasamento, mas a questão da vivência é surpreendente”. Clea (informação verbal, 2015) exemplifica:

A gente mesmo se surpreende, né? Quando a gente conversa sobre esses alunos que a gente tem... aí você (aponta para uma das professoras) conta: “Ai, fez tal coisa!” E hoje ela veio me contar: “Ah, fez tal coisa! Olha aí! Fez tal coisa!”. Então teoricamente não era pra ter feito. Mas a gente acaba descobrindo e que isso dá uma alegria e dá um outro olhar. Assim: “Ah, então vamos fazer tal coisa, que agora já fez tal coisa!”.

Compreendemos que essas sejam outras produções que surgem como efeito da ausência da capacitação idealizada pelas profissionais. Em vez de tomarem a falta como queixa, motivo que inviabiliza uma prática, algumas se questionam sobre sua parte na

tarefa de incluir e se empenham na busca por respostas. É no reconhecimento da não inteireza do conhecimento que se faz a fenda na qual se torna percorrível, embora não garantido, o caminho de admitir o que causa estranhamento como parte das asserções escolares.

Assim, as professoras nos mostram que é possível tomar a teoria como baliza para a prática sem que a ela se oferte um lugar idealizado. São demonstrações que se acercam das considerações de Mannoni (1977), que nos convida a pensar na teoria como uma “base científica” à qual o educador possa se referir para refletir sobre a educação. Segundo a autora, trata-se de um elemento importante, que, se tomado de modo relativo, cumpre papel de resguardar o aluno das demandas idealizadas do preceptor.

As doutrinas das quais os mestres são adeptos podem auxiliar a nomear aquilo que o aluno vai apresentando em seu percurso escolar. Em tópicos anteriores vimos que palavras como “aprendizagem”, “socialização” e outras se colocam entre aluno e professor, anulando o concreto, transformando o objeto em significante, processo assim descrito por Lacan (1962-1963/2005). Que essas significações tenham referência na teoria não é problema. O problema, segundo Mannoni (1977) é quando, como vimos, as doutrinas funcionam como falta de referência, contribuindo para as formações imaginárias.

É fundamental que, como Freud (1919/2006), o professor reconheça que as teses intelectuais são insuficientes para obturar a falta. Porque é nessa incompletude que se faz possível a pergunta sobre “sua parte” na tarefa de educar e, então, o empenho na busca por respostas. É no reconhecimento da não inteireza do conhecimento que se faz a fenda na qual se torna percorrível, embora não garantido, o caminho de admitir o que causa estranhamento como parcela das cotas escolares. Dessa forma, podemos concordar com Diana (informação verbal, 2015), que, dividindo a responsabilidade com o conhecimento, assinala: “O que move a mente da gente é isso mesmo. O que move o mundo é isso mesmo. É o conhecimento [...] e a paciência (risos). É a paciência”.

No documento O aluno em inclusão no discurso docente (páginas 93-98)