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Capítulo 4 Entre as margens do contar e do escrever, o entre-lugar dos textos

4.3. Entre as margens da esperança e do desencanto, utopias

Marcelo Brandão Mattos, ao analisar obras angolanas do pós-1975 assinadas por Pepetela, Luandino Vieira e João Melo, chamou esse grupo de escritores de “Geração da distopia”, deixando claro que, apesar do que inicialmente podemos pensar a partir do título de sua tese, considera impossível “arrolar categorias estanques de utopia e distopia da produção literária angolana ao longo das últimas décadas” (2013, p. 10). Em A casa velha das margens e A casa do rio, também não é possível abordar, de forma a delimitar fronteiras rígidas e intransponíveis, as denúncias dos desmandos do presente e os possíveis horizontes de esperança que se anteveem no porvir. Esses dois aspectos habitam margens fluidas, alimentando-se mutuamente.

O desencanto, presente em grande parte da produção ficcional angolana contemporânea, não cede, nos romances aqui analisados, ao peso da paralisia. Pelo contrário: o movimento permanente de seus personagens, duplos de sua terra natal, possibilita que se vislumbrem caminhos de mudanças e de transformação. Podemos considerar, então, que eles atualizam as observações de Fanon, para quem “o homem colonizado quando escreve para o seu povo, quando utiliza o passado, deve fazê-lo com a intenção de abrir o futuro, convidar para a ação, fundar a esperança” (2005, p. 267). E os escritores angolanos ainda o fazem, mesmo depois de oficialmente superada a condição colonial, porque sabem que a colonialidade sobrevive no pensamento e nas atitudes de muitos – e não apenas – de seu país.

A pesquisadora Renata Flavia Silva, em texto de apresentação da coletânea Utopias comuns em múltiplas fronteiras, salientou:

As utopias estiveram presentes na produção literária africana em língua portuguesa ao longo de várias décadas, antecipando, na literatura, a desejada libertação. Quarenta anos após as independências

das ex-colônias portuguesas na África, as imagens utópicas de outrora ainda se fazem presentes, porém com novas roupagens e em novas articulações. A esse permanente anseio por transformação e emancipação respondem antigas e novas obras literárias [...] (SILVA, 2017, p. 7).

Buscando identificar múltiplas e novas formas de reencenação das utopias nos dois textos aqui analisados, consideramos possível inferir que uma delas é a valorização dos saberes locais. Convocar e conhecer o passado do país, investigar sua história de resistência e fazer novas descobertas, resgatar os valores antigos e seguir em frente, sem deixar de olhar para trás, faz-se, portanto, condição fundamental para o estabelecimento de uma nova ordem, como procuramos demonstrar neste capítulo.

Para explicar o que estamos entendendo como utopia, convocamos, mais uma vez, a pesquisa de Marcelo Brandão Mattos, em que se apresenta o termo a partir do clássico de Thomas More:

[...] Em termos etimológicos, a utopia (justaposição do grego ou-, que é partícula de negação, com topos, que significa lugar) é referência a “lugar nenhum”. [...] Analisando a obra de Thomas Morus, pai da utopia, George Logan e Robert Adams (1993) observam um trocadilho possível entre utopia (não + lugar) e eutopia (feliz + lugar), a sugerir, para o termo, tanto uma perspectiva insular de isolamento e proteção, um “lugar distante ou inexistente”, como também um ideal físico e simbólico de felicidade e prosperidade. Afinal, nas palavras de Morus (1997, p. 94), “[...] não exist[ia] em parte alguma república mais feliz...” que na ilha de Utopia (MATTOS, 2013, p. 54, grifos do autor).

A utopia está vinculada, portanto, às ideias de impossibilidade, de um ideal não- concretizável de felicidade. Pensando nesse aspecto, podemos citar uma famosa definição dada pelo uruguaio Eduardo Galeano, enquanto dava uma entrevista e se referia ao “direito de sonhar”. Ele conta que, certa vez, o amigo conterrâneo Fernando Birri teve que responder à pergunta: Para que a utopia? E assim resumiu:

A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar68.

68

GALEANO, Eduardo. Para que serve a utopia? Disponível em https://www.contioutra.com/

Nesse mesmo sentido, o antropólogo francês Marc Augé, ao pensar uma nova “utopia da educação”, faz uma incisiva defesa da mobilidade, entendendo que a educação transformadora do presente deve incentivar os indivíduos a, cada vez mais, passear e mudar (n)o espaço. Segundo o estudioso francês,

É preciso aprender a sair de si e de seu entorno, a compreender que é a existência do universal que relativiza as culturas, e não o inverso. É preciso sair do cerco culturalista e promover o indivíduo transcultural, que, adquirindo o interesse por todas as culturas do mundo, não se aliena em relação a nenhuma delas. É chegado o tempo da mobilidade planetária e de uma nova utopia da educação, mas só estamos no começo dessa nova história, que será longa e, como sempre, dolorosa. (AUGÉ, 2010, p. 109).

Para ele, portanto, o ideal da educação emancipadora dos indivíduos é o da mobilidade, pois apenas no encontro com o outro é possível ter a dimensão do tamanho e da parcela de responsabilidade de si no mundo. Mais do que uma “antropologia”, lemos, em seu ensaio, uma “apologia” à mobilidade.

A partir dessas definições e reflexões podemos relacionar a utopia, portanto, a algo a se almejar e perseguir constantemente, mesmo que não seja possível alcançar. Ela serve para impulsionar o movimento, a caminhada, exatamente o que dá sustentação aos dois textos aqui analisados, já que seus enredos se desenvolvem a partir do trânsito dos personagens, seres em busca de conhecer a si e a sua nação a partir do contato e da cumplicidade com o outro.

Vimos que, nas tradições africanas, valorizavam-se aqueles sábios que saíam em viagens, pois estas permitiam-lhes adquirir variadas experiências e entrar em contato com novos e diferentes pensamentos e práticas. É interessante observar como Emídio e Antero, nesse processo de amadurecimento, não vão para longe, muito pelo contrário: depois da vivência fora eles sentem a necessidade de percorrer espaços que compõem suas memórias e fazem parte de seu passado, permitindo-se, nesses novos trânsitos, lançar novos olhares para si e para a diversidade que caracteriza seu próprio país. A nós, leitores, fica o apelo à utopia dos deslocamentos e aos encontros que ela propicia.

Podemos fazer referência, ainda, à perspectiva que se anuncia com os mais novos. No caso de A casa velha, Dino, filho do encontro amoroso mestiço entre Emídio

e Josepha Rosa, torna-se também destinatário das mensagens contidas nas cartas ambaquistas. À noite, o menino ouvia as estórias, contadas pelo pai, que aqueles papéis guardavam. Por sua vez, o filho “não escondia que eram as estórias maravilhosas do Quinaxixe, sempre reinventadas [...], que lhe sustinham com denodo na sua luta contra o sono” (ACVM, p. 343). Depois de Ngana Makanda e de Emídio, já agora Dino torna- se o “depositário de uma herança que nenhum incêndio consumiria. [...] Ele também fora depositário de segredos do povo de quem desapossavam das terras” (p. 345). Os três representam os elos de uma cadeia de testemunhas, pensando esse termo a partir das reflexões de Jeanne Marie Gagnebin:

Nesse sentido, uma ampliação do conceito de testemunha se torna necessária; testemunha não seria somente aquele que viu com seus próprios olhos, o histor de Heródoto, a testemunha direta. Testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro: não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente. (GAGNEBIN, 2006, p. 57)

Vale destacar, ainda, que é ao final de A casa velha das margens que ocorre o reencontro definitivo de Emídio com o amigo Domingos. Já em Luanda, então, eles começam a se recordar do passado, das “estórias, que eles tinham vivido e que ninguém lhes tinha contado” (ACVM, p. 334). Mesmo que Domingos, depois, decida abandonar a capital e seguir “nas Margens, nos caminhos de Guengue” (ACVM, p. 346), o abraço finalmente pode acontecer, selando a amizade dos companheiros e a identificação de Emídio com o passado, os costumes e os segredos que o companheiro de infância representa, como já havíamos feito referência.

Também, em A casa do rio, o filho de Antero apresenta-se como um herdeiro da identificação do pai com a terra natal, já que seu sonho é ir para Angola:

o meu filho mais velho anda sempre a seringar-me, ó pai, eu estou farto disto, quero voltar para Angola e fazer a minha vida com os terrenos do avô, mesmo que já não tenham as paredes da casa ou os muros, mesmo que não tenham nenhuma árvore de fruta ou de