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O caso Arnaldo Santos e as ‘histórias dos meninos do Kinaxixe'

Capítulo 1 Redescobrindo Angola para além de Luanda: uma breve travessia

1.2. Luanda esteve e ainda está aqu

1.2.1. O caso Arnaldo Santos e as ‘histórias dos meninos do Kinaxixe'

1974; e Nosso musseque, também escrito em 1961 e 1962, mas tornado público apenas em 2005. Todos eles datam do período anterior à independência, mostrando como a esperança e a luta daquele período histórico se tornavam elementos a sustentar a representação literária de Luanda, o que nos faz lembrar, mais uma vez, as palavras de Ítalo Calvino: “De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas” (1990, p. 44).

Conforme já afirmamos, além de José Luandino Vieira, outro autor da geração Cultura, Arnaldo Santos, também fez da capital de Angola espaço por excelência de sua produção literária inicial. É o que percebemos ao lançar nosso olhar para a coletânea de contos intitulada Quinaxixe (1965), sobre a qual, a seguir, nos debruçaremos com mais atenção, por ser obra de um dos autores escolhidos para a leitura proposta pela tese.

1.2.1. O caso Arnaldo Santos e as ‘histórias dos meninos do Kinaxixe'

Nascido na Ingombota em 1935, um dos mais antigos bairros de Luanda, Arnaldo Santos cresceu no Kinaxixe e lá conviveu com meninos e meninas de classes e cores diferentes. Estes, depois, se tornariam os protagonistas de sua primeira produção em prosa, focalizados pelas lentes da crença e da confiança de quem vê, na infância e na juventude, as sementes para o amanhã tão desejado. Ele pertenceu à geração Cultura e foi no jornal do grupo que iniciou sua carreira de poeta e contista. O escritor também frequentou brevemente a Casa dos Estudantes do Império (CEI), em Lisboa, e, ali, solidificou sua formação política e ideológica, o que o levou a se engajar ativamente na luta pela libertação de Angola.

Em homenagem ao cinquentenário da Casa, o escritor afirmou, em depoimento: “Teria eu sido outro homem se não tivesse passado pela Casa? Seguramente” (2015, p. 101). Recuperemos um breve trecho de seu testemunho, que data de 1994, no qual o escritor recorda esse período de sua vida. O texto foi publicado em um número especial do Boletim Mensagem:

Eu mesmo entrei na Casa com a sensação de que teria que enfrentar um dilema, para alguns, porventura, angustiante. Ser um Homem do Império ou um filho da Casa. A maioria dos estudantes, ou sócios da

CEI, não escapou a esse dilema. Nunca a História tinha oferecido tão abertamente e de maneira tão inequívoca, a uma juventude ávida e inteligente, a oportunidade de fazer parte dela, como um agente activo da autodeterminação, progresso e bem-estar dos seus povos. Era assim que a questão se apresentava. E foram muitos os que a aceitaram. Conscientemente4.

Arnaldo Santos ainda enveredou pelo jornalismo, tendo sido chefe de redação da revista Novembro e colaborador e diretor do Jornal de Angola. Vale notar que foi membro-fundador da União dos Escritores Angolanos (UEA). Ganhou, em 1968, o já referido Prémio Mota Veiga, pela publicação, naquele mesmo ano, do conjunto de crônicas Tempo de munhungo. Desde então, tem sido referência na produção literária de seu país, com destaque para, no campo da narrativa, a novela A boneca de Quilengues: as estórias proibidas (1991); as coletâneas de contos Quinaxixe e outras prosas (1981) e O cesto de Katandu e outros contos (1986); além dos romances A casa velha das margens (1999) e O vento que desorienta o caçador (2007).

Para ilustrar o papel de destaque que Luanda desempenha na trajetória literária inicial de Arnaldo Santos, nos ateremos brevemente ao seu primeiro volume de contos, intitulado Quinaxixe (1965). Nele, como logo se percebe, o afeto pela cidade natal se anuncia desde o título, já que este convoca o bairro e a antiga lagoa de mesmo nome, hoje aterrada, que serviu de ambientação para as narrativas ali reunidas. Em um percurso bastante semelhante ao do já comentado A cidade e a infância, de Luandino, nesta coletânea sabemos mais sobre o cotidiano de Luanda a partir das nove “histórias dos meninos do Kinaxixe” (SANTOS, 1981, p. 11). Os contos são alinhavados pela presença dos mesmos personagens, como Zeca, Gigi e Mário, que transitam por vários textos e nos permitem olhar para o conjunto em sua totalidade.

No conto de abertura, também “Kinaxixe”, acompanhamos exatamente um dia desses meninos e meninas luandenses. Apesar das cores e classes sociais distintas, eles conviviam como companheiros de bairro e cúmplices nas brincadeiras e risadas, cujas diferenças eram ofuscadas pela inocência dessa fase da vida e pelo prazer das travessuras. O cenário também se faz protagonista da história, pois na sua descrição vemos a pulsação da vida que desabrocha no amanhecer e à noite se recolhe para anunciar, nas danças e conversas ao luar, um novo e promissor dia. Desde que “o sol

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SANTOS, Arnaldo. “A casa e eu”. Publicado em Mensagem: Casa dos Estudantes do Império – 1944-1994. Número especial. Lisboa: União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa (UCCLA), 2015, pp. 101-102. Disponível em https://www.uccla.pt/sites/default/files/mensa

elevava-se com a vida” (1981, p. 8), na leitura do conto passamos pelo marco das 11 horas, pelo poente, quando “as casas tingiam-se das cores do pôr-do-sol” (p. 15) até fazer-se “noite alta” (p. 18), quando, finalmente, Dona Ana vela pelo filho Mário enquanto este “dormia profundamente” (p. 19) e “vivia, então, o seu grande e único sonho de liberdade – o da sua infância” (idem).

A primeira referência à cor de um dos meninos é marcada, ainda nesse conto de abertura da coletânea, pela fala de uma personagem adulta, Talamanca, viúva de um capitão português. Recuperemos um trecho:

O Zeca cantava baixo, olhando-a prudentemente, com o rabo de olho, ao passar. Ela não se importava nada de lhes dar uma berrida*!5 Talamanca realmente não gostou, e rosnou, deitando-lhe um olhar duro: – Seu mulato vadio...!

– Atira-lhe uma pedra – ofendeu-se pelo companheiro o Mário, que era branco.

(SANTOS, 1981, p. 13, grifos nossos)

A cor da pele, como um elemento que só com o passar dos anos se torna motivo para o afastamento de amigos e a proibição do encontro, já havia sido tratada de modo bastante veemente no conto “A fronteira de asfalto”, de Luandino Vieira. Neste, o menino Ricardo, de “carapinha negra” (VIEIRA, 2007, p. 41), e a branca Marina, de “tranças loiras e laços vermelhos” (VIEIRA, 2007, p. 40), lembram o passado e os tempos de infância em que a amizade ainda era possível. No entanto, no presente da narrativa, tais encontros não mais poderiam continuar pois, nas palavras da mãe da menina, “um preto é um preto” (2007, p. 42).

Na produção de Arnaldo Santos, assim como na de Luandino, percebemos como o preconceito de cor, não percebido no tempo da infância, é mais um elemento que contribui para que o mundo colonizado seja “cortado em dois” (2005, p. 54), conforme analisado por Frantz Fanon, aspecto este a que já fizemos referência. Para além de uma visível linha divisória, indicada por estruturas repressivas como as casernas e o posto policial, a literatura nos sensibiliza para a fronteira simbólica que se sobrepunha e, ao mesmo tempo, reforçava os limites físicos da cidade maniqueísta. Recuperemos as palavras com que Fanon descreve a divisão do mundo colonial, cisão esta que a literatura nos permite vislumbrar:

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O esclarecimento da expressão consta em nota de pé de página da edição de 1981: “berrida – corrida. Dar berrida: dar uma corrida (em alguém); afugentar, afastar com violência”. (SANTOS, 1981, p. 13, grifos da edição).

Não basta ao colono limitar fisicamente, isto é, com policiais e guardas, o espaço do colonizado. Como que para ilustrar o caráter totalitário da exploração colonial, o colono faz do colonizado uma espécie de quintessência do mal. A sociedade colonial não é apenas descrita como uma sociedade sem valores. Não basta ao colono afirmar que os valores desertaram, ou melhor, nunca habitaram, o mundo colonizado. O indígena é declarado impermeável à ética. Ausência de valores, e também negação de valores. Ele é, ousemos dizer, o inimigo dos valores. Nesse sentido, ele é o mal absoluto. (FANON, 2005, p. 58)

Tais tensões sociais, fruto de uma política de desvalorização dos negros pelo discurso colonial, se vão apresentando com mais força quando avançamos na leitura dos textos da coletânea de Arnaldo Santos. Dentre eles, o mais conhecido, “A menina Vitória”, é bastante ilustrativo devido à opressão praticada pela professora assimilada, “uma mulatinha fresca e muito empoada, que tinha tirado o curso na Metrópole” e “renovava o pó de arroz nas faces sempre que tivesse um momento livre” (SANTOS, 1981, p. 33). Ela frequentemente recriminava o menino Matoso, “a quem chamava cafuzo, por ser muito escuro” (p. 33). Para ela, o garoto se havia tornado um “símbolo maldito” (idem) pelo fato de ser pobre, negro e corromper o português aprendido na escola com o uso do quimbundo que ouvia em casa e com o qual se comunicava com os companheiros do bairro. Ao final do conto, Matoso encontra o reconhecimento e a cumplicidade de Higino, o menino Gigi. Este, mesmo muito se esforçando para corresponder às exigências da professora relativas ao uso da língua portuguesa, acaba por sofrer humilhação semelhante à do colega de classe e entende também ser vítima de uma situação da qual, até então, não se havia dado conta.

Recuperemos as palavras finais do conto: “E na carteira chorou. Chorou de raiva, da dor que lhe nascia da piedade dos colegas e da vergonha de não poder esconder a sua angústia, com os olhos secos, enxutos, e orgulhosamente raiados de sangue, como os do Matoso” (1981, p. 37). O desfecho dessa estória, marcado pela dor e pela raiva, aponta para a mudança de perspectiva do menino Gigi, até então dedicado a seguir as imposições da ordem colonial.

A transformação desse personagem se anuncia com mais clareza no texto que encerra a coletânea, o qual tem um sugestivo nome: “Despertar”. Neste, as contradições se acentuam quando Gigi percebe a atitude diferenciada da polícia, que o separou de uma briga “com brandura, mas ameaçou o seu adversário [pobre, de musseque] com o

cassetete” (SANTOS, 1981, p. 69). Nesse ato praticado por um agente do Estado colonial, ele reconhece as injustiças que diferenciam os homens e condenam tantos à opressão e à falta de oportunidades, enxergando, “triste mas firme” (p. 70), sua parcela de responsabilidade por aquela confusão. O personagem percebe-se, assim, como mais um elo de uma cadeia de tantos privilégios e injustiças que precisaria ser combatida e contra a qual passaria a lutar a partir de então, como o conto parece sinalizar.

Em entrevista a Michel Laban, Arnaldo Santos esclarece que os textos que compõem esse seu primeiro livro foram produzidos no Uíge em meados da década de 1950. Naquele período em que esteve distante da cidade e do bairro de sua infância, pôde, lançando um olhar de fora, analisar com mais clareza seu passado, um tempo em que era possível, em suas palavras, uma “sociedade onde brancos, pretos, mestiços..., todos se misturavam e criavam uma forma de convivência que me parecia nova, quase modelar – em termos de padrão – e que poderia ser, eventualmente, projecto de uma sociedade futura” (in LABAN, 1991, p. 498-499). Falar do passado, naquele momento, foi, segundo o autor, uma “sugestão de uma nova forma, de uma nova possibilidade de convivência entre as pessoas” (1991, p. 499), sendo Luanda o espaço em que era possível vislumbrar a materialização de uma ordem em diferença.

Depois da publicação de Quinaxixe, a capital de Angola continuou sendo o espaço focalizado por Arnaldo Santos em Tempo de munhungo, um conjunto de quatorze crônicas lançado em 1968, que reúne, como o próprio autor destaca na dedicatória da obra, “estórias dos caluas (1981, p. 71) – ou seja, dos nascidos em Luanda6. Na trajetória inicial do escritor, portanto, sua cidade natal serviu de ambientação às estórias que quis contar para contribuir com os embates políticos e sociais que, no momento de lançamento dos seus primeiros livros, se agravavam cada vez mais. Afinal, em 4 de fevereiro de 1961 deu-se o assalto às cadeias de Luanda para a libertação dos presos políticos, acontecimento este que passou a ser considerado o marco oficial do início da luta armada contra os colonizadores. De acordo com Douglas Wheeler e René Pélissier,

o ano de 1961 foi de ajuste de contas em Angola, o ponto central da história da luta anticolonial angolana. Despertaria os portugueses da sua letargia e dos seus sonhos, acordaria as esperanças não concretizadas dos africanos e daria a conhecer os horrores da guerra e da repressão (2013, p. 249).

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Sobre esse mesmo episódio, Arnaldo Santos comentou:

[...] obviamente que o 61 foi para nós uma tomada de consciência total. Se antes as coisas se passavam dentro de uma certa nebulosidade, a partir daí tudo era claro, óbvio: ou se era nacionalista, ou se não era; ou se aceitava que Angola fosse independente, ou se aceitava que Angola continuasse como província portuguesa – de uma maneira ou de outra as pessoas tinham isso bem dentro da cabeça. (in LABAN, 1991, p. 509)

O comprometimento do escritor com os rumos políticos de seu país fica evidente quando olhamos para seus textos em prosa, mas também para sua produção em versos. Além de textos de amor, de lembranças da infância e de mensagens aos amigos, há poemas seus dedicados, por exemplo, a Agostinho Neto, herói da independência de Angola, e a exaltar a liberdade e a esperança com o porvir. Em um de seus poemas, que data de 1975, o eu-lírico saúda os homens que, “nesta terra”, constroem o futuro e fazem nascer, das cinzas, a Vida, especialmente no lugar e no mês sinalizados no fecho do poema, ou seja, em “Luanda, Novembro, 1975”. Leiamos:

TEM HOMENS NESTA TERRA Tem homens nesta terra

que vivem no futuro O futuro tem corpo

na força dos seus braços

nos dedos que se prolongam nas kalashes nos sonhos de paz que disparam as kalashes e na luz dos seus olhos

que antecipam as madrugadas. Tem homens nesta terra

que não sentirão a morte As suas vidas nasceram sobre as mortes de comuns nas matas e nas cidades e das lavras em descanso. Tem homens nesta terra

que bebem o futuro no presente e criam

do varrer das cinzas a Vida.

Luanda, Novembro, 1975. (SANTOS, 2011, p. 41)

Depois da referência aos “sonhos de paz”, lida na prosa e na poesia de Arnaldo Santos, outros espaços para além de Luanda passariam a ser mapeados pela ficção do autor, o que demonstra o esforço de denunciar os obstáculos que impedem a criação de uma sociedade marcada pela felicidade, pela justiça e pela liberdade, como Arnaldo Santos afirma:

Uma vez que eu próprio me comprometi, desde que tomei consciência das injustiças dentro da sociedade – nessa perspectiva de uma sociedade diferente, de uma sociedade em que o povo é livre e feliz –, nunca abdicarei da necessidade de chamar a atenção, sempre que possível, para todos os aspectos que possam trair esse projeto de uma sociedade que, enfim, está na cabeça de toda a pessoa que tem um senso de justiça. (in LABAN, 1991, p. 512)

O mesmo engajamento observamos com relação a outros escritores, dentre eles Manuel Rui, para quem Luanda também foi um espaço importante no período inicial de sua produção ficcional. Mesmo não pertencendo à geração Cultura nem tendo nascido na capital, como seu conterrâneo, ele fez da infância e da focalização dos meninos luandenses um mote importante para uma de suas produções mais conhecidas e mais premiadas. Trata-se da novela Quem me dera ser onda (1982), que, no entanto, apresenta uma mudança de perspectiva quanto à representação da cidade, pois foi lançada em outro momento histórico. Vejamos.