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ENTRE O CAMPO E AS LETRAS: AS FRONTEIRAS DE UM PÚBLICO

PARTE I: JORNAIS CENTENÁRIOS E MODOS DE CONTAR O PASSADO

2.1 ENTRE O CAMPO E AS LETRAS: AS FRONTEIRAS DE UM PÚBLICO

A edição centenária de O Fluminense é dividida em três produtos impressos encartados conjuntamente. O primeiro é o caderno regular, com sua configuração editorial diária (standard, preto e branco, com toda as seções rotineiras), incorporando as comemorações de modo noticioso. Nele, o aniversário é transformado em acontecimento público. Tal mecanismo prepara a sensibilidade do leitor, supondo que ele faça uma leitura linear, para que se envolva com as histórias contadas nas páginas seguintes dos dois outros impressos, estes sim, especiais: primeiro, o suplemento (com primeira página em cores, sem texto – só com o título "O Produto fluminense", também em formato standard), composto por oito cadernos, sobre aspectos socioeconômicos e culturais do estado; e, o segundo, um tablóide colorido com a história do diário, chamado de “Caderno Especial”.

O jornal dá início a suas comemorações com dias de antecedência, fazendo uma contagem regressiva, indicada por um selo na primeira página ("Faltam x dias para o centenário"), e anunciando uma série de eventos promovidos pela empresa. No caderno principal, procura envolver a comunidade nos festejos, como na chamada de primeira página do dia 9 "A NOSSA FESTA":

Nas ruas o povo canta parabéns.

70 Quatro dias antes (05/05/1978), havia antecipado: "Dia 9 começa um novo século", com a ilustração de uma gráfica antiga. Ainda na primeira página, diz que no aniversário de sua fundação,

[...] começaremos um novo tempo de informação. E começaremos bem: com a edição comemorativa CEM ANOS DE PRODUTO FLUMINENSE. Uma retrospectiva do que foram estes cem anos de notícias e a realidade presente em todos os setores sócio econômicos. Da agropecuária à indústria pesada; da extração dos minérios aos manufaturados. Tudo o que fez e está fazendo em importantes setores tais como a educação, saúde, planejamento. As perspectivas fluminenses no contexto nacional. Uma visão panorâmica que servirá de

consulta a estudiosos. Edição que você não pode perder. Dia 9 de maio, em

todas as bancas. (O Fluminense, 05/05/1978, p. 1, original sem grifos)

A edição comemorativa seria, portanto, a inauguração de um “novo tempo”. Mas esse “novo” teria aí um sentido de renovação, não de ruptura, porque, na verdade, o que o jornal procura construir narrativamente é justamente sua “tradicionalidade”, como diz Ricoeur (1996). Sua continuidade frente ao passado tornado tradição.

O trecho explicita também a intenção pedagógica do uso documental do jornal, ao afirmar que os estudiosos deverão usá-lo, fundando-se assim como passado para homens e mulheres do futuro. Aquele número em especial deveria ser guardado, obedecendo a uma lógica temporal irregular – era para ser mais perene que as edições normais. Entretanto, o valor de perenidade acaba sendo transferido para o título como um todo como aquilo que deve ser guardado.

É preciso esclarecer que em 1978 o jornal não era publicado às segundas-feiras, dia em que caiu seu aniversário. Por isso, a edição centenária, com data dupla de 8 e 9 de maio, foi publicada no domingo, dia 8. Frequentemente, o jornal faz referência à data de forma imprecisa. Fala do aniversário do dia 8 e ao mesmo tempo como dia 9, data da edição comemorativa. Isso leva a crer também que a equipe que produziu parte da edição com antecedência não soubesse exatamente quando o material seria publicado.

A promessa acerca do conteúdo da grande edição não se cumpriu totalmente. O suplemento especial não trataria nem de saúde, nem de educação e também não se constituiria em retrospectiva. Pelo contrário. Há pouco de passado nesse suplemento e muito mais de futuro, prognósticos, projeções. É verdade que o jornal fez um amplo diagnóstico dos problemas e

71 potencialidades do estado, mas não tratou o passado como história, como fez o Jornal do

Commercio, nem apresentou a retrospectiva que prometera. Nessa edição centenária, a parte que

coube ao passado foi muito mais a história do jornal, destacada no tablóide de 24 páginas, encartado junto, analisada no item 2.4. Já o passado do Estado do Rio entrou marcadamente como tradição. O futuro, por sua vez, foi mais explicitamente anunciado como intenção, projeto, do que na edição de cem anos do Jornal do Commercio, porém tanto quanto na de 180 deste mesmo periódico. E, sem dúvida, dos três, o Jornal do Brasil foi o que menos se referiu a expectativas de futuro, como mostrado no próximo capítulo.

Nas semanas anteriores aquele 9 de maio, as chamadas que antecipavam as celebrações incluíram um festival de bandas colegiais, um "monumental espetáculo pirotécnico" na Praia de Icaraí, e o mais importante: a Corrida da Integração Fluminense de ciclismo, partindo de Campo Grande, na Zona Norte do Rio, e chegando a Niterói pela ponte. O vencedor receberia a "Taça Centenária do Fluminense". O nome do periódico, como sinônimo daquele que é natural do Estado do Rio, já lhe permite mediar e capitalizar, por meio de diferentes jogos retóricos, sua identidade e a de seu público. A Taça Centenária é do jornal mas também do povo. Além disso, o circuito de ciclismo, ligando Rio a Niterói, e celebrado como "Corrida da Integração", é mais um indício das novas acomodações político-identitárias que estavam em jogo pós-Fusão. Portanto, mesmo no caderno regular, o jornal já começava a delinear um problema que seria amplamente desenvolvido no suplemento especial.

Ainda sobre a proximidade de seu aniversário, O Fluminense passa a adotar o slogan: "Um século de jornal verdade". E começa a explorar a data centenária antecipadamente. No dia 5 de maio, na página 6, conta a história de um personagem que encarna o típico fluminense que seria enfocado exaustivamente na edição dos dias 8 e 9.

Morador da Engenhoca e natural de São Gonçalo, Antônio Soares Rego, que completara cem anos um mês e um dia antes de O Fluminense, é perfilado em página inteira, com duas fotografias grandes em close em preto e branco, numa delas, com um fiapo de palha na boca, caracterizando o personagem que encarnaria o "fluminense" procurado pelo jornal: o roceiro. Tipo contrabalançado pelo operário naval e pelo pescador, personagens também representadas.45

A tentativa de construir um tipo ideal que encarnasse a identidade regional fica explícita no título da primeira matéria do Caderno "O homem fluminense": "Em sua terra ele é, antes de

45

72 tudo, um forte" (p. 3). A referência à famosa frase de Euclides da Cunha acerca dos sertanejos evidencia a intenção do jornal: construir uma identidade regional da mesma forma que o escritor fazia ao enaltecer o sertanejo como brasileiro típico, para que jamais nos identificássemos como o "mestiço neurastênico do litoral." (CUNHA, 1991, p. 81) Mas, assim como Euclides da Cunha tinha um "outro" que tentava evitar na formação da identidade nacional, no caso o negro e seus descendentes, também O Fluminense devia ter um "outro" que procurava excluir da formação do ser fluminense. Quem seria ele? O homem urbano?

Ainda sobre a reportagem com seu Antônio, o texto começa simulando a fala de um historiador contando que "de 1878 a 1978 muitas coisas aconteceram no Brasil" e as enumera, mas nessa lista não constam apenas fatos da história "oficial", política, mas também outros de natureza essencialmente simbólica, como a alunissagem. Em relação aos outros dois periódicos sob estudo, O Fluminense é o que articula uma visão mais complexificada de história, como se verá adiante. O historiador, para O Fluminense, poderia dizer:

[...] que 'há cem anos, passou-se isso ou aquilo, mas talvez ele não saiba que um homem de olhos vivos, andar experto [sic], durinho, pele negra, com algumas rugas insignificantes no braço, acaba de fazer seu centenário [...] Diante da figura amável de Antonio Soares Rego (natural de São Gonçalo), a gente entende o espanto do historiador francês ao constatar que este é um País de

muitos e diferentes séculos... (O Fluminense, 05/05/1978, p. 6, original sem

grifos)

Não explicando quem é o historiador francês referido, provavelmente um ser genérico, o jornal entrelaça diferentes temporalidades ao reconhecer que o Brasil é um país de múltiplos tempos. Entre as temporalidades do historiador e as de seu Antônio, O Fluminense se posiciona claramente ao lado do último. É com olhos de testemunha e de quem viveu que ele pretende montar sua autoridade, não com a autoridade de quem "historiografa". Já esse tipo de autoridade, advinda da historiografia, foi construído mais no tablóide sobre sua própria história do que no suplemento sobre o Estado do Rio. Sobre seu Antônio, O Fluminense continua:

[...] um mês e um dia mais velho que o mais velho jornal do antigo Estado do Rio de Janeiro, tem muito o que contar. (O Fluminense, 05/05/1978, p. 6, grifos nossos)

73 Como se reconhecesse não poder dar conta da totalidade da história, o jornal opta pela exemplaridade de seu Antônio e com ele estabelece um paralelo, pois ambos experimentaram cem anos de história. Das três possibilidades da hermenêutica da história de que fala Ricoeur (1996), o Mesmo, o Outro e o Análogo, é segundo a analogia que o jornal monta seus argumentos. Assim, O Fluminense legitima seu falar pelo poder da experiência que pega emprestado de seu Antônio. Ele é o exemplo do povo fluminense e sua experiência lhe confere autoridade para "ter muito o que contar". Portanto, não é somente o jornal que possui capacidade de contar. Ele reconhece a autoridade de seu Antônio, embora invista sua fala de uma ingenuidade preconceituosa e estereotipada que mais adiante, no suplemento especial, o próprio

Fluminense irá problematizar no Caderno "O homem fluminense" (p. 3, 4 e 6).

Se o Jornal do Commercio usa a biografia de seu fundador, Plancher, e de seus mais notáveis colaboradores para construir sua autoridade em retrospectiva, para dar forma a uma continuidade do Mesmo no transcurso do tempo (id., ibid.), já O Fluminense escolhe, pelo menos nesse momento, um personagem emblemático externo a seus quadros para encarnar o ideal identitário do povo fluminense.

Filho da escrava Josefina Maria da Silva, foi criado por dona Carlota e seu Manuel José de Vargas, 'ela, única amiga da minha mãe na escravidão.' Antônio da Carlota, como o chamavam, não chegou a amargar o cativeiro. E agora, um sorriso largo com poucos mas fortes dentes, ele pergunta agitado ao fotógrafo

'Ué, mas vai tirar fotografia assim mesmo!', preocupado com a roupa, com cara de 'mas se você quiser, eu coloco outra.' (O Fluminense, 05/05/1978, p. 6,

original sem grifos)

O trecho dá conta não somente do contato do personagem com o agente do jornalismo como também com sua negociação diante das expectativas que Antônio tem do que seja aparecer no jornal. Ele quer estar bem na foto, quer trocar de roupa, pergunta se está bom, embora o repórter tenha dito que ele já estava com uma roupa nova e limpinha. Além disso, o repórter evidencia que interpretou a expressão facial de seu Antônio, imaginando o que ele pensava e expondo isso ao dizer "com cara de". Portanto, está-se longe, neste momento, do modelo jornalístico de objetividade. Por se tratar de um material excepcional, o suplemento permitiu maior flexibilidade redacional, distante daquilo que, no senso comum, entende-se por jornalismo.

74 Figura 8

A história de seu Antônio dias antes do centenário. O Fluminense, 5/05/1978, p. 6

O repórter continua contando sobre a atividade profissional de seu Antônio e evidencia o diálogo que tiveram. A confusão de aspas e o entrelaçamento das falas mostram isso. Inclusive uma das aspas não é fechada, mostrando que talvez o repórter, ao escrever, já tivesse perdido a fronteira entre ele e o “outro”, entre o que ouviu, imaginou e o que inventou na redação (embora possa ter sido simples erro):

75

Apesar da 'vida sacrificada', Antônio Soares Rego diz sentir-se 'muito bem, graças a Deus; meu único defeito, que acarreta pensamento contrário, por seu mau colocado, é a aposentadoria da Prefeitura Cr$ 1.351 pelos 30 anos de serviços prestados como chefe de turma de terraplanagem.

Nasci e fui criado fora de parentes, por família pobre que nada me ensinou porque nada sabia. Se pelo menos eu tivesse aprendido a contar até 10; a gente de 10 vai tirando a conta para diante, vai progredindo a sabedoria. (O Fluminense, 05/05/1978, p. 6)

Não se trata de um narrador onisciente. O repórter anônimo inclui na sua narrativa as intervenções de Antônio estabeleceu durante a entrevista. Ou, não se pode saber ao certo, as intervenções e falas que o próprio repórter simulou no texto. Há aí o exercício de outro tipo de jornalismo que, em vez de supor ser capaz de esconder, exibe as marcas do mundo sobre o qual fala e também a subjetividade do repórter. Talvez porque aquele fosse um momento especial em que essa estratégia lhe conferiria mais autoridade do que se fosse mantido um padrão de distanciamento (na forma do narrador onisciente e impessoal).

Não se trata apenas do problema de como O Fluminense representa "o fluminense", mas que dessa articulação dependia sua localização no mercado linguístico (BOURDIEU, 2008). Não apenas o sentido de seu discurso estava marcado por sua posição nas estruturas do mercado comunicacional, mas também seu valor simbólico, frente a outros periódicos, diretamente, e frente a outras formas de representação social, de forma ampla. Ele precisava traçar uma lógica própria, de modo a captar competências particulares para se fazer entender e para adquirir relevância social dentre tantas outras fontes discursivas no cotidiano. O jornal traça essa lógica definindo sua identidade narrativa a partir de uma dupla operação: desenvolvendo um modo próprio de narrar e uma identidade construída na narrativa. (RICOEUR, 1991b)

Quando se emprega a expressão mercado comunicacional, não se trata, apenas, do mercado no sentido estreito, comercial: o quanto O Fluminense ganhou ou perdeu de leitores, de anunciantes, de assinantes, mas de um ganho simbólico. Segundo Bourdieu (2008), o valor de um discurso e sua autoridade não advém de características imanentes a ele, como se possuísse uma força ilocutória, mas das relações de força travadas concretamente por seus locutores. Ou seja, o discurso possui um valor relativo, dependendo da situação em que é enunciado e dos atores envolvidos no circuito enunciação-apropriação. E, ainda que a riqueza material dos locutores seja um dos elementos de força nessa disputa, ela não é conversível em lucro simbólico

76 de forma óbvia, linear e necessária. Nem o contrário é determinado. O lucro simbólico pode ou não ser convertido em riqueza material - o que não se vai investigar aqui – embora seja fator importante para a definição das regras dessas trocas.

Permitindo-se traduzir mercado linguístico por mercado comunicacional, o valor de uma forma específica de comunicação – o jornalismo - só é estabelecido na relação com todo o mercado (ou sistema comunicacional). Se o valor de troca de uma mercadoria só existe na troca e por causa da troca, como diz Marx (1996)46, e se Bourdieu (2008) incorpora esse vocabulário econômico para explicar sociologicamente as interações comunicacionais, então o valor de O

Fluminense e do jornalismo em geral só é estabelecido em relação a todo o conjunto de práticas

comunicacionais de uma sociedade. Seu valor não é dado; é resultado parcial de interações sociais mais amplas.

Ao preparar a edição centenária, O Fluminense precisava reivindicar certa identidade que possibilitasse ao leitor reconhecê-lo e inseri-lo em certa posição nas hierarquias do mercado comunicacional. Ou seja, precisava reivindicar a manutenção de sua autoridade, agora frente a novas posições ocupadas por outros atores nesse mercado. Afinal, os periódicos sediados na cidade do Rio haviam deixado de ser jornais da capital federal em 1960, deixaram de ser jornais do Estado da Guanabara em 1975, passaram a ser jornais da capital do Estado do Rio e O

Fluminense deixou de ser um jornal de capital. Daí a ansiedade por reposicionamentos e a

evocação nostálgica do passado na forma de tradição, o que permeia toda a edição.

Embora ainda não se tenha chegado efetivamente à edição centenária e até o momento se tenha focado apenas uma reportagem, ela é significativa da dimensão que o problema identitário (do público e do jornal, ou seja, da relação de identificação) adquiriria. A antecipação desse problema numa edição regular anterior à de aniversário só reforça a tese de sua importância nas comemorações. Isso fica patente nos anúncios produzidos pelas Câmaras e Prefeituras de municípios do estado que, ao parabenizar O Fluminense, reafirmam sempre que se trata do jornal do estado do Rio. "Do" jornal, com artigo definido. Ou seja, com sentido de único, ignorando a nova condição política do antigo estado.

O Estado do Rio havia acabado da forma como era. A capital fora transferida para a cidade do Rio, antigo Estado da Guanabara. Com tantos importantes periódicos sediados na nova

46 “As mercadorias só encarnam valor porque são expressão de uma mesma substância social [o trabalho] cujo valor

só se manifesta na troca." Cf. MARX, Karl. O capital. Crítica da economia política. Livro 1. RJ: Bertrand Brasil, 1996, p. 55.

77 capital, O Fluminense teria que se reposicionar para obter novos anunciantes. E as publicações oficiais de governo, com suas respectivas verbas, para quem iriam? Como ficaria o diálogo com as autoridades de governo, a partir de então mais distantes da esfera de influência de O

Fluminense? Ele teria que redefinir sua relação mercadológica e simbólica.

O mapa que o jornal publica na primeira página do Caderno "As regiões" não indica a localização de Niterói. Isso é significativo do quadro com o qual o jornal teria que lidar. Há um incômodo silêncio. Tentando se manter como "o" jornal do estado, ele perdia espaço, no Leste fluminense, para outros periódicos como O DIA, O Globo e Jornal do Brasil. Naquele contexto, a edição centenária se apresentava como excelente oportunidade para se rearticular no mercado simbólico.