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PARTE II: ACONTECIMENTOS MIDIÁTICOS E A EXPERIÊNCIA TEMPORAL

4.2 MEDIDAS DO TEMPO

A experiência do jornalismo engloba mediações temporais que incorporam diferentes sistemas de medição. Medição e mediação são operações muito semelhantes. Além de serem artefatos de contagem do tempo, no sentido de transposição dos dias, os jornais também articulam representações de tempos pretéritos e narram experiências de presente.

A partir de uma tipologia do uso do tempo pelo Jornal do Commercio, O Fluminense e

Jornal do Brasil, destacam-se: a) um tempo cosmológico (incluindo sua versão mítica), usado

para medir a passagem do tempo; b) um tempo historiográfico ou midiográfico, cujo uso é mais restrito, porém não menos importante para conferir certo valor simbólico à prática jornalística; c) e finalmente um uso cotidiano, mais perecível, que caracteriza mais acentuadamente o jornalismo integral. (GRAMSCI, 1995)

4.2.1 Cosmologia e cosmogonia

As marcas do tempo são especialmente sensíveis nos jornais. O processo de significação de suas narrativas depende do vínculo à data, ou seja, à medição da duração. A correspondência de uma edição a um intervalo de tempo é fundamental na feitura de um jornal. Suas narrativas não são soltas, como as ficcionais, para serem apreendidas com liberdade no tempo. A inteligibilidade jornalística depende de sua localização na duração. Ou seja, seu tempo contado depende intimamente do tempo do contar. (RICOEUR, 1994)

163 Nem sempre a organização dos tempos do contar e contado foi como hoje. O Correio

Braziliense (1808-1822), por exemplo, publicado em Londres e enviado ao Brasil por navio, era

datado de acordo com o início de sua confecção, não com a publicação. Seu editor (na época se dizia redator), Hipólito da Costa, recolhia informações e escrevia nos 15 primeiros dias e passava os outros 15 fechando o jornal e o imprimindo. Só a impressão levava 32 horas. Depois disso, o jornal, que mais parecia um livro, ainda precisava ser embarcado e passava dois meses em trânsito até chegar à costa brasileira. Ou seja, sua datação correspondia a três meses antes da circulação. (MESSAGI, 2008)

O Fluminense publicava em 1898 a coluna “A SEMANA”, que, contrariando o nome,

não obedecia ao intervalo cronológico de sete dias, contendo informação tanto anterior quanto das semanas seguintes, como uma espécie de programação de pauta do jornal.

A marcação do tempo foi se tornando função essencial dos jornais, a ponto de lhes ser dada credibilidade para datá-lo. Lembre-se que guerrilheiros fotografavam o sequestrado ao lado de um exemplar do dia, na época da ditadura militar dos anos 1960-1970, para assegurar que estava vivo. A própria assinatura do periódico é um contrato que depende de datação para garantir seu período de vigência. As referências à passagem do tempo vão desde matérias, charges e artigos especiais de final de ano, à data diária no alto de página, previsão do tempo, efemérides em geral até o horóscopo.

Em 1904, a obsessão com a precisão do tempo era tamanha que Jornal do Brasil publicava uma lista de correspondência do dia aos calendários muçulmano, chinês, copta, positivista, além, é claro, dos nascimentos e ocasos do sol e da lua diariamente, entre outros exemplos óbvios de fornecimento de sentido de passagem do tempo cósmico: “1º de maio: 122º dia do ano e 1º dia do 5º mez.” Também as datas das correspondências (carta de 26 de março de 1877 publicada na edição do dia 3 de abril) davam ideia do deslocamento de Portugal ao Brasil e evidenciavam o circuito de comunicação em que os jornais estavam inseridos.

Tal obsessão persiste até os anos 2000 no Jornal do Commercio, que relaciona a edição às datas correspondentes com precisão: “3, 4 e 5 de agosto de 2007, fim de semana” ou “14, 15 e 16 de junho de 1997 – domingo, 2ª e 3ª feira.” Em seu primeiro ano (1827), vinculava seu tempo ao tempo do Império, destacando no alto da página: “Sexto anno da Independência”. O JB também publicava: “Edição da manhã, sabbado, 9 de fevereiro de 1901 - anno 40”. Ou seja, importava também capitalizar simbolicamente a própria contagem.

164 A confiança na marcação do tempo no jornal e pelo jornal fica evidente no episódio:

Horário errado anula concurso do município

Erros na informação do horário – o início era às 10 h e não às 13 h – e dos locais do concurso para agente educador da prefeitura, divulgados pelo jornal

Folha Dirigida, levaram o secretário municipal de Administração, Augusto

Werneck Martins, a anular as provas ontem e a marcar novo concurso para os 25 mil candidatos, no dia 4 de agosto.

– Não é normal uma abstenção de 40% dos candidatos por causa da má orientação de um jornal que se diz especializado, acusou o secretário.

Ele mandou abrir inquérito para apurar prejuízos da prefeitura, pois candidatos revoltados quebraram janelas em escolas e fecharam o trânsito perto da Universidade Gama Filho, na Piedade. (JB, 22/09/2001, p. 1)

Esta chamada de primeira página mostra o quanto a subordinação do tempo cósmico aos tempos do jornal se dá não sem conflito. A rigor se trata de ritmos diferentes que se chocam, ao mesmo tempo em que são subordinados ao ritmo jornalístico. Moretzsohn (2002) mostra o conflito entre o tempo da produção jornalística e o tempo do desenrolar dos fatos. Seifert (2004) expõe o choque entre esse mesmo ritmo jornalístico e o do trabalho da Justiça.

Várias durações são disputadas como tempo de significação social: desde os místicos até os do trabalho, passando pela fantasia. Desde os folhetins, que obedecem a outras periodicidades e que instauram outros tempos ficcionais, até os ritmos da natureza, com as previsões meteorológicas, tábuas de marés, e os tempos zodiacal e religioso.

Mesmo antes dos modernos cálculos meteorológicos, o Jornal do Commercio mantinha, em 1877, nota de primeira página com a descrição do clima no dia anterior: “Choveu às 7h”. O mesmo fazia O Fluminense. No dia 5 de julho de 1898 fez 20 graus no Fonseca, em Niterói: “Temperatura no Fonseca (dentro de casa): Min. 20 graus. Máx. 21 graus.” (O Fluminense, 05/06/1898, p. 1)

Apareceram inúmeros exemplos de uso cosmológico e cosmogônico do tempo (o que seria sua versão mística). Separou-se a amostragem em cinco tipos: marcadores da vida biológica (aniversários, comemorações, obituários, bodas), marcadores da vida mística (calendários religiosos, zodiacais), tempos ficcionais (folhetim), ciclos cósmicos (estações climáticas, calendário gregoriano), e tempo histórico/ memória (efemérides e comemorações).

Observa-se que os usos desses tempos não produzem significações exclusivamente cosmológicas, sendo esta divisão apenas recurso explicativo. Por exemplo, o tempo histórico,

165 que serve para dar sentido às ações do homem no tempo, com sentido de apreensão do passado, funciona como tempo físico naturalizado. Por isso, alguns “tempos” que se estão destacando aqui aparecem em mais de uma categoria.

No Fluminense, a passagem da vida biológica tem lugar especial no caderno “Pingo de Gente” (que oscila entre duas fases como tablóide separado e coluna no “Segundo Caderno”), dedicado ao público infantil e publicado aos domingos. Nele, são publicadas, na “Galeria de Sócios”, fotografias de crianças que recebem carteirinhas do jornal e ganham o direito de enviar desenhos a ser publicados na coluna “Arte dos artistas”. Além de fidelizar público futuro, O

Fluminense acaba assim atendendo à vaidade dos pais de ver a imagem de seus filhos estampada

no jornal, além produzir um efeito de registro do tempo, pois fixa num instante da duração o crescimento infantil e o desenvolvimento de suas capacidades motoras e intelectuais ao desenhar. A morte não poderia ficar de fora. Desde as imprevistas, contadas nos crimes e tragédias, até as mortes dos anônimos nos avisos fúnebres, e sobretudo dos ricos e famosos, destacadas nos obituários, o que os três periódicos sempre mantiveram, assim como as notas sociais, destacando casamentos, aniversários, bodas: “Parabéns. Hoje faz annos a menina Maria Augusta, dilecta filha do sr. Bernardino da Silva Carvalho.” (Jornal do Commercio, 01/09/1898, p. 1)

Chama atenção a recente contabilidade dos mortos. Enquanto as mortes são pontuais por quase dois séculos, em 1971 (22 de janeiro, p. 1) o Jornal do Brasil contabilizava 20 crianças por dia vítimas de doenças em decorrência do “violento calor”, mas, no início dos anos 2000, os jornais já contam às dezenas a mortalidade no trânsito nos finais de semana e em decorrência de conflitos armados no perímetro urbano. Assim como media a experiência urbana cotidiana, a morte media também o tempo histórico quando os jornais narram biografias de “grandes vultos”.

Tanto o Jornal do Commercio quanto o Jornal do Brasil mantiveram espaços dedicados à religiosidade, sobretudo católica, embora o Jornal do Commercio também criticasse a lógica religiosa, principalmente em seus momentos mais entusiastas do positivismo, como nestes exemplos de 1907.

JESUS CHRISTO: um novo modo de encarar a sua individualidade histórica [praticamente história do cristianismo, sobre sacralidade da Bílbia, seus autores, comparação entre os evangélios] (Jornal do Commercio, 4/07/1907, p. 8)

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Por que a imprensa catholica é inferior à imprensa liberal e tem na Allemanha circulação menor do que a imprensa dos outros partido? (Jornal do Commercio, 6/07/1907, p. 2)

Ambos publicaram colunas que tinham por função manter como referência o calendário religioso: “Notas Religiosas” no JB e “VIDA CATHOLICA” no Jornal do Commercio. Embora as colunas articulassem questões espirituais especificamente (Quanto pesa a alma? Entre 11 e 45 gramas – Jornal do Commercio, 21/07/1907, p. 2; Predestinação, elevação sobrenatural do gênero humano), eram majoritariamente dedicadas à hagiografia. Como uma efeméride católica, contavam a história do santo do dia, além da agenda de missas e reproduções de homilias. No JB, essas “Notas Religiosas” foram publicadas até pelo menos os anos 1950. Já O

Fluminense mantinha uma coluna espírita e dava espaço a outras denominações religiosas:

Mãe Luisinha [responsável pela ala das baianas desde 1959] fez oferendas, jogou búzios e confia num grande desfile da [Acadêmicos do] Cubango (O Fluminense, domingo e segunda, 7 e 8/02/1988, p. 1)

São Sebastião para os católicos e „Oxossi‟ para os umbandistas, São Sebastião foi festejado ontem nesta Capital e na Guanabara, de onde é padroeiro (O Fluminense, quarta-feira, 21/01/1971, p. 1)

Outra importante marcação temporal é a sazonalidade do sistema produtivo, expressa sobretudo nos anúncios: “Encomende seu modelo Ford 1946!” ou “Uma cousa espantosa! Leão de Ouro - Temos um grande e colossal stock de lança-perfume, serpentinas, confettis, calças brancas, pimpões ...” (O Fluminense, 17/02/1928, p. 4) O anúncio dos artigos de carnaval e do novo lançamento da Ford evidencia que as estações, as festas anuais e os ciclos produtivos funcionam como medidas do tempo, ou seja, como forma de dominá-lo.

Para Le Goff (1997c), quem domina o tempo domina as pessoas. “A divisão do tempo é uma das concepções mais ousadas e mais úteis do espírito humano”, disse o relator do projeto de criação do calendário revolucionário francês, sendo os recortes unidades de tempo que funcionam como quadro referencial para as ações. (Id., ibid., p. 264) O principal quadro, no mundo Ocidental, é o calendário gregoriano. Os jornais estão subordinados a esse ritmo, mas, ao definirem sua periodicidade, criam um ritmo próprio.

167 É importante destacar que, mesmo sendo diário, um jornal não reproduz exatamente o calendário gregoriano. Segundo a Associação Nacional de Jornais (ANJ), considera-se diário o periódico que circula pelo menos três vezes por semana. Lembre-se também que nenhum dos três jornais aqui analisados saiu sempre os sete dias da semana, embora fossem considerados diários. O Jornal do Commercio chegou a condensar sábado, domingo e segunda-feira numa só edição, O Fluminense condensa domingo e segunda e o JB “pulava” a segunda-feira nos anos 1930. Portanto, o próprio status “diário” é um efeito narrativo sintetizado nas edições.

A íntima relação entre jornalismo e tempo já se expressa em seu nome (journal – journée – jornada): Diário de Rio de Janeiro (RJ: 1821-1978), Diário Mercantil, Diário do Vale (Volta Redonda), Diário de Natal, Diário de Pernambuco, Newsweek (EUA), para citar alguns.

Diante da importância de marcar o tempo e se apropriar do calendário gregoriano, as empresas jornalísticas imprimiam e/ ou revendiam folhinhas. O Fluminense anunciava em 1928 (03 de janeiro, p. 1): “Recebemos lindas folhinhas para o corrente anno, das importantes casas comerciaes seguintes: Da Typographia e Papelaria Jeronimo Silva; Da Alfaiataria Regina (...); Da Casa Floresta (...).” O Jornal do Commercio, como já dissemos, vendia as famosas Laemmert no século XIX e, em 1948, imprimia sua própria: “Como acontece todos os anos, com a edição de hoje será distribuída a folhinha do JORNAL DO COMMERCIO, sem que por isso haja alteração no preço habitual da folha.” (Jornal do Commercio, 1º/01/1948, p. 1) O jornal continuava custando Cr$ 0,60 o exemplar avulso (aos domingos era 0,70) e ainda oferecia o brinde. Ou seja, durante muito tempo a obtenção das folhinhas podia ser associada ao jornal. Ao revendê-las, também configurava função prestadora de serviço: fornecer um objeto de primeira necessidade.

Além de objeto físico, os calendários são sistemas de significação dos quais os jornais se apropriam para construir sua inteligibilidade. Assim, eles próprios se tornam objeto e sistema cultural de temporalização, objetivando o sistema calendário. Constituem-se em organizadores dos múltiplos quadros temporais justamente por se apropriarem de tantos diferentes e, sobretudo, por fazerem a ponte entre os tempos cotidianos e históricos. (Op., cit.)

Gradativamente foi se atribuindo aos jornais uma função-calendário. Enquanto folhinhas figuram nas paredes das cozinhas, nas portas de geladeira, nas mesas dos escritórios e na versão digital em aparelhos celulares e no computador, funcionando como calendário privado (assim

168 como os almanaques), os jornais desempenham a função calendário público. Mas não só isso, a mídia em geral funciona muitas vezes efetivamente como relógio. (BARBOSA, 2007b)

A “revista mensal” publicada pelo Jornal do Commercio em 1838 também não deixa de ser marcação de tempo, não só memória e história. Mesmo as famosas “Efemérides do Barão do Rio Branco”, publicadas pelo JB desde o segundo número, assim como outras efemérides mantidas por esses jornais (“Saiu no JB há cem anos”, “O Jornal do Commercio publicava na edição de 2 de agosto há 150 anos:”), garantem não apenas função memorialística mas acabam também indicando a passagem do tempo.

A efeméride é um recurso curioso, pois torna o passado vinculado à atualidade. Trata-se de um recurso para tentar pautar um assunto. Assim, algo circunstancial recebe aura de ineditismo graças à marcação do tempo, podendo ser assim convertido em notícia como no exemplo: “50 anos de Hollywood tropical. A Atlântida reúne um acerco de 62 filmes com o melhor da chanchada.” (JB, Caderno B, 21/07/1991, p. 8) Simplesmente se queria falar da produtora, mas, na falta de adequação aos “critérios de noticiabilidade”, usou-se o tempo cósmico como pretexto, subordinado-o ao jornalístico.

Quem consegue impor seu sistema de temporalização tem vantagem sob os demais. Le Goff (1997c) mostra como o catolicismo se apropriou com incrível habilidade dos calendários pagãos e descreve a invenção de instrumentos de medição do tempo, como, por exemplo, o século, adotado pelos historiadores no século XVIII como forma historiográfica de contar o tempo. Da mesma forma, a periodicidade de um jornal constitui o instrumento de dominação do tempo pelo jornalista e o jornal como instrumento de dominação do tempo pela sociedade. Tanto historiador quanto jornalista acomodam narrativamente coisas e pessoas na duração. Também para jornalistas e historiadores, os acontecimentos são âncoras para essa acomodação, como se verá no capítulo seguinte.

É verdade que a crescente complexificação das sociedades contemporâneas, com a experiência de múltiplos ritmos, extrapola a resposta que um jornal impresso pode dar, já que seu tempo é fixado pela impressão. Por outro lado, sua leitura sempre recoloca a comunicação em novo fluxo, dá partida a novos processos, e sua periodicidade marca um ritmo social.

169 4.2.2 Explicando o passado

Já se relatou amplamente uma forma fundamental de narrar o tempo de maneira “historiográfica” na primeira parte quando se tratou das comemorações. Essa maneira de representar o passado chancela os jornais como defensores da memória do país e registradores do tempo, pressupondo certa concepção de história. Aos jornalistas a semelhança com o trabalho do historiador confere poder especial, aproximando-os idealmente de um intelectual paradigmático, intérprete privilegiado do passado e do presente.

Em 27 de abril de 1888, O Fluminense anunciava vender por 1$000 o exemplar especial