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PARTE II – O ENTE EMPÍRICO IBITIPOCA: ESPAÇO ETNOGRÁFICO

2.2 Das relações de produção baseadas em formas coercivas ambíguas

2.2.1 Entre colonos, camaradas, fazendeiros e sitiantes

Nas primeiras décadas do século XX, a agricultura de subsistência da Serra de Ibitipoca possuía autossu� ciência relativa, uma vez que havia a � gura do “alto fazendeiro” e os poderes por ele concentrados, já que este era detentor de algu- ma representatividade política e de status social local. Enquanto que os pequenos proprietários de terra (sitiantes) se utilizavam da agricultura de subsistência (eco- nomia de excedentes), os poucos fazendeiros da região alçavam uma produção em escala relativamente maior, a qual implicava o emprego da mão de obra local inter- mediada pelas “relações de camaradagem” entre o “senhor/patrão” e os “colonos/

agregados” e “camaradas”. Essas relações de produção incluíam a troca de trabalho

por terra agricultável, alimentos, favores e/ou proteção – embora alguns campo- neses eventualmente recebessem ocasionalmente uma contrapartida monetária pelo dia de serviço: o “jornal” 88.

A esses homens livres e pobres ligados à esfera produtiva agrícola resta- vam três colocações possíveis na escala social: i) Estabelecerem-se nas terras de outrem a partir de relações coercitivas não capitalistas (colonos/agregados); ii) Tor- narem-se camaradas/diaristas e venderem seus braços diretamente ao fazendeiro, recebendo em troca uma diária (jornal) estipulada pelo próprio patrão; iii) Possea- rem novas terras, caso as encontrassem, e se � xarem como sitiantes a praticar uma produção de subsistência com baixo grau de inserção na economia de mercado.

Desse período, em Ibitipoca, as relações de produção incluem as relações de dominação presentes nas � gurações fazendeiro/camarada e fazendeiro/colono. Essas relações de produção encontravam-se assentadas em formas coercitivas não capitalistas, em que os chamados colonos (homens livres sem terra para plantar) moravam de favor na terra alheia, devendo, em troca, retribuições morais e ocupa- cionais ao dono da terra. Nesse tipo de relação não há, portanto, o aluguel mone- tário da terra, tampouco o pagamento de salário, mas, sim, uma forma coercitiva de sociabilidade baseada em relações de compadrio e vizinhança que possibilita àquele que não detém os meios de produção produzir.

Naquele tempo não existia funcionário, existia colonos. Morava até uma por- ção: três, quatro colonos na fazenda. A família criava ali e trabalhava naquela fazenda. A relação era o seguinte: ele (patrão) tratava bem, remanescente do – 1950 para 1880, setenta anos né – ainda tinha bem aquele resquício da es- cravidão ainda. Então os colonos eram folgados? Não, eles eram pessoas aper- tadas que estavam sempre debaixo do domínio do proprietário da fazenda.

(produtor rural e dono de um camping, 73)

88 Segundo depoimentos, o “jornal” consistia no pagamento diário aos “camaradas” de pequena quantia

O “colono” de Ibitipoca é uma categoria próxima ao que, em outras regiões do Brasil, é denominado de agregado. De acordo com Prado Jr. (2000, p.159), o agrega-

do consiste numa forma pretérita fundamental à organização social da colônia, po-

dendo assumir a conformação de um pequeno produtor rural autônomo – embora atrelado ao domínio do fazendeiro, já que subordina-se ao proprietário da terra. A relação de agregação acomoda, assim, um tipo de exploração agrícola diferente e separado da grande lavoura. O agregado é, ao mesmo tempo, ocupante da terra e trabalhador; estabelece com o proprietário fundiário relações típicas de “vassala- gem” – as quais envolvem a prestação de pequenos serviços ao dono da terra como prerrogativa para explorar uma porção territorial sob o seu domínio.

Não obstante isso, o “colono”89 de Ibitipoca perfaz muitas das características

constitutivas do agregado clássico, incorporando ainda algumas peculiaridades – como o pagamento esporádico de diárias, somente aos domingos, caso trabalhasse nesse dia. No restante da semana, suas tarefas na propriedade incluíam o dispêndio de sua força de trabalho nas atividades e culturas do dono da terra, sem contraparti- da monetária. A incorporação da mão de obra do colono/agregado, assim, não gera- va nenhum vínculo ocupacional juridicamente reconhecido. Ademais, o colono90 de-

via retirar a própria subsistência do pedaço de terra que dispunha sob o seu domínio, trabalhando ao mesmo tempo para si e para o patrono (proprietário fundiário). Ao fazendeiro de Ibitipoca, a conveniência desse tipo de relação de produção (e domi- nação) resultava na redução do custo de produção, já que o custeio da mão de obra não estava assentado no gasto contínuo de recursos monetários.

Embora os benefícios sejam aparentemente recíprocos, a relação estabelecida entre o colono e o patrono-fazendeiro conforma um processo de exploração estável da força de trabalho do colono, uma espécie de comensalismo em que o maior bene� cia- do é o dono da terra, sem que a outra parte seja diametralmente prejudicada.

89 Interessante observar a utilização do termo “colono” em Ibitipoca para de� nir essa forma social. No

Brasil, o sujeito rural incorporado nesse tipo de relação é geralmente denominado de “agregado”. Con- tudo, o termo “colono”, apesar de aparentemente regional, tem uma remota explicação histórica. De acordo com Queiroz (1973, p.16), desde os últimos tempos do Império Romano, a noção de “colono” era usada para de� nir o “homem livre ao qual foi entregue uma parcela que ele trabalha por sua própria conta, para seu sustento e da família, pagando ao senhor o aluguel da terra com parte da colheita. Rareando cada vez mais o braço escravo, devido a circunstâncias socioeconômicas da época, foram aumentando nas propriedades as parcelas arrendadas a ‘colonos’ que, também, cada vez mais, foram sendo denominados parceiros [...] Colonos e parceiros deviam ao senhor dias de trabalho...”. Ao contrá- rio do “colono” romano, porém, o “colono” de Ibitipoca muitas vezes era o próprio ex-escravo ou o seu descendente que, uma vez “liberto” do cativeiro, via-se novamente preso aos domínios do fazendeiro, sob novas circunstâncias.

90 Se um “colono” era o responsável por uma fazenda, por exemplo, às vezes o proprietário daquela área

O colono era uma pessoa que morava na terra do outro. Pessoa que não tem terra, então morava na propriedade do outro. Não tinha esse negócio de co- brar, não tinha lei trabalhista. Aí morava na terra do outro e criava a família ali. Meava as coisas... Aqui tinha uma fazenda que tinha dois colonos, retireiros, criou 10 � lhos cada um, era a maior fartura. E era só aos domingos que eles ganhavam para trabalhar. Durante a semana, eles tirava o leite – levantava de madrugada, no escuro – e ia trabalhar para ele no resto do dia. Fazer cerca, rapar curral. E eles usava fazer aquelas grotas de lavoura. A mulher ia lavar roupa... o colono era um meeiro que morava dentro da fazenda. Mas ganhava diária se trabalhasse.

(agricultora, 92)

A categoria social colono/agregado constatada em Ibitipoca se apresen- ta, assim, como resíduo de uma forma de organização agrária colonial, em que as transformações advindas com a abolição da escravatura conservaram característi- cas de períodos anteriores, reelaborando as condições de produção da vida mate- rial em novos termos.

As propriedades fundiárias localizadas nas terras baixas próximas ao sopé da Serra de Ibitipoca demandavam a ocupação de um contingente considerável de mão de obra e organização coletiva do trabalho. Nos interstícios das lavouras de subsistência praticadas nas terras altas de Ibitipoca, os camponeses ocasionalmen- te desciam para as propriedades situadas nas terras baixas localizadas no sopé da Serra para lá trabalharem como diaristas. Esse tipo de trabalhador era conhecido como camarada.

O camarada é o trabalhador da roça. Ele é diarista, não tem documento nem nada. Isso porque o produtor pequeno não tem como legalizar um camarada. Então paga o jornal, a diária. Então a vida já foi muito escura. Hoje é que tem direito.

(agricultora, 92)

No trecho acima, a agricultora recorre a um recurso sinestésico para con- textualizar a condição adversa à qual o camarada era submetido. Ao a� rmar que “a vida já foi muito escura”, a entrevistada expressa um sentimento ruim para com essas formas pretéritas de exploração do trabalho no campo.

Apesar de possuírem alguns traços em comum, o colono/agregado distin- gue-se do camarada por não receber pagamento diário de seu trabalho, e ainda, pelo fato de sua moradia localizar-se no interior da fazenda de outrem. Se, por um lado, o camarada podia vender livremente sua força de trabalho, por outro lado não havia a garantia de terras disponíveis para plantar o seu próprio sustento. Em contrapartida, o colono/agregado, apesar de dispor de um pedaço de terra para dela extrair sua subsistência, deveria estar continuamente à disposição do fazen-

deiro-patrono sem contudo receber recursos monetários pelo trabalho despendi- do – relação que corrobora para a sua perda de autonomia perante o dono da terra. Para resolver tal pendência, os camaradas eventualmente apelavam para o sistema de parceria91, plantando à meia com o fazendeiro sem contudo morar na proprie-

dade deste. Essa forma de meação, porém, não lhes assegurava qualquer constân- cia ou garantia de cessão temporária de terras de cultura nos anos subsequentes. Na visão de Maria Sylvia de Carvalho Franco (1983, p.92), a composição do

agregado como categoria social eventualmente abrira espaço para a constituição de

formas reelaboradas do modo de vida dos caipiras independentes, já que “as terras improdutivas podiam, sem prejuízo para o proprietário, ser cedidas de favor”, pos- sibilitando a manutenção da autonomia relativa daqueles. Por conseguinte, ajustes sociais, relações de dominação pessoal e contingência permeavam as circunstâncias da agregação, cuja prática não necessariamente envolvia a exploração lucrativa do pedaço de terra destinado ao agregado. O camarada, ao contrário, representaria a assimilação do antigo caipira à dinâmica econômica da sociedade envolvente.

O camarada representa apenas a viabilidade de absorção do caipira ao setor da sociedade que está articulado economicamente, num processo que em larga medida é de perda dos atributos do tipo social anterior. O agregado ou morador, ao contrário, reelabora o antigo estilo de vida, embora carente de suas próprias bases: a livre disposição da terra e a participação em pequenos grupos sociais coesos (FRANCO, 1983, p.92).

Via de regra, os camaradas de Ibitipoca se concentravam no arraial da Concei- ção, em especial numa ruela denominada Curro Lava-Pés – pedaço da vila que teria catalisado parte da população liberta pela Lei Áurea de 1888. Após ocuparem essa porção do arraial de Conceição de Ibitipoca, as famílias de ex-cativos constituiriam a maior parte do contingente de agricultores livres pobres sem terras para plantar e que, devido às circunstâncias históricas de sua constituição, nada tinham a vender senão os seus próprios braços. Algumas trovas populares rememoradas pelos entre- vistados ilustram bem as circunstâncias de vida desses camponeses à época:

Por não haver mais escravo Acabou-se a garantia Por isso é que os fazendeiro

Trata de economia. Triste vida do roceiro Já não pode descansar

O diabo dos ladrão

Come sem trabalhar. (agricultor aposentado, 79)

91 “Plantava... a gente plantava roça. E meava no terreno das outras pessoas plantar também... porque a

gente plantava no terreno dos outros; quem não tinha o seu terreno plantava no dos outros...” (lavradora aposentada, 58).

O camarada residente no Curro Lava-Pés e sua respectiva família dispunham sob sua posse apenas um pequeno lote de terra, onde estabeleciam cabanas de adobe e sapé rodeadas por um quintal destinado ao plantio de hortaliças, cria- ção de pequenos animais e pomar. Os homens se empregavam como camaradas nas fazendas, recebendo pelo jornal – uma espécie de diária – ou empreitadas (tarefas). Já as mulheres eram conhecidas como “pretas-velhas” e, como forma de complementar a renda familiar, viviam da coleta de macela na área denominada Serra Grande. Foram elas diretamente atingidas com a criação do parque e a sub- sequente proibição da extração dessa � or nos seus campos de altitude. Por outro lado, a princípio o cercamento das pastagens comunais da Serra não prejudicou diretamente esses camponeses do Curro Lava-Pés, tendo em vista que não pos- suíam gado bovino. Entretanto, num segundo momento, quando os sitiantes fo- ram impedidos de usar a Serra Grande como área funcional à pecuária extensiva, não vislumbraram outra alternativa senão ampliar as áreas de pastagem dentro da própria propriedade, reduzindo assim o espaço de que dispunham para ceder temporariamente para o camarada-meeiro estabelecer lavoura. Dessa forma, a im- plantação do Parque contribuiu para o enfraquecimento das relações de parceria/ meação92 que amparavam os camaradas das comunidades rurais de seu entorno.

Ao analisar sociologicamente o campesinato brasileiro, Forman (1979) aler- ta para a dependência que permeia a relação patrão-empregado no Brasil rural, a qual submetia o camponês a uma série de relações de trocas desiguais. Mas como se dava essa relação de “patrão-dependência” (fazendeiro/camarada) em Ibitipoca? Quem nos traz evidências é um lavrador aposentado, 79 anos, ao narrar que

... o patrão era muito respeitado, os camarada93 respeitava ele muito, dava

todo o apoio para o proprietário, o dono, o patrão. Em troca, o patrão94 dava

pra eles o que é necessário, pagava o ordenado direitinho – que não existia salário na época, né – então pagava eles o jornal do dia, que chamava jornal né... pagava direitinho. Jornal é o preço total – era dois mi réis, um mi réis [...] Pagava o jornal direitinho, chegava nos tempo das colheita era muita lavou-

92 A meação é uma variante do sistema de parceria comumente encontrado em zonas rurais, em que

o agricultor sem terras para plantar (meeiro) estabelece lavouras na propriedade de outrem. A metade da produção agrícola resultante é então entregue pelo agricultor/produtor direto (meeiro) ao dono da terra.

93 Os termos “camarada” e “colono”, nesse contexto, referem-se ao trabalhador que compunha a mão de

obra rural e estava submetido à relação de “patrão-dependência”. Interessante salientar que Candido (2003, p.138), ao estudar o caipira paulista nos anos 1950, observara essas mesmas designações, com a peculiaridade de que o “camarada caipira” era pago por mês trabalhado, embora recebesse do patrão “regalias” semelhantes às observadas em Ibitipoca, como que por recompensa à sua dedicação.

94 Segundo relatos, a proteção do patrão para com o “camarada” abrangia a cobertura de eventuais

crimes cometidos por este a mando daquele: “o patrão protegia o máximo. Acoitava ele, escondia ele, não deixava ele apresentar ao público, não deixava faltar nada pra ele até passar um certo período”. (lavrador aposentado, 79).

ra... o colono e os camarada que não tivesse quase nada se precisava de milho ele [patrão] mandava levar. De milho, os cereais da alimentação. Não tinha conforto nenhum não...

No relato descrito, o entrevistado não se inclui nem como “patrão”, nem como “camarada”, tampouco como “colono”. Ao contrário, o sujeito conduz sua nar- rativa em terceira pessoa, como se pertencesse a uma outra categoria. E, de fato, ele constitui uma outra dimensão da organização social da vida rural de Ibitipoca: um sitiante95. Sua família provém de um estrato intermediário, camponeses livres

pobres advindos das redondezas da fazenda do Yeiê Vermelho (hoje entorno norte do Parque, no município de Santa Rita do Ibitipoca). No � nal do século XIX, seus pais possearam uma parcela de terras devolutas nas faldas da Serra (hoje limítrofe ao Parque, entorno sudoeste). Desde então, possuíam o domínio de um sítio com 20 hectares de terras não muito férteis, num terreno acidentado fronteiriço à Serra Grande, onde ele e seus dez irmãos nasceram e foram criados. Dessa família de onze � lhos, o entrevistado é o único ainda vivo. Sem herdeiros e dependendo do fundo de aposentadoria rural para viver, vendera recentemente suas terras a um empresário italiano que possui pousadas na Serra – sem, contudo, abrir mão do usofruto delas. Ele vendeu as terras, mas não se desfez delas. Enquanto viver, po- derá viver ali. E isso, segundo ele, lhe basta.

A essa categoria, chamaremos de sitiantes – camponeses livres pobres que possuíam uma pequena porção de terra onde estabeleciam a agricultura de sub- sistência, complementando-a com uma produção mercantil simples. Conforme veremos no último capítulo, o sitiante de Ibitipoca foi a única categoria social rural que teve condições de resistir às transformações engendradas tanto pela moderni- zação da agricultura brasileira quanto pelas mudanças recentes veri� cadas em face da reestruturação da esfera produtiva com o advento do turismo na Serra.

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