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PARTE I – INTERFACES TEÓRICAS DA PESQUISA

1.5 Sinopse teórica da experiência turística em áreas naturais protegidas

Considerando a perspectiva teórico-metodológica do materialismo dialé- tico, serão situadas aqui algumas das contradições do turismo em Unidades de Conservação, delineando uma breve discussão � losó� ca sobre os avanços e as possibilidades de sua prática como instrumento mediador de uma possível revi- são da relação homem-natureza. Considera-se o turismo como fenômeno social, materializando-se no espaço por um sistema de objetos articulados. Tem-se, como pressuposto, que o fenômeno turístico em Unidades de Conservação e seus des- dobramentos se materializam nas práticas sociais na própria ação dos atores que neles estão inseridos.

Ao chegar ao “paraíso”, o turista se lança na “busca pela excitação” como for- ma de procurar alívio das repressões sociais que envolvem suas obrigações coti-

Parede de um estabelecimento comercial em Ibitipoca, criação expressiva do artista plástico Edgar Cruz Moreira, cuja obra impressiona os turistas que visitam a Serra. Na pintura ao lado, em meio a uma paisagem dominada por lobos, tucanos, papagaios e cachoeiras, insurgem composições paisagísticas com ares “sobre-

naturais”. Numa cena em que a natureza de Ibitipoca é reverenciada e seus ícones exaltados, a ausência do homem é reveladora. Estaríamos diante de mais um artifício de “fetichização” do espaço como mercadoria reprodutível? Seria essa a natureza de Ibitipoca idealizada pelos turistas, onde predominam árvores e bichos? Ou o “bicho-homem” teria também o seu lugar no imaginário dos visitantes?

Mais uma vez, Watteau evoca a idealização do romantismo moderno ao representar a “arti� cialização” do mundo natural pela presença humana. Nesta cena, a face aristocrática das mulheres em contato com a natureza rea� rma o caráter elitista conferido aos primeiros parques europeus. O seu viés naturalista recria a mitologia moderna do “paraíso” a ser reverenciado pelas elites. Tal visão não é muito diferente dos fundamentos ideológicos do conservacionismo, modelo que no séc.XX pensou e criou os parques bra- sileiros como se fossem verdadeiros “refúgios naturais”.

FIGURA 6 – Festa num parque (1720-21)

FIGURA 7 – A natureza da serra e seus neomitos (2002) Foto: Bruno Bedim (2005).

dianas como escola, trabalho e religião. Ao visitar um parque nacional, o indivíduo tende ao relaxamento das tensões às quais é submetido no processo de evolução social, liberando-se. Operários, mães, avôs, empresários, estudantes, advogados, maridos e esposas momentaneamente se abstêm dos papéis que comumente representam em sociedade. Atualmente, contudo, as Unidades de Conservação estão cada vez mais atentas em estabelecer normas de conduta aos visitantes, im- pondo regras e restrições de uso dos seus espaços. Para o turista, tais regras, por vezes, conformam o retalhamento das formas de expressão do seu tempo livre.

Tipologias como “turismo de aventura” têm nas áreas naturais protegidas os seus espaços por excelência, muito embora releguem ao ambiente natural a condição de componente secundário. Uma interpretação possível das teorizações de Norbert Elias e Dunning (1992) revela que a “busca pela excitação” transcende às paisagens cênicas. A natureza sucumbe à emoção. O paraíso vira palco da adre- nalina. A alegria e o perigo miméticos moram na beira do abismo, na escuridão da gruta, no rapel pela rocha, ou na prática do nudismo em cachoeiras. O apelo idílico da natureza já não basta. É preciso pecar no paraíso; desa� á-lo.

Ao turista, indivíduo em uso de seu tempo livre, são permitidas sensações que o mundo das obrigações não aceita, por isso sua importância no processo civi- lizador. Porém, ao contrário do que é vinculado nas propagandas das agências de turismo, o que se tem é o simulacro da aventura; o empacotamento das emoções sob a luz da indústria cultural e seu apelo imagético; atividades “de aventura” ra- cionalmente pensadas onde os riscos tendem a zero; o fácil acesso à experiência turística “radicalmente segura”, confortável e amparada por recursos tecnológicos; a falsa aproximação do sentimento morte-vida que as telas de cinema e os jogos eletrônicos tanto espelham; a radicalização do simulacro de um produto turístico; a catarse pré-fabricada e paga a prestação.

Além de resguardarem a conservação dos ecossistemas em que se inserem, os parques são categorias de manejo cujo viés funcional os transforma em territó- rios de lazer historicamente instituídos. Ademais, a demarcação jurídica de porções territoriais como Unidade de Conservação e seu subsequente uso turístico poten- cialmente engendram processos pelos quais diferentes atores passam a disputar o controle dos recursos disponíveis em áreas dantes geridas pelas populações locais, onde diferentes representações, interesses e valores resultam em distintas formas sociais de apropriação do território – em torno dos quais orbitam forças políticas, simbologias e interesses con� itantes –, tendo-se em vista a observância da hetero- geneidade social dos grupos que dele se apropriam.

tal que envolve as diferentes práticas de apropriação social do território pelos gru- pos envolvidos no processo turístico em Unidades de Conservação e seu entorno. i) Para os turistas, por exemplo, as Unidades de Conservação se apresentam como paisagem de consumo estético a ser visitada e fotografada, espaço de lazer e di- versão – representando a fuga do cotidiano das grandes cidades e, muitas vezes, local de exacerbação dos prazeres. ii) Para os moradores de seu entorno, contudo, são lugar de moradia, devoção popular e práticas culturais tradicionais, onde de- terminadas “leis locais” devem ser respeitadas. iii) Contudo, há um outro grupo – os moradores recém-chegados ao entorno dessas áreas, muitos dos quais empreen- dedores – que veem nesses espaços uma oportunidade de exploração econômica, a partir da implantação de empreendimentos turísticos diversos. iv) Por outro lado, há ainda os interesses dos órgãos ambientais gestores dessas Unidades – que, por sua vez, tendem a defender a vertente “preservacionista” – buscando resguardar as características naturais dos ecossistemas que compõem os parques e seus respec- tivos entornos.

A princípio, pode-se a� rmar que essas são as principais forças que atuam e se confrontam no campo dos con� itos ambientais que envolvem a tríade turismo,

áreas naturais protegidas e as populações locais – onde diferentes representações,

interesses e valores resultam em distintas formas sociais de apropriação do terri- tório. Mas essa problemática envolve ainda categorias mais amplas e atividades diversas.

As práticas culturais expressas nas variadas formas de uso e apropriação dos territórios rurais do entorno de Unidades de Conservação congregam, muitas ve- zes, diversi� cadas práxis crescentemente associadas às diferentes maneiras pelas quais o rural e o “mundo natural” são vistos, representados e apropriados pelas so- ciedades contemporâneas.

O que se assiste, a partir da criação de parques e reservas, é uma ressigni� - cação de suas paisagens e de suas áreas limítrofes, em que novos valores estéticos insurgem em detrimento dos usos agrícolas até então dominantes. Na sequência, não raro assiste-se à crescente valorização de terras e aos emergentes mecanismos de especulação fundiária que circundam tais áreas, submetendo assim o valor de uso aos termos da troca. Dessa forma, áreas montanhosas historicamente ocupa- das por populações camponesas se tornam, subitamente, vulneráveis a variados fatores de ação antrópica em face da mercantilização da natureza. Não obstante, Henri Lefebvre sinaliza:

Outrora, o ar e a água, a luz e o calor eram dons da natureza, direta ou in- diretamente. Esses valores de uso entraram nos valores de troca; seu uso e seu valor de uso, com os prazeres naturais ligados ao uso, se esfumam; ao mesmo tempo em que eles se compram e se vendem, tornam-se rarefeitos. A natureza, como o espaço, com o espaço, é simultaneamente feita em pe- daços, fragmentada, vendida por fragmentos e ocupada globalmente. É des- truída como tal e remanejada segundo as exigências da sociedade neocapi- talista. As exigências da recondução das relações sociais envolvem, assim, a venalidade generalizada da própria natureza. Em contrapartida, a raridade do espaço, nas zonas industrializadas e urbanizadas, contrasta com o vazio dos espaços ainda desocupados, os desertos terrestres e os espaços interplanetá- rios; a carestia do espaço assim ocupado e rarefeito é um fenômeno recente, com consequência cada vez mais graves. Esse espaço, sendo lugar e meio da prática social na sociedade capitalista (isto é, da reprodução das relações de produção), assinala os seus limites (LEFEBVRE, 2003, p.25).

Nas últimas décadas, inúmeras pesquisas se propuseram a apreender e a interpretar os signi� cados econômicos das múltiplas funções que o espaço rural vêm apresentando na contemporaneidade. O fato é que pouca atenção tem sido despendida para se analisar a importância das áreas rurais do entorno de Unidades de Conservação, concebendo-as como espaço social de trocas simbólicas, cuja di- versidade provém da reprodução de suas próprias bases culturais.

A atual noção de conservação da natureza, contudo, destaca a importância das populações locais e seus respectivos meios de manifestação cultural, expressos nas variadas formas e processos espaciais. Uma leitura ambiental consistente, por- tanto, deve abranger as interações entre os diferentes elementos que organizam e de� nem o entorno de áreas naturais protegidas, incluindo a própria sociedade que o produz, as condições do meio físico, suas áreas de produção agrícola, modos de vida, paisagem rural e sistemas de cultivo, dentre outros. Nesse sentido, Abramo- vay (2000) propõe a incorporação dos temas de natureza ambiental às estratégias de desenvolvimento rural: “à medida que a noção de ruralidade incorpora o meio natural como um valor a ser preservado – e não como um obstáculo que o progres- so agrícola deve fatalmente remover – vão ganhando força as políticas e as práticas produtivas voltadas para a exploração sustentável da biodiversidade” (ibid., p.9).

Os paradigmas que envolvem a gestão de Unidades de Conservação vêm sendo rede� nidos e ampliados nos últimos anos, sendo que a ele, frequentemente, encontram-se associadas as ideias de território e populações locais – as quais, não raro, situam-se em zonas rurais. Por conseguinte, assiste-se ao reconhecimento da capacidade desses espaços em congregar funções relativas ao apoio à qualidade de vida e ao bem-estar social, estreitamente ligadas às experiências estéticas, cul- turais e de identidade que suas paisagens proporcionam. Assim, muitos territórios rurais limítrofes às Unidades de Conservação estão crescentemente associados a

atividades orientadas para consumo, tais como lazer, turismo, moradia, prestação de serviços pessoais e preservação da natureza. Por conseguinte, o contato entre diferentes atores sociais nessas áreas potencialmente provocam uma série de pro- cessos sociais – já que, conforme Wanderley (2000, p.99), há um confronto entre as “concepções distintas a respeito do que é o rural e os usos que podem ser dados aos espaços rurais”.

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