• Nenhum resultado encontrado

Neste capítulo irei continuar a descrição e análise das “linhas de investigação” de “homicídios”, restringindo-me aos vinculados ao conflito bélico estabelecido na administração do mercado varejista de substâncias psicoativas ilícitas, o “tráfico de drogas”. Nestes casos, nos quais os policiais definiam as vítimas como vinculadas ao “tráfico”, os “homicídios” eram classificados como da “guerra”, o que decorria em uma série de peculiaridades na forma como traçavam e alinhavam as investigações destas mortes. Nos “homicídios” vinculados à “guerra”, a “linha de investigação” vinculava um “morto” a um contexto que se concentrava em um território cujas dinâmicas de circulação de bens e pessoas eram reconhecidas e tratadas como ilícitas pelos policiais.

A partir da atenção a esses casos, que em São Gonçalo eram mais do que a metade das investigações conduzidas, foi possível identificar dinâmicas subjacentes à organização das atividades entre os policiais que trabalhavam no “Grupo de Investigação” (GI) responsável pelas mortes ocorridas neste município, da distribuição dos inquéritos entre eles e das prioridades ou não que eram dadas aos procedimentos. Ainda, nestes casos se evidencia como para a construção e condução dessas “linhas”, os investigadores se apoiavam nos trabalhos desenvolvidos pelo “Setor de Controle Cartorário” (SCC), “Setor de Operações” (SOP) e “Setor de Inteligência Policial” (SIP), que participavam com “ferramentas” manipuladas na técnica de investigação dos “homicídios” da “guerra”.

Jonatas

Jonatas tinha 19 anos, morava e trabalhava no bairro Jardim Catarina, atuando no comércio varejista de drogas controlado pela facção “Comando Vermelho” (CV). Ao redor das dez horas da noite do dia quinze de julho de 2014, ele voltava do curso supletivo para qual havia retornado há alguns meses, quando foi atingido por dois tiros disparados pelo carona de uma moto ao virar a esquina de sua casa. Os tiros puderam ser ouvidos por sua mãe Márcia e sua namorada Luana, que logo saíram pelo portão e encontraram o corpo de Jonatas caído na calçada. Com o apoio de vizinhos, Luana telefonou para o Corpo de Bombeiros em busca de socorro. Porém, quando a ambulância chegou no local, Jonatas já estava morto. Antes de realizar a remoção, os bombeiros informaram à Polícia Militar sobre o óbito do jovem, que, por sua vez, repassou à Divisão de Homicídios a ocorrência daquele “homicídio”.

143 Cerca de 40 minutos depois, policiais do GELC da DH chegaram ao local para realização da “perícia de local” com o objetivo de identificar e coletar as “evidências” daquele homicídio para posteriormente compor o inquérito policial da investigação que ali se iniciava. No “local”, além do trabalho de perícia, os policiais procuraram por testemunhas que pudessem colaborar com informações que indicassem “linhas” para a investigação. As evidências coletadas pelos policiais da DH no “local de crime” incluíram fotografias da “cena” e da “vítima”, impressões digitais, imagens de espargimentos de sangue, narrativas de “populares” sobre a “dinâmica do fato” e informações sobre “vítima”, como os comentários sobre sua vinculação com “tráfico de drogas”. Após “concluído o local”, o corpo de Jonatas foi removido para PRPTC de São Gonçalo. Márcia e Luana foram levadas pelos policiais à DH para prestarem depoimento.

Lá, as familiares da vítima confirmaram que Jonatas trabalhava no CV como “olheiro do tráfico”, como foi declarado por vizinhos A partir do número de RG de Jonatas levado por sua mãe, o policial do SIP, o “sipeiro”, encontrou registros no sistema da Polícia que informavam que, quando menor de idade, o jovem havia sido internado em uma unidade para menores infratores. Tal registro criminal prévio, somado aos comentários dos vizinhos e o depoimento de sua mãe e namorada foram suficientes para confirmar aos policiais a relação de Jonatas com o tráfico e a sua classificação como um traficante. Esta condição da vítima, por sua vez, levava os policiais a conduzirem uma “linha de investigação” que indicava que sua morte era decorrente da disputa pelo comércio de drogas no Jardim Catarina e, portanto, que aquele “homicídio” era uma morte da “guerra”.

A categoria “guerra” para se referir ao contexto da “violência” e da “segurança pública” na região metropolitana do Rio de Janeiro era recorrentemente utilizada pelos policiais. Para aqueles que atuavam na DHNISG, a “guerra” em Niterói e São Gonçalo se dava devido à presença do mercado varejista de drogas ilícitas, o “tráfico de drogas”. No caso da morte de Jonatas, a “guerra” estava diretamente relacionada com a disputa por pontos de venda de drogas em Jardim Catarina.

“O Catarina”

O bairro Jardim Catarina era uma região rural, conhecido como Laranjal até 1949, onde existia uma fazenda de nome Júlio Lima, que cultivava frutas cítricas. A partir dos anos 1950 e 1960, o Jardim Catarina passou a ser dividido em lotes que

144 mediam 12x30m² e que de forma clandestina e precarizada, isto é, sem infraestrutura como redes de água e esgoto, energia elétrica ou pavimentação de ruas e calçadas, foram em sua maioria vendidos à prestação a trabalhadores e pensionistas para construção de moradias. Os primeiros lotes vendidos eram próximos ao Rio Alcântara, na parte que passou a ser conhecida como “Jardim Catarina velho”. Em seguida, após 1975, houve um novo impulso na ocupação do espaço que intensificou o loteamento de outras partes no bairro, se expandindo até as margens da RJ-104 na direção do bairro Santa Luzia. Esta área ficou conhecida como “Jardim Catarina novo”. Além disso, a região passou a receber moradores removidos de favelas na cidade de Niterói alocados em novos conjuntos habitacionais, que também foram instalados precariamente.

Moradores e policiais antigos me relataram que o mercado varejista de drogas ilícitas em São Gonçalo iniciou-se no processo de urbanização do município, após a inauguração da Ponte Rio-Niterói, em 1974. Antes, o “mercado de drogas” em São Gonçalo era organizado em pontos independentes e dispersos no município, a maioria destes controlados por “famílias” que viviam nas regiões centrais e próximas a Niterói, atendendo moradores e consumidores locais. Já nos anos 1980, ambas partes do bairro que ficou conhecido como “o Catarina” formavam “o maior loteamento da América Latina”, com mais de 25 mil lotes. Os domicílios do bairro, majoritariamente casas de alvenaria, eram habitados por famílias da classe trabalhadora que passaram a constituir- se como moradores da “periferia” da região metropolitana que tinha como centro a cidade do Rio de Janeiro. Junto com o processo de intensificação de habitação, criaram- se também formas de habitar e de se relacionar, incluindo aí diversas informalidades e mercadorias como “gatos de energia”, “canos furados” e a circulação de objetos diversos, inclusive as drogas.

No Jardim Catarina e no Salgueiro, outro bairro residencial contíguo no noroeste do território de São Gonçalo às margens da BR-101, há relatos que desde os anos 1980 o Comando Vermelho (CV) organizava o comércio de drogas, principalmente maconha e cocaína, compondo a maior área sobre controle desta facção fora da cidade do Rio de Janeiro. Por mais de vinte anos, o CV teve sob seu controle o monopólio do comércio de drogas na região. Apesar de recorrentes operações repressivas da polícia, que mataram e prenderam diversos “traficantes”, os efeitos de ação policial só foram suficientes para desmantelar os pontos de venda de “famílias”, o que acabou fortalecendo o “mercado” controlado pelo CV. Nos anos 2000, diferentes bairros da cidade, particularmente morros desocupados e terrenos baldios às margens da linha de

145 trem desativada e abandonada, passaram a ser habitados, intensificando o crescimento urbano no

Figura 4. Visão de satélite da região dos bairros Jardim Catarina e Salgueiro

Fonte: Google Maps, 2016

município. A urbanização de São Gonçalo se expandiu junto com a “favelização” de áreas que antes eram residenciais mas que passaram a ser controladas por membros afastados das facções CV ou Amigos dos Amigos (ADA). Segundo os policiais, que continuamente expressavam seu conhecimento sobre os “criminosos” e as facções, parte desses “traficantes” eram São Gonçalenses ou teriam parentes e conhecidos vivendo na cidade que após cumprirem “tempo de cadeia”, regressaram às suas residências, e de certa forma reinauguraram o comércio de drogas local, porém desta vez como membros de uma organização criminosa.

Segundo descreveram alguns interlocutores, quando membros da ADA passaram a ampliar suas atividades de comércio, inclusive introduzindo este mercado em bairros da cidade que nunca contaram com comércio varejista de drogas, a disputa armada pelo controle dos territórios se iniciou. Além da ADA, membros do Terceiro Comando Puro (TCP), facção dissidente do CV, eventualmente realizavam tentativas de inserção neste mercado através de incursões armadas em favelas e comunidades de São Gonçalo que resultavam em “confrontos” e mortes. Ao me recapitularem a presença do tráfico de

146 drogas no Jardim Catarina, policiais, jornalistas e demais interlocutores locais afirmavam: “a guerra do Catarina está apenas começando”.

Reconhecendo o “autor”

Durante o mês seguinte da morte de Jonatas, a dupla de policiais do Grupo de Investigação (GI) Dirceu e Rodrigo ficou responsável pela continuidade do procedimento. Neste período, eles realizaram algumas ligações telefônicas para Márcia, Luana e Mariana, irmã de Jonatas. Ao telefone, os investigadores algumas vezes estimulavam e até mesmo as pressionavam a procurar informações sobre as circunstâncias da morte de Jonatas com vizinhos: “as interessadas são vocês, vocês que tem que correr atrás da informação para gente, senão fica difícil pra gente de conseguir resolver o caso”, argumentava o policial Rodrigo enquanto conversava com a irmã de Jonatas pelo telefone. Depois que desligou, Rodrigo me explicou “se a família não ajudar, não tem como a gente investigar. Não tem como eu fazer diligência dentro da favela, entende?”.

Os investigadores acreditavam que em casos nos quais a vítima está envolvida com atividades criminosas, passadas as “primeiras 24 horas”, geralmente as testemunhas oculares que inclusive já haviam conversado informalmente com os policiais no dia do crime, se recusavam a declarar por medo de algum tipo de retaliação. Por isso, explicavam-me, investiam nas testemunhas “diretamente interessadas”, isto é: aquelas que tinham algum tipo de vínculo pessoal com a vítima. Os policiais alegavam que mesmo que não tivessem visto o crime, familiares das vítimas tinham condições de conseguir informações relevantes para a investigação pois “alguém sempre sabe de alguma coisa” e “alguém sempre fala demais”.

Márcia, sua filha Mariana e Luana, seguiram as recomendações dos policiais e conversaram com vizinhos e conhecidos para adquirir alguma informação que ajudasse os investigadores na definição da autoria do crime. Quarenta dias depois do homicídio de Jonatas, Márcia e Luana compareceram pela segunda vez ao prédio da Divisão de Homicídios para conceder novas informações aos investigadores, desta vez sobre o “autor” da morte de Jonatas:

TERMO DE DECLARAÇÃO DE TESTEMUNHA O Inquirido, DISSE:

147 Que na data de hoje 27AGO2014, comparece nesta ESPECIALIZADA, oficialmente intimada, para prestar esclarecimentos a cerca dos fatos. Que após o fato, soube de populares que o autor dos disparos que matou JONATAS PEREIRA, teria sido PHEBO, QUE; a declarante tem o autor dos disparos como amigo em sua rede social FACEBOOK. QUE; após ver a lista de contatos na rede social. QUE; mostrada a fotografia de LEONARDO FERREIRA RG. 11111111-4 que tem certeza de se tratar do nacional de vulgo “PHEBO”. QUE este também atende pelo vulgo de “LÉO CANALHA”. Que; também soube por sua cunhada MARIANA e a sua prima CAROL, QUE; todos dizem após os fatos que foi “PHEBO” que efetuou os disparos de arma de fogo que vitimaram JONATAS PEREIRA. QUE; “PHEBO” tem um “salão de cabeleireiro” que faz corte com desenhos, e este salão também fica na região. QUE; sabe que a vítima JONATAS seu companheiro era envolvido com o tráfico de drogas na região. QUE; sabe que JONATAS pertencia a facção criminosa denominada COMANDO VERMELHO, QUE; sabe que PHEBO também tem envolvimento com o tráfico de drogas, QUE; PHEBO pertence a facção rival denominada “AMIGOS DOS AMIGOS”. QUE; sabe que a morte de JONATAS PEREIRA seu companheiro teve motivação na guerra de facções de tráfico de drogas. QUE; sabe que antes do envolvimento com o tráfico de drogas os dois eram colegas, QUE; a vítima e “PHEBO” conversavam e sempre que ocorriam festas na rua se divertiam no mesmo ambiente. QUE; nada mais disse nem lhe foi perguntada.

Nada mais havendo, mandou autoridade policial encerrar o presente termo que, lido e achado conforme, assina com o (a) testemunha.

Segundo as informações que conseguiram com vizinhos, foi Léo Canalha quem estava na carona da moto e quem naquela noite matou Jonatas. As informações que Márcia e Luana “ouviram falar” de vizinhos foram declaradas aos policiais que por sua

148 vez as consolidaram na burocracia, registrando-as sob a forma de “termo de declaração”. Ao mesmo tempo, a inclusão das declarações no inquérito policial faziam com que a partir dessas informações compartilhadas aos policiais, familiares da vítima se tornassem informantes da polícia e que, após terem formalizadas suas informações as constituíram, oficialmente, como as principais testemunhas do homicídio de Jonatas.

O conjunto de elementos que compunham a consolidação das informações prestadas pelas familiares da vítima em forma de termo de declaração demonstrava a orientação do tipo de leitura característica da forma como a “linha de investigação” deveria ser conduzida na burocracia. A técnica de investigação praticada no âmbito da DH exigia dos investigadores certa manipulação de registros burocráticos. O conteúdo, bastante similar ao que encontrei no termo de declaração de Márcia exceto o trecho que se refere ao facebook, confirmava a “linha de investigação” previamente elaborada pela polícia e a concretizava nos documentos que compunham o inquérito policial: que Jonatas era membro do tráfico e que sua morte era vinculada à “guerra” que se sucedia pelo domínio do mercado no Jardim Catarina.

A “linha de investigação” que os policiais seguiam era coerente com o depoimento das familiares da vítima e as informações prestadas por essas testemunhas eram fundamentais para a identificação do “autor” do homicídio de Jonatas. A partir das informações trazidas sobre nome, apodo e perfil do Facebook, os policiais passaram a trabalhar na burocracia para ligar a vítima ao autor. Para tanto, inicialmente utilizaram-se do denso sistema de banco de dados que a polícia tem acesso direto, para reconhecer oficialmente quem era o autor da morte de Jonatas.

A relevância dessas declarações não se dava quando as familiares da vítima confirmavam aquilo que os policiais já sabiam: que Jonatas era um traficante e que sua morte era resultado da guerra do tráfico. O que tornava as declarações dessas testemunhas relevantes era, sobretudo, a informação sobre quem era o “autor” do “homicídio” de Jonatas. Elas não apenas apresentavam indícios para a “linha de investigação” como resolviam o crime descrevendo quem matou e por quais motivações. Nos papéis impressos incluídos ao inquérito dos termos de declaração, um policial anotara a lápis “namorada da vítima” e “mãe da vítima” e quando perguntei o porquê de tal identificação, explicou-me que assim “enfatizava o vínculo e a importância” daquele documento.

Após suas declarações, as familiares da vítima contribuíram com os policiais para encontrar o perfil do suspeito no “Facebook”. Ainda, o “reconheceram” através de

149 fotografias oficias registradas no banco de dados da Polícia Civil e encontradas após busca pelo nome do suspeito do homicídio de Jonatas. Como demonstra o trecho abaixo, transcrito do meu caderno de campo, o “auto de reconhecimento de pessoa” era o documento que confirmava a vinculação de um rosto com um nome, registrados por números e constituintes da identidade de um sujeito para e na burocracia estatal. E, portanto, era essa a confirmação que construía no âmbito da administração policial do homicídio uma testemunha de um crime, vinculando um morto ao vivo, tendo uma versão do documento atestado e assinado por Márcia e outra por Luana.

AUTO DE RECONHECIMENTO DE PESSOA

MÁRCIA — nos termos do que dispõe o artigo 226, inciso I, do Código de Processo Penal, e na presença das testemunhas passa a descrever as características físicas da pessoa a ser reconhecida:

Após a observância do que dispõe o artigo 226, inciso I, do Código do Processo Penal, em razão da impossibilidade de cumprir as formalidades previstas no inciso II do mencionado artigo, ATRAVÉS DE FOTOGRAFIA reconhece a pessoa abaixo qualificada de forma individual.

LEONARDO PEREIRA DA SILVA, vulgo PHEBO, R.G.: 1111111-4 SSP/Detran.

Nada mais havendo, mandou a autoridade encerrar este Auto que, lido e achado conforme, vai por todos assinado.

A elaboração de documentos, tais como os preparados com as declarações de Luana e Márcia, era parte da rotina burocrática de trabalho dos policiais A manipulação de registros construía e legitimava verdades sobre a investigação das mortes pelas quais os policiais civis eram responsáveis. Os registros eram também necessários para a continuidade dessas investigações e, organizados em forma de “procedimento policial”, sistematizavam a linha de investigação, gradativamente compondo a narrativa oficial. A “linha” tinha como finalidade orientar uma trajetória plausível sobre determinada morte

150 para estabelecer uma verdade factível do ponto de vista dos policiais para ser apresentado à justiça como a elucidação de um homicídio. A “guerra” mencionada nos depoimentos e inserida na investigação parecia funcionar com um atalho fazendo com que a “linha de investigação” chegasse mais rápido do morto ao vivo.

Metáforas da “guerra”

“Não adianta, nós vivemos numa guerra!” me falou o perito criminal Humberto. Era cerca de uma semana depois que Márcia e Luana haviam comparecido a DH para prestar depoimento. Nós, perito e eu, estávamos na entrada do prédio conversando com a recepcionista enquanto líamos os jornais do dia que eram sempre deixados pelos repórteres ou outros policiais , no balcão. Nos jornais “O São Gonçalo” e “Meia Hora” estava destacada a “guerra” na Vila Três, na região do Alcântara. Num deles, a manchete dizia: “‘GUERRA DO TRÁFICO” LEVA PÂNICO AS RUAS DE ALCÂNTARA E ACABA COM MAIS UM MORTO”

Eu, para continuar a conversa, respondi: “Eu não vivo. Eu sei do que você está falando, mas eu não vivo numa guerra.” “Você que pensa, que acha que não vive. Sorte sua! Porque eu vivo, todos os dias. Eu não ando tranquilo na rua.” disse Humberto em tom de lamentação. E continuou, falando do “risco” que os policiais viviam no Rio de Janeiro e de que a “guerra” tenderia a aumentar. “Antes, era só no Rio. Agora está em tudo quanto é lugar. A Baixada já virou Gaza!” afirmou, se referindo ao alto número de homicídios relacionados ao conflito armado pelo controle de circulação de bens e pessoas em territórios. “Você acha que aumentou?” perguntou a recepcionista. “Sim!!! Tá cada dia mais perigoso. E em tudo quanto é lugar”, falou o perito enfático.

O uso por parte dos agentes de categorias e práticas que remetessem a uma “guerra” explicitava a crença numa ideia norteadora das políticas públicas de segurança aplicadas pelos governos do estado do Rio de Janeiro nas últimas décadas: que certos territórios na cidade eram “espaços de exceção” devido a presença do tráfico de drogas. Nessa perspectiva, “a favela é representada como território da não cidadania, submetida a uma força concorrente à do Estado” (LEITE, 2012, p.380). Consequência desta representação é que aqueles que viviam em favelas não poderiam ser protegidos pelas ações da polícia nas comunidades onde viviam. Ao contrário, eram alvos destas. E, ainda, que os “favelados” poderiam ser responsabilizados e vitimados em consequência de coabitarem aquele território que estava em “guerra”. Dessa forma, o processo de construção social das favelas como o “território da violência” se fortaleceu e, “a

151 metáfora da guerra fez, assim, transitar parte da discussão da violência do campo da segurança pública para um terreno moral, em que os favelados foram tomados como cúmplices dos bandidos pela via das relações de vizinhança, parentesco, econômicas e da política local”. (ibid).

A partir de 2008, o governo apresentou um novo projeto para a gestão da segurança pública que se baseava menos na “guerra” e mais na “pacificação”, com o

Documentos relacionados