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Entre meninas e meninos: um jeito próprio de brincar

5 RESULTADOS E ANÁLISE DE DADOS

5.6 Entre meninas e meninos: um jeito próprio de brincar

Uma das formas de organização dos grupos sociais é o modo como constroem as relações de gênero. Conforme Nunes (2008), os comportamentos, escolhas e formas de viver são fortemente marcados por estas relações. São premissas da cultura do Assentamento os valores advindos do MST e da história vivenciada por todos que compõem as três

comunidades do Recreio. É uma luta que permanece, pois vai além da posse da terra, é a luta constante na busca de reduzir as desigualdades e injustiças sociais, a necessidade de proporcionar condições dignas e qualidade de vida para crianças, mulheres e homens.

O papel da mulher e as relações de gênero são algumas das bandeiras que o MST carrega. A mulher tem bastante importância no Movimento e participa das decisões organizacionais de acampamentos e assentamentos.

Neste sentido, o Assentamento Recreio constituiu sua história na perspectiva que vai além do discurso, foram práticas nas quais prevaleceram as relações de igualdade, onde homens e mulheres participaram da organização do Assentamento. Embora os espaços ainda sejam delimitados e a mulher permaneça responsável por atividades do âmbito doméstico, como cuidar dos filhos, do preparo da alimentação, da casa e dos pequenos animais e os homens fiquem responsáveis por atividades que exijam maior esforço físico, pode-se perceber que ambos têm voz e expressam ideias com liberdade.

Embora o aspecto da liberdade seja um destaque nas falas das crianças assentadas, pode-se perceber algumas diferenciações entre os espaços ocupados por meninos e por meninas. Os meninos brincam e se locomovem com maior frequência por toda a comunidade, enquanto que as meninas brincam nos arredores das casas, nos jardins, nos alpendres ou terreiros, sem se distanciar muito do espaço doméstico. Esta característica mostra certa persistência dos tradicionais papeis de gênero, ainda que tenhamos percebido que na vida social da comunidade há também ruptura desses padrões.

Cabe destacar que estas diferenciações acontecem em relação à liberdade de transitar pela comunidade, cabendo aos homens ir mais longe de casa, enquanto as mulheres ficam responsáveis pelas atividades domésticas: varrer a casa, encher jarras, cortar verduras e lavar roupas. Estas últimas são predominantemente femininas no Assentamento, enquanto lidar com o gado, carregar lenha e retirar água das cisternas são atividades masculinas. Os meninos têm mais liberdade, tanto de tempo quanto de deslocamento, aprendem desde cedo a andar de moto (o principal meio de transporte do Assentamento) e saem de casa várias vezes ao dia. Alguns deles saem para trabalhar fora de casa e retornam próximo a hora de ir para a escola, enquanto as meninas se ocupam de dividir as tarefas domésticas com as mães.

Por outro lado, quando questionadas sobre a participação em assembleias e reuniões, as crianças relataram que tanto meninos quanto meninas têm total liberdade para participar. Em relação às brincadeiras, citam que é comum todos brincarem juntos, principalmente na escola. A comunidade tenta manter viva a proposta do MST de participação efetiva e igualitária de homens e mulheres.

A escola tem uma proposta educacional em consonância com os valores do MST11e, por esta razão, é um dos espaços onde as crianças se encontram e onde as

brincadeiras acontecem sem distinções de gênero. A tentativa de romper com práticas sociais que reproduzem desigualdades no Assentamento se torna um desafio cotidiano na busca pela convivência igualitária entre homens e mulheres.

O modo de organização social do Assentamento destaca-se nas questões de gênero desde a infância. Nas ações e nas falas das crianças assentadas e na identidade de cada uma, esse fator aparece claramente quando, desde bem pequenas, elas demonstram conhecer a história local, formam opiniões sobre assuntos relacionados à organização social, se reconhecem como assentados e pertencentes ao MST e, principalmente, reconhecem a importância do outro, respeitando-o, acolhendo-o ou ensinando-lhe algo.

No que se refere à vida política e à vida cotidiana, aparentemente há certo embate em relação às atividades de homens e mulheres, entre o que é tradicional (divisão de papéis de homens e mulheres) e o que é trabalhado pelo MST (relações igualitárias). Politicamente as mulheres têm total liberdade de participação e são sujeitos de extrema importância para o processo de instituição e rotina do Assentamento, o que condiz com o discurso dos assentados. No âmbito doméstico, homens e mulheres têm suas atividades diferenciadas, e esta é uma das características de que a tradição em relação à divisão de papeis ainda se faz presente.

Esta característica está imersa na rotina dos assentados de forma discreta, e o que se percebe é que a forma de organização social se sobrepõe sendo retratada também nas práticas lúdicas das crianças assentadas. Em grande parte das brincadeiras meninos e meninas partilham do mesmo espaço e participam das mesmas brincadeiras além de dividir os mesmos brinquedos sem muitas distinções, como por exemplo: meninos e meninas brincam de bambolê, de pião e de futebol, dentre as outras brincadeiras.

Mesmo na brincadeira do Mata, em que há separação de grupos não mistos entre meninos e meninas, ambos participam juntos da mesma brincadeira. A não distinção dos brinquedos quanto ao gênero é uma das questões trabalhadas na escola, embora fora dela existam algumas resistências relacionadas a isso, não por parte das crianças, mas por alguns adultos, quando insistem em rotular o que é “brinquedo de menina” e o que é “brinquedo de menino”. Na escola as crianças são incentivadas a partilhar brinquedos e brincar juntas, independente de gênero ou idade, como podemos ver na figura 30.

11 Tais como solidariedade, cooperativismo e centralismo democrático. Além da afirmação identitária e do sentimento de pertencimento.

Figura 30 – Meninos e meninas brincando de corda

Fonte: Autora (2015).

Existem poucos brinquedos na escola, dentre eles alguns bambolês, uma bola pequena, corda, bilboquê e alguns jogos didáticos. Todos os brinquedos são compartilhados pelas crianças, às vezes, os professores evitam distribuir os brinquedos no momento do intervalo devido à euforia que isso provocam nas crianças, embora que elas insistam e eles acabam cedendo. Um fato marcante é que a escola procura diluir as fronteiras dos papeis de gênero no que se refere às brincadeiras, oferecendo os mesmos brinquedos, tanto os meninos quantos às meninas.

Figura 31 – Menino brincando de bambolê

Fonte: Autora (2015).