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Entre a metrópole livre e a colônia escravista: contradição da acumulação

3. ESCRAVIDÃO: IMPOSIÇÃO DE UM PROCESSO DOLOROSO

3.1 Entre a metrópole livre e a colônia escravista: contradição da acumulação

Revelar a substancial contradição existente entre a implementação do trabalho livre na Europa, especificamente na Inglaterra e, ao mesmo tempo o trabalho compulsório e escravo no Novo Mundo ancorado nos engenhos e plantations de cana-de-açúcar é uma análise realizada por Ianni (1988). Essa contradição nada mais é, do que a realização de um processo contemporâneo de reprodução do capital comercial, no contexto das grandes ‘descobertas marítimas’ que envolve colonizar e usurpar novas terras, saquear riquezas para justificar o desenvolvimento e expansão do capitalismo.

O surgimento do trabalho livre na Europa resultou na separação do trabalhador dos meios de produção, o qual era ‘livre’ diante das condições impostas para vender sua força de trabalho, porém sujeito aos ditames do capital comercial europeu, assim como a exploração do escravo e do seu trabalho compulsório, sendo este comprado por um preço barato em seu local de origem e vendido mais caro nas colônias. O trabalho livre aparece como forma de trabalho racionalizada, que rompe com as antigas formas desumanas de trabalho escravo.

A produção capitalista somente pode ser realizada quando o trabalhador é separado dos meios de produção. A terra deixa de ser uma condição dada para produção e torna-se mercantilizada, com acesso privado a quem pode comprar. Por isso, a terra deixou de ser um bem social para se constituir em propriedade privada de poucos.

Os instrumentos de trabalho tornam-se capital porque deixaram de pertencer ao trabalhador para atender as necessidades dos capitalistas. Dissolvidas as relações de privação da terra e dos meios de produção, o escravo tornou-se o próprio instrumento de trabalho, a mercadoria pronta para ser usada. Isto representou a realização da mercadoria lucrativa.

Como processo de âmbito estrutural, a acumulação primitiva envolveu principalmente a força de trabalho e o capital, nos seguintes termos. Quanto

à força de trabalho, o que ocorreu foi o divórcio generalizado e radical entre o trabalhador e a propriedade dos meios de produção.

Historicamente, esse fenômeno ocorreu tanto na agricultura como nos grêmios e corporações de ofícios. Ele se deu em concomitância com a criação de valores culturais e padrões de comportamento que compreendiam os princípios da cidadania, principalmente a faculdade de oferecer-se livremente no mercado, sem as limitações ou amarras das instituições gremiais, patriarcais, comunitárias ou outras. Quanto ao capital, o processo de

acumulação primitiva envolveu intensa acumulação e concentração do capital, inclusive dos meios de produção. Apoiado na ampliação e intensificação do comércio internacional, nos quadros do mercantilismo, o

capital comercial reproduziu-se em elevada escala (IANNI, 1988, p. 17. Grifo nosso).

Essa relação de compra e venda a um custo baixo do escravo, negociado enquanto uma mercadoria necessária do sistema escravista, esteve restritamente nos limites do monopólio comercial na relação entre metrópole-colônia, cujo objetivo era aumentar o lucro em larga escala da acumulação capitalista e produzir mais mercadorias sob diversas formas de exploração do trabalho escravo para alimentar o processo do progresso industrial europeu. Ianni (1988) aponta dois fatores que contribuíram para o sucesso da escravidão:

I - A pouca disponibilidade de mão-de-obra para atuar na atividade laboral considerada de muito desgaste físico, como, por exemplo, nas plantações de cana-de-açúcar, na exploração do ouro e nos cafezais para o caso brasileiro;

II - Disponibilidade de terras ‘ociosas’ a ser apropriada para atender às necessidades da expansão do capital.

Por isso, a escravidão se constituiu num negócio lucrativo, tanto para os países europeus que comandavam o processo de exploração, quanto para as elites locais que consolidaram grandes fortunas, porque o fluxo de capitais envolvendo a Europa, África e o Novo Mundo, assentado nas necessidades do capital comercial permitiram a manutenção e expansão da escravidão. Ainda para o autor, no processo de expansão capitalista do século XVI ao século XVII ocorreu a subordinação do capital comercial ao industrial, ao mesmo tempo em que valorizava os investimentos do capitalista no processo produtivo. Na Inglaterra cresceu o capital financeiro paulatinamente separando e intensificando nas relações de produção, o trabalhador dos meios de produção, forçando-o a vender sua força de trabalho.

Isso abre margem para crescimento e diversificação da manufatura no mercado europeu e colonial. Nessa análise, entende-se que o processo de acumulação capitalista está subordinado ao capital industrial, entrando em crise as relações coloniais. Vale salientar, que os processos de independência se constituíram em uma reestruturação ao sistema econômico, demandando o fim do sistema escravocrata.

As formações sociais baseadas no trabalho escravo produziram as mercadorias que permitiram a ampliação e a aceleração da acumulação de capital, processo que esteve na base da criação e generalização do capitalismo. Desde então, o próprio trabalhador é mercadoria. No outro momento, o capitalismo constituído e em expansão revoluciona as relações de produção nas formações

sociais escravistas, transformando o escravo em trabalhador livre. Então, o trabalhador é livre de vender sua força de trabalho como mercadoria. Antes, no âmbito da acumulação primitiva, o escravo havia ajudado a criarem-se as condições de formação do operário. Depois, no século XIX, o operário ajudava a criarem-se as condições de transformação do escravo em operário (IANNI, 1988, p. 70).

Para Ianni (1988) as colônias tinham poder de articulação política e econômica apenas com o centro (os países europeus) numa relação de exclusividade comercial. Essa relação de exclusividade permitiu, segundo Marquese (2018) a construção dos espaços produtivos no Brasil que formava um mosaico diverso e ancorado no sistema escravista para atender as necessidades da economia capitalista. Muito embora, as relações de contrabando de mercadorias inglesas existissem anteriores à abertura dos portos em 1808, os ingleses não tinham dificuldades em vender suas manufaturas no Brasil, nessa lógica econômica liberal, influenciada desde os ideais da Revolução Francesa de liberdade econômica e comercial entre as nações. Diferentemente da Inglaterra, o liberalismo comercial brasileiro, praticado pela elite letrada, provinha dos intelectuais europeus que em tese, defendiam o trabalho assalariado. Todavia, não eliminava as relações escravistas nas colônias. Para Gorender (2002), o liberalismo econômico nasceu nesta contradição de incorporação do escravismo ao sistema colonial, sendo o trabalho livre na Europa e a escravidão nas colônias.

No mundo moderno, a produção de mercadorias alicerçada na mão-de-obra escrava só se tornou possível por tratar-se de produção voltada essencialmente para a exportação, a qual, por seu turno, destinava-se, sobretudo aos mercados da Europa, onde se revelava dominante o modo de produção capitalista. Três outros pontos devem, ainda, ser fixados: I- A escravidão localizada não é incompatível com o modo de produção capitalista, mas com o desenvolvimento do mesmo e, portanto, irremediavelmente fadada ao desaparecimento; II - estamos em face de um escravismo produtor de mercadorias (escravidão puramente industrial) e dependente dos mercados mundiais aos quais deve sua existência (3); III - os escravistas são capitalistas, vale dizer, acrescentamos nós, personificam o capital escravista-mercantil (PIRES; COSTA, 2000, p. 90).

O cultivo da cana-de-açúcar foi testado na costa africana das ilhas de Madeira, São Tomé e Canárias, através dos investimentos de capital genovês na produção da mercadoria mais valiosa, o açúcar nas grandes faixas de terras, com a utilização do trabalho escravo. A utilização em larga escala do trabalho escravo nas lavouras ocorreu, sobretudo com a instalação dos engenhos na costa pernambucana e baiana, configurando o monopólio da produção no mercado

internacional. Na transição do século XVII para o XVIII marcou a entrada de novos competidores como a Jamaica britânica, São Domingos francesa e Antilhas. Diante da crise açucareira que passava o Brasil, o modelo minerador implantado por Portugal foi uma busca desesperada em garantir a exploração de um produto com alto valor agregado e expandir a apropriação das terras no território articulada com a pecuária.

O escravo foi comprado por um preço baixo, inclusive via tráfico interno para trabalhar na mineração. A organização e produção do espaço geográfico brasileiro estavam ocorrendo para atender o mercado externo. Com a abertura dos Portos no pós-independência brasileira os fazendeiros produtores passaram a comercializar diretamente no mercado externo.

Prado Jr. (1994) destaca o menor número de negras importadas, diante da necessidade de mão de obra do escravo negro nas atividades comerciais. O sentido da colonização para ele estava orientado para o abastecimento do comércio externo com gêneros tropicais e minerais como a cana-de-açúcar, algodão e o ouro.

A relação entre o senhor e o escravo estava bem definida porque o escravo se constituía uma propriedade do seu senhor, o dono da unidade produtiva, e estava numa relação de subordinação total. “Todo escravo aparecia, na consciência do seu senhor, como sua propriedade e seu inimigo. Afinal de contas, a condição escrava tornava o escravo e o senhor, ao mesmo tempo e reciprocamente, inimigos” (IANNI, 1988, p. 56).

Meneses (2009) destaca que a luta dos escravos pela reconquista da liberdade, considerando a vida que possuíam em seu país de origem, iniciava ainda no cativeiro através das fugas individualmente e coletivamente realizadas. Uma vez capturados, colocavam-lhes ferros em seus rostos, separavam pelas tribos de origem de modo a evitar a resistência conjunta. Por isso, reduziam à imobilidade, ao silêncio, além disso, ameaçavam a integridade física com castigos planejados que tinham como finalidade controlar a reação ao aprisionamento e à fuga do negro. Os 350 anos de escravidão confirmam o prolongamento em tempos modernos.

Ao longo dos séculos de escravidão, as relações de dominação política e apropriação econômica permitiram à casta dos senhores destruir e recriar, ou reestruturar, os elementos culturais da casta dos escravos. Note-se que a escravatura foi a forma assumida pela aculturação dos africanos; e que essa aculturação foi forçada, subalterna e organizada segundo os interesses e o predomínio da casta dos brancos (IANNI, 1988, p. 92-93).

A total alienação física e mental do escravo foi uma característica inerente ao tipo de formação social escravocrata. Além disso, a formação social escravista como bem definiu Ianni

(1988) foi estabelecida no Brasil através do desenvolvimento capitalista com o capital aplicado para constituição da infraestrutura das cidades.

A formação social escravista e a monarquia entraram em declínio decorrente da expansão do sistema capitalista com a ascensão do sistema republicano em 1885 e o movimento abolicionista (1888). A condição de escravo é abordada pelo autor como uma ‘casta’ e significa uma estratificação social imutável, de caráter hereditário. Por se constituir numa propriedade exclusiva de seu senhor, torna-o impossibilitado de organizar uma mobilização coletiva.