• Nenhum resultado encontrado

3 A SELVA E DOIS IRMÃOS: entre leituras e possibilidades de análises

3.2 Entre mundos reais e imaginados em A Selva e Dois Irmãos

A selva, drama dos homens perante as injustiças de outros homens e as violências da natureza, estava destinada a ser, desde o princípio ao fim, para o seu próprio autor, uma pequena história, uma pequena parcela da grande dor humana, dessa dor de que nenhum livro consegue dar senão uma pálida sugestão. (CASTRO, 1978, p. 30).

Esta análise quer problematizar os contatos humanos, que permitem pensar em processos de construção das identidades culturais por meio de fragmentos contidos nas obras de Milton Hatoum, Dois Irmãos e de, Ferreira de Castro, A Selva. Milton Hatoum e Ferreira de Castro por meio de seus narradores nos conduzem para o encontro com a alteridade em crise, problemática e conflituosa. No primeiro fragmento abaixo Hatoum (2006), já nos mostra sua intenção que não era o de se prender ao exotismo da floresta, segue:

Via um outro mundo naqueles recantos, a cidade que não vemos, ou não queremos ver. Um mundo escondido, ocultado, cheio de seres que improvisavam tudo para sobreviver, alguns vegetando, feito a cachorrada esquálida que rondava os pilares das palafitas. Via mulheres cujos rostos e gestos lembravam os de minha mãe, via crianças que um dia seriam levadas para o orfanato que domingas odiava (HATOUM, 2006, p. 80).

O fragmento, inicialmente, parece sugerir uma paisagem degradada, apontando para possíveis efeitos do intenso processo de modernização da cidade de Manaus. De um lado, uma cidade que vemos: suja, favelizada, cheia de mazelas sociais, do outro, uma cidade que não queremos ver, pois mostra a miséria humana em suas condições atuais. O texto de Hatoum põe em evidência os problemas sociais, políticos, econômicos que envolvem aspectos graves da vida. Nesse sentido, Perrone-Moisés (2001) nos diz:

Transcorrendo entre o período da Segunda Guerra até os anos da ditadura militar, a história dos dois irmãos conta, em filigrana, a história da Amazônia e do Brasil. As peripécias de suas personagens têm como pano de fundo ativo e influente as mudanças porque passa Manaus: as

privações da cidade, já decadente, durante a guerra; a fundação de

Brasília vista de longe, a ocupação da cidade pelos militares, ‘monstro verde” mais assustador do que a floresta; a repressão e a violência; o

progresso duvidoso, porque desigual. As transformações do comércio, desde a lojinha modesta do antigo mascate, passando pela imitação do milagre econômico do sul até a proliferação dos badulaques globalizados e a compra da loja por um indiano inescrupuloso, vão sendo discretamente registradas pelo narrador (PERRONE-MOISÉS apud

TOLEDO, 2004, p. 34-35).5

Esses eventos culminam em mazelas contidas no romance e na vida fora dele. Nesse ponto da análise, faz-se necessário uma explicação: o projeto de modernização das cidades de Belém e Manaus se deu de forma desproporcional: por um lado, os grandes empresariados locais e internacionais se instalaram deliberadamente, recebendo incentivos e concessões fiscais do governo para seu amplo funcionamento, e com isso, fábricas, indústrias e uma trajetória de apropriações e desapropriações se iniciou de forma bastante acelerada; por outro, esse projeto desenvolvimentista provocou a expulsão e o deslocamento de moradores da região.

No decorrer da obra Dois Irmãos é perceptível a crítica que Hatoum constrói sobre esse empreendimento do capitalismo, que em nenhum momento, se preocupou com o homem local, ou levou em consideração suas demandas, como veremos mais adiante, pois, exemplos na narrativa mostram como a intenção dos empresários era simplesmente explorar. Por exemplo, no momento em que Rânia assume o estabelecimento do pai, a casa Rochiran, ela privilegia uma determinada classe e grupos sociais, e a antiga clientela que frequentava o comércio do Halim, gentes simples que moravam às margens do rio Negro é excluída em detrimento dos endinheirados. Rania moderniza o ambiente para atender exclusivamente outro público.

A exclusão de comunidades de pescadores, também aparece na narrativa como efeito direto do processo de modernização, e sua população expulsa de seus espaços de vivências e de suas terras. Penalva (2012) enfoca essa problemática, dando o acento à voz de Nael, segundo esse narrador, identificado na obra como um desses excluídos. As transformações ocorridas em Manaus do inicio do século XX, não levaram em consideração as pessoas que viviam ali. O ser humano fora excluído do processo de modernização da cidade, e apenas cifras, lucros e

acumulação de riquezas de grupos que se dirigiram para Manaus eram importantes, explorando a mão-de-obra de caboclos, índios, de migrantes de outras regiões do país.

Essas relações refletem o problema entre modernização e modernidade: “Manaus crescia muito e aquela noite foi um dos marcos do fausto que se anunciava” (HATOUM, 2006, p. 190). Assim, enquanto a modernização engole segregativamente uma sociedade inteira, a modernidade atuaria, propondo mudança de mentalidade, humanizando as relações, mas diante desse entrave, Belém e Manaus se modernizaram apenas em sua estrutura e configuração urbanas, já que o processo que as modernizou foi vitimador e não pensou em uma região formada pelas interações sociais, culturais, de sociedades que nasceram híbridas, de misturas, e não de um essencialismo. O narrador de Hatoum, nesse caso, assume importante papel, porque dá pistas que denunciam esse projeto devastador que ignorou as pessoas da Amazônia, deixando um rastro de decadência e miséria para a maioria e os suntuosos casarões, o porto Manaus Harbour à margem do rio Negro, praças, o teatro Amazonas, o edifício antigo da Cervejaria Alemã, para uma elite enriquecida à custa de um processo marginalizador e excludente das populações locais.

É pertinente, e acrescenta à nossa análise, mostrar que esses processos de modernidade/modernização na Amazônia brasileira resultam de uma investida unilateral, que não levou em conta os povos que habitam a região, sua cultura e formas de vida. Segundo Penalva (2012): “Esses povos amazônicos não tiveram nenhuma participação e nem puderam intervir em tais processos, o que fez com que continuassem pobres, em grande parte miseráveis, perambulando por ruas, becos e portos de Manaus” (PENALVA, 2012, p. 156).

De modo geral, a narrativa de Dois Irmãos se insere em um debate em que a modernidade desumana da Amazônia é posta como um acontecimento vitimador, cuja ideia de imposição cultural e do desrespeito às diferenças é fortemente marcada como relação de poder na narrativa. Concordando com Penalva (2012), podemos dizer que o projeto colonizador que se desenvolveu na Amazônia é resultado de concepções de assimilação cultural e de desrespeito às diferenças. O homem amazônico, o caboclo, o nativo, para se incorporar ao projeto de modernidade, precisariam assimilar todo um processo civilizatório.