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O pós-estruturalismo e os conceitos de Hibridismo, Tradução e Diferença cultural

2 DAS CIÊNCIAS SOCIAIS AOS ESTUDOS CULTURAIS

2.4 O pós-estruturalismo e os conceitos de Hibridismo, Tradução e Diferença cultural

O momento contemporâneo abre para o discurso das diferenças culturais em tempos de culturas híbridas e identidades fluídas. Nem tão bem recebida pelas correntes tradicionais, que preferem o conforto de suas velhas concepções, e se mantém vivas nas academias, essas teorias muito bem retomadas de seus “originais” fazem frente a uma imagem ou linguagem que se disse universal, borrando essa literatura do passado com enunciados distorcidos e estereotipados, produzindo uma crise no pensamento e na teoria da linguagem.

Desse modo, o conceito de hibridismo consiste no borramento dos discursos e engloba o conceito de tradução e diferença cultural, proposto por Homi K. Bhabha, que permite, de modo geral, contestar as ambivalências, as dicotomias do tipo oprimido/opressor, dominante/dominado colônia/metrópole, erudito/popular, tomados como motes excludentes, devastadores e silenciadores das culturas pensadas como subalternas.

Bhabha argumenta o hibridismo cultural como prática e produção de saberes e aproxima sua leitura do que Santiago lê como o: “terceiro espaço”, ou seja, o espaço intersticial, o estar dentro-fora da frase, entre o enunciado e a enunciação. Segundo Bhabha:

Esse estar “fora da frase” é recusar a ditadura do enunciado normatizado,

pronto e fechado; é lembrar do contexto, da história da ideologia e das demais condições de produção da significação que constituem o momento da enunciação e, portanto, que contribuem para a constituição do sentido do enunciado. É nesse espaço intersticial e particularizante que se

desfazem os desejos substantivos pela universalização, pela

homogeneidade e pela estabilidade; portanto, é nesse mesmo espaço que a diferença e a alteridade do hibridismo se fazem visíveis e audíveis (BHABHA, 1998, p. 131).

Nesse sentido, o hibridismo não é apenas a busca por uma ideia de identidade mítica híbrida, mas um modo de conhecimento, um processo para entender ou perceber o movimento de trânsito e tensão que necessariamente acompanha qualquer tipo de transformação social, com a transcendência das condições complexas e conflitantes que acompanham o ato de tradução cultural. Ainda de acordo com Bhabha,

Essa teoria da cultura está próxima a uma teoria da linguagem, como

parte de um processo de traduções – usando essa palavra, como antes, não

no sentido estritamente lingüístico de tradução, como por exemplo, “um

livro traduzido do francês para o inglês”, mas como motivo ou tropo

como sugere Benjamin para a atividade de deslocamento dentro do signo lingüístico. Perseguindo esse conceito, a tradução é também uma maneira de imitar, porém de uma forma deslocadora, brincalhona, imitar um original de tal forma que a prioridade do original não seja reforçada, porém, pelo próprio fato de que o original se presta a ser simulado,

copiado, transferido, transformado etc.: o “original” nunca é acabado ou

incompleto em si. O “originário” está sempre aberto à tradução (...) nunca

tem um momento anterior totalizado de ser ou de significação – uma

essência. O que isso de fato quer dizer é que as culturas são apenas constituídas em relação àquela alteridade interna a sua atividade de formação de símbolos que as torna estruturas descentradas – é através desse deslocamento ou limiriaridade que surge a possibilidade de articular práticas e prioridades culturais diferentes e até mesmo incomensuráveis (BHABHA, 1998, p. 125).

O conceito de hibridismo cultural como uma possibilidade de contestação cultural, resultante das diferentes experiências, dos conjuntos de valores que formam a heterogeneidade cultural, contudo, funciona como uma maneira de mexer no fundamento do conhecimento e desconstruir suas bases, projetando a linguagem para o território da indeterminação e dos espaços de fronteiras que se interconectam e se entrecruzam. Dessa forma, esse conceito não é discutido apenas como mistura de elementos ou de empréstimos culturais para formar uma identidade, mas uma forma de ver o mundo e as coisas, “um cisco no olho do observador”, que sempre filtrou tudo com seu olho dicotômico e monolítico, a “pedra no sapato” que agora o colonizador tem que calçar. O hibridismo, é o “enunciativo, é um processo mais dialógico que tenta rastrear deslocamentos e realinhamentos, que são resultados de antagonismos e articulações culturais, subvertendo a razão e recolocando lugares híbridos de negociação cultural” (BHABHA, 1998, p. 248).

Nas palavras de Bhabha, o hibridismo é o lugar das fronteiras, das significações culturais tendo a cultura como lugar enunciativo, ou articulando pontos nessa enunciação, no caso: “Uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas, como os gregos conheceram, a fronteira é o ponto do qual algo passa a se fazer presente” (BHABHA, 1998, p. 19).

Sobre esse posicionamento de Bhabha, Hanciau afirma que: “o trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com o ‘novo’, como ato insurgente, e não parte de um continuum do passado e presente, reconfigurando esse “novo” como um ‘entre-lugar’ (HANCIAU, 2005, p. 137). O hibridismo é o terceiro espaço – termo utilizado por Bhabha – ou o entre-lugar, termo utilizado por Silviano Santiago, lugar intervalar, (Edouard. Glissant), caminho do meio (Zila Bernd), zona de contato (M.L. Pratt) e de fronteiras (Ana Pizarro). Essas definições propostas são importantes no repertório teórico dos que estudam cultura, porque posicionam um método de leitura que dialogam com a ideia de tradução cultural na forma de hibridismo. Bhabha na íntegra postula que: “se o conceito de hibridismo no ato da tradução cultural (tanto como representação quanto como reprodução) nega o essencialismo de uma cultura anterior original ou originária, então para o autor, todas as culturas estão em constante processo de hibridismo”. Bhabha acredita que a importância do hibridismo não se dá pela ideia de traçar momentos originários, mas a possibilidade de os sujeitos se posicionarem, de surgirem outras posições, pois como ele afirma, o hibridismo é o terceiro espaço e segundo ele: “o terceiro espaço desloca as histórias que os constituem e estabelecem novas estruturas de autoridade, novas iniciativas políticas, que não são compreendidas através da sabedoria normativa” (BHABHA, 1998, p.126-127).

Desse modo, o hibridismo cultural articula-se contra a corrente do projeto essencialista, permitindo uma releitura dos tradicionais espaços de enunciação que, agora, são desafiados pelos discursos pós-colonialistas e pela posição singular da crítica. Esses novos espaços, agora se misturam aos acontecimentos globais, reposicionam sujeitos nos lócus enunciativos do jogo cultural, e, sobretudo, atendem aos apelos das instâncias subjetivas dos discursos em circulação. Para Hanciau (2005):

Esse espaço aparentemente vazio, templo e lugar de clandestinidade, seria o lócus do ritual antropófago da literatura latino- americana, na qual se realiza entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a expressão (HANCIAU apud SANTIAGO, 2000, p. 26).

Estamos falando de espaços híbridos, de espaços movediços e infixos que não se submetem às forças controladoras do dito. Coser (2005, p. 45), em uma abordagem em torno do hibridismo cultural afirma que: “este tenta escapar das dicotomias como opressor-oprimido, erudito-popular ou latino-anglo”. Para essa autora, os binarismos que secularmente guiaram a história das sociedades e das culturas humanas não são mais um diálogo favorável para a construção de outras linguagens e para a rasura cultural ou tradução cultural.

Lin Mário Souza, discutindo o tema em questão acredita na natureza performativa da linguagem. Essa natureza performática é que permite não produzir um fechamento no significado. Para ele, a tradução como movimento de significação provoca o signo na sua episteme, na sua fenomenologia ontológica da existência do ser, questionando sua base, para o autor:

A tradução cultural não é simplesmente uma apropriação ou adaptação; trata-se de um processo pelo qual as culturas devem revisar seus próprios sistemas de referência, suas normas e seus valores, a partir de e abandonando suas regras habituais e naturalizados de transformação. A ambivalência e o antagonismo acompanham qualquer ato de tradução

cultural porque negociar com a “diferença do outro” revela a insuficiência

radical de sistemas sedimentados e cristalizados de significação e

sentidos, demonstra também a inadequação das “estruturas de

sentimento” (como diria Raymond Williams) pelas quais experimentamos

as nossas autenticidades e autoridade culturais como se fossem de certa

forma “naturais” para nós, parte de uma paisagem nacional (SOUZA,

2004, p.127).

Grosso modo, a ideia de tradução cultural instala uma “turbulência” nos discursos instituídos, pois como afirma Bhabha (1998, p. 61), “a tradução traumatiza a tradição”. Na busca de resistência contra o discurso racionalista, não se trata mais de usar a sua lógica, mas sim de criar um contradiscurso baseado na tradução cultural, pois desse modo, essa maneira de lê é capaz de desarmar, causar o ridículo, a inquietação, o riso, a descontração no pensamento dominante. Para Bhabha, “o processo de tradução cultural é a abertura de um outro lugar cultural e político de enfrentamento no cerne da representação colonial”(BHABHA, 1998, p.62). Esse também é o posicionamento assumido por Williams ao falar de política cultural.

Desse modo, o conceito de diferença cultural desestabiliza o código linguístico, a estrutura da linguagem é deslocada no interior do signo. Avançando: para Bhabha, o conceito de

diferença ao invés de diversidade cultural, assume importância relevante para se pensar o método, até, então, aplicado para lê cultura. A ideia de diversidade, segundo o teórico tem a ver com a noção de equilíbrio, harmonia entre cultura e sociedade, contudo, o autor aponta para o perigo de se conceber a cultura sob esse ponto de vista cristalizado no discurso estratégico do pensamento dominante, pois como bem nos lembra Williams (1979), “a produção cultural sempre esteve ligada a processos de dominação e controle social” que objetiva homogeneizar todas as raças, todas as línguas, todos os povos, engessar todas as culturas. Em contrapartida, Bhabha propõe o debate sobre a diferença cultural, pois, como defende,

A diferença cultural não pode ser compreendida como um jogo livre de polaridades e pluralidades no tempo homogêneo e vazio da comunidade nacional. O abalo de significados e valores causado pelo processo de interpretação cultural é o efeito da perplexidade do viver nos espaços liminares. A diferença cultural como uma forma de intervenção participa de uma lógica de subversão suplementar semelhante às estratégias do discurso minoritário. A questão da diferença cultural nos confronta com uma disposição de saber ou com uma distribuição de práticas que existem lado a lado, designando uma forma de contradição ou antagonismo social que tem que ser negociado em vez de ser negado (BHABHA, 1998, p. 228).

Dessa maneira, o conceito de diferença cultural em Bhabha está circunscrito em um projeto teórico-político, que faz parte do processo de reivindicação das identidades e, que, colocam em xeque, as contradições historicamente construídas pelo discurso dominante. Esse conceito promove uma leitura desconstrutivista e não teleológica da história e propõe uma relação de negociação, que segundo o autor não é: “nem de assimilação, nem colaboração”, mas um movimento de ambivalências.

Já o conceito de diversidade e mesmo de multiculturalismo são construções discursivas de um projeto capitalista cultural. Para Bhabha, “a diversidade cultural é um objeto epistemológico, a cultura como objeto de conhecimento empírico, categoria da ética, estética ou etnologia comparativa” (BHABHA, 1998, p.63), com conteúdos e costumes culturais pré-dados, tomados por um enquadramento temporal relativista e seu funcionamento é fruto de uma retórica radical da separação de culturas totalizadoras.

Por outro lado, o conceito de diferença cultural, insere-se no debate crítico contemporâneo, que emerge das fronteiras significatórias das culturas, é ainda: “o processo de

enunciação da cultura como “conhecível”, legítimo, adequado à construção de sistemas de identificação cultural” (BHABHA, 1998, p.63). Sendo assim, concentra-se no problema da ambivalência e está circunscrita na enunciação cultural – interstícios – que problematiza a divisão binária de passado e presente, tradição e modernidade no nível da representação cultural, e de sua interpelação legítima. Segundo Bhabha, o lugar do enunciado é atravessado pela diferença da escrita, no rompimento da representação simbólica.

Segundo Bhabha, hibridismo, tradução e diferenças culturais enquanto leituras exercem um árduo trabalho de intervenção social, política, étnica, religiosa, de gêneros, que alteram o cenário de articulação entre forças ditas antagônicas e as demandas de representatividade social, não para propor simplesmente a lógica da discriminação ocidental, mas para insistir que essas estratégias perturbam o cálculo racional. Esses processos propõem na forma do trabalho e da contínua elaboração de saberes produzidos como demandas sociais que emergem das fronteiras, a interpretação cultural necessária para provocar uma colisão, um choque com aquele tempo sucessivo, e com as relações ontológico-teleológicas.

De todo modo, se:

Todas as sociedades são complexas e híbridas. Se o híbrido não está convenientemente circunscrito às margens, aos guetos de imigrantes, aos Barrios, aos espaços alternativos, ou apenas aos dias atuais. Mas, híbridos não são os outros: híbridos somos todos nós, são todas as culturas e todas as histórias (COSER, 2005, p. 185-86).

É, longe, portanto, dessa conveniência da cultura que tratamos esse tema nessa pesquisa, uma vez que as conjunturas internacionais forçam a dissolução de regimes de fronteiras, fomentando o escoamento de fluxos demográficos, com vistas a facilitar o trânsito de pessoas, informações, tecnologias, que reorientem e redirecionem demandas de complexos culturais, até então, esquecidos pelo discurso de autoridade das instituições, e que, esses complexos culturais, sejam inseridos nos debates atuais sobre cultura.

Entendemos que circunscrever as margens nas discussões pertinentes ao tema da cultura, ouvindo o que somente, agora ela sempre teve a nos dizer, baliza para um amplo e significativo espaço de negociações, pois não podem mais existir silenciados, mas precisam vir à tona, como maneiras de diálogos abertos entre o institucional e o vivido. E que dessa forma, se corrija, a enorme indiferença, com a qual foram tratados, todos os que não dispunham do acesso aos

instrumentos formais de conhecimento. Que possam, assim, se reempoderarem de suas práticas, sejam elas quais forem, estejam elas em quais lugares estiverem, sempre em negociação com outras instâncias, interações e práticas culturais situadas.

Desse modo, essas questões assinalam um importante ganho, no que diz respeito, ao momento, em que os espaços alternativos, as vozes dos subalternos e pluralidades de povos, línguas, credos, gêneros estão, emergindo das fronteiras significativas das culturas, que antigamente eram apenas circunscrita aos centros, agora, as margens podem falar e seus ecos ressoam via literatura, cinema, jornal, folhetins e de qualquer veículo que possa tornar vivas e produtivas as diferenças entre as culturas.

Portanto, é preciso que em tempos de hibridismos, ìdentidades e diferenças culturais, se faça um remapeamento desses novos espaços de acolhida das realidades históricas, e que nações autoritárias, no domínio e no apego doentio à palavra cultura peçam perdão pelos crimes que cometeram.

3. A SELVA E DOIS IRMÃOS: ENTRE LEITURAS E POSSIBILIDADES DE ANÁLISES