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entre o cesarismo monárquico e o republicanismo

1 – Considerações iniciais

Em 1901, o romancista Carlos Malheiro Dias publica Os Teles de

Albergaria, uma obra literária de abundante conteúdo político-ideológico

que, no contexto do presente trabalho, merece o nosso inteiro destaque e uma análise minuciosa neste capítulo: em termos globais, a incidir sobre o pensamento do seu protagonista; em termos específicos, a reflectir sobre alguns episódios históricos relacionados com a evolução da ideologia republicana em Portugal e com a forma como se estabelece a confrontação directa entre os partidários desta recente e inovadora tendência política e o poder instituído, de orientação tradicionalmente monárquica.

No decurso das suas três partes, subdivididas em onze capítulos, esta narrativa acompanha, ao longo de todo o século XIX, especialmente as primeiras seis décadas do constitucionalismo português, a sucessão de três gerações dos Teles de Albergaria, uma família aristocrática já com pergaminhos na História, desde o tempo em que outros Albergarias “[...] tinham ido ao Oriente, sob D. Manuel.”1:

- a primeira geração – pertencente ao tempo passado – é representada pelo “patriarca” Joaquim Teles Lobo, nascido em 1802, e pai de João Teles Lobo de Albergaria;

- a segunda geração – vinculada ao tempo presente – é representada pelo protagonista João Teles de Albergaria, que nasce em 1826, por D. Margarida, a sua mulher, e ainda pelo seu irmão Manuel;

- a terceira geração – orientada para o tempo futuro – é representada por Joaquim e Luís, os dois descendentes de João Teles de Albergaria, nascidos respectivamente em 1856 e 1875.

A acção principal deste romance – que podemos qualificar como uma obra-prima da literatura finissecular portuguesa – está concentrada na década de 80 do século XIX, e prolonga-se exactamente até às primeiras horas da madrugada do dia 31 de Janeiro de 1891, o momento

histórico que regista o início do primeiro confronto violento entre as forças monárquicas e os seus opositores republicanos, ocorrido na cidade do Porto. Antecipando todas as conclusões que possamos vir a retirar da análise deste texto literário, não podemos deixar de pensar, desde já, na existência de uma estratégia diegética através da introdução deste episódio histórico no seu derradeiro capítulo, e a cuja deliberada intenção autoritária será dado o devido relevo mais adiante2.

Pelo tratamento factual existente ao longo deste romance de família, pela forma peculiar como todo o seu discurso é atravessado pelos numerosos episódios da História de Portugal, sentir-nos-íamos tentados, numa primeira impressão, a incluir Os Teles de Albergaria na categoria do romance histórico. Com efeito, o discurso histórico e o ficcional encontram-se bastante entrelaçados um no outro, e a própria estratégia narrativa consegue iludir o leitor, ao fazê-lo acreditar, por vezes, na realidade “física” de algumas personagens-referenciais3, quando, ao

conceder uma dimensão realista à narrativa, as coloca no epicentro de determinados momentos fulcrais da sociedade portuguesa oitocentista, cruzando-se furtivamente com algumas personalidades da História.

A propósito da pequena relevância atribuída às personagens históricas na obra literária do romancista francês Honoré de Balzac, característica que confere às mesmas uma sensação autêntica de realidade, comenta Roland Barthes o seguinte:

C'est précisément ce peu d'importance qui confère au personnage historique son poids exact de réalité: ce peu est la mesure de l'authenticité: Diderot, Mme de Pompadour, plus tard Sophie Arnould, Rousseau, d'Holbach, sont introduits dans la fiction latéralement, obliquement, en passant, peints sur le décor, non détachés sur la scène; car si le personnage historique prenait son importance réelle, le discours serait obligé de le doter d'une contingence qui, paradoxalement, le déréaliserait [...].4

2 Ver, especialmente, os pontos 4.4 e 4.5 deste capítulo.

3 Philippe Hamon atribui esta designação às personagens históricas, mitológicas ou

alegóricas inseridas no texto literário, como forma de melhor assegurar aquilo a que Roland Barthes denomina de “efeito de real” (cf. Philippe Hamon, “Para um estatuto semiológico da personagem”, in AA. VV., Categorias da narrativa, 1976, 96.).

No romance de Malheiro Dias, esta mesma situação ocorre durante a acção do patriarca da família, Joaquim Teles Lobo, quando o vemos a contemplar Passos Manuel5, a travar conhecimento com Fernandes

Tomás6, e a combater, durante a guerra civil de 1828, ao lado dos seus

colegas universitários José Estêvão7 e Luz Soriano8; ou até mesmo do

protagonista, quando, já nos derradeiros momentos da obra, acompanha com especial interesse as consequências nefastas do Ultimato inglês ou se torna uma testemunha privilegiada da revolta republicana de 1891.

No entanto, constatamos que este texto narrativo não preenche dois requisitos fundamentais na caracterização de um romance histórico: por um lado, em termos temáticos, e fazendo uso das palavras de Maria de Fátima Marinho, a obra limita-se “[...] a contar as vicissitudes de uma família ao longo do século XIX, com as suas diferenças de opinião (liberais e realistas) [...]”9; por outro lado, ao ter sido redigida entre Setembro de

5 Figura histórica com um notável papel interventivo no combate pela consolidação do

liberalismo até à fase da Regeneração, e posteriormente, como estadista, no desenvolvimento do ensino superior. Nascido em 1801, Passos Manuel pertence à mesma geração de Joaquim Teles Lobo.

6 Pela sua relevância na História, parece ser feita alusão a Manuel Fernandes Tomás,

figura histórica que forma o Sinédrio em 1818, juntamente com José Ferreira Borges, José da Silva Carvalho e João Ferreira Viana, e com os quais prepara a revolução liberal de 1820. Posteriormente, veio a pertencer à Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, e, já como deputado das Cortes Constituintes, redigiu as bases da primeira Constituição portuguesa, promulgada em 1822, precisamente o ano em que falece.

Contudo, situando-se a ocorrência do convívio de Teles Lobo com esta personagem em 1826, ou seja, quatro anos após a sua morte, leva-nos a fazer duas interpretações possíveis: ou Malheiro Dias terá cometido um pequeno lapso cronológico, ou então a sua “distracção” terá sido propositada para poder efectuar a aproximação entre o “patriarca” do seu romance e esta grande figura do liberalismo vintista.

Não se tratando de nenhuma das hipóteses avançadas, fica ainda a possibilidade de se tratar do seu filho Roque Joaquim Fernandes Tomás (1807-1871), lente de Filosofia da Universidade de Coimbra e deputado às cortes constituintes a partir de 1837.

7 José Estêvão Coelho de Magalhães (1809-1862), de seu nome completo, frequentava o

Curso de Direito da Universidade de Coimbra quando, em Maio de 1828, ainda com 18 anos, se alistou no batalhão académico, formado por estudantes universitários, para combater as tropas miguelistas nas batalhas de Morouços e do Vouga.

8 Nascido em 1802, precisamente no mesmo ano de Joaquim Teles Lobo, o político e

historiador Simão José da Luz Soriano, autor de obras sobre as primeiras décadas do liberalismo português, estava matriculado em 1828 no terceiro ano do Curso de Matemática e Filosofia da Universidade de Coimbra, e, tal como José Estevão, combate integrado no batalhão académico. Curiosamente, vem a falecer em 1891, o ano com que finda a narrativa de Malheiro Dias.

1900 e Fevereiro de 190110, não se verifica, no seu aspecto temporal, a

existência “[...] de pelo menos duas gerações entre a escrita do livro e o momento cronológico do enredo, [...]”11.

Na década de 70, João Gaspar Simões, não deixando de recusar a classificação desta obra como romance histórico, acaba por fugir – de uma forma muito subtil e, talvez, demasiado “cómoda” – à delicada tentativa da sua definição, com as seguintes palavras:

Se Os Teles de Albergaria não são, de facto, um romance histórico, são pelo menos o romance da agonia de uma ideia histórica: a agonia do constitucionalismo monárquico. 12

Neste sentido, não sendo adequado integrarmos esta obra de Malheiro Dias na categoria específica da narrativa histórica, podemos porventura concordar com a sua designação como romance de carácter

histórico13, ou então de evocação histórica, à semelhança de uma

classificação anteriormente registada tanto num texto de Joaquim Paço d'Arcos14 como num outro, já bem mais recente, de autoria colectiva15.

10 A duração de cinco meses na elaboração desta obra é uma indicação expressa pelo seu

autor no final da primeira edição, voltando a mesma constar na segunda edição, publicada no Rio de Janeiro, mas desta vez no cólofon.

11 Maria de Fátima Marinho, O Romance Histórico em Portugal, 1999, 11.

12 João Gaspar Simões, “Sobrevivência do realismo como discurso retórico – Carlos

Malheiro Dias (1875-1941)”, in Perspectiva histórica da ficção portuguesa (das origens

ao Século XX), 1987, 665.

13 Cf. João Gaspar Simões, “Aníbal Soares: ‘Ambrósio das Mercês’, um Romance

Fantasista?”, in Perspectiva histórica da ficção portuguesa (das origens ao Século XX), 2ª ed., 1987, 683.

14 Cf. Joaquim Paço d’Arcos, Carlos Malheiro Dias – Escritor luso-brasileiro, 1961, 22. 15Cf. AA. VV., “Os epígonos”, in Carlos Reis (dir.), História da Literatura Portuguesa, 5 – O

2 – Os primórdios do republicanismo em Portugal

O alcance da deslocação analéptica desta obra, cujo início se dá no capítulo II da Primeira Parte e se prolonga até ao fim da mesma, remonta à década de 1820, justamente aos momentos em que acompanhamos mais de perto Joaquim Teles Lobo, pai do protagonista. Os pequenos e quase insignificantes episódios que assinalam a sua vida são suficientes para nos transmitirem alguns dos primeiros indícios do republicanismo em Portugal na terceira década do século XIX, precedentes à denominada “geração dos patriarcas”16, formada no espírito da II República Francesa.

Este “patriarca” da família Teles de Albergaria, cujo nome é idêntico ao de uma personagem17 do romance Paixão de Maria do Céu,

publicado por Malheiro Dias em 1902, assume uma elevada importância para este trabalho, pois é por seu intermédio que é introduzida na obra a primeira referência ao republicanismo, mais precisamente no momento em que o narrador, ao empregar os termos “pedreiro-livre” “jacobino”18

para o caracterizar, o identifica com esta ideologia:

Oscilante como chamas ao vento, Joaquim Teles fora sucessivamente pedreiro-livre19 e jacobino em 20, liberal em 26,

cartista em 32, expulsara Beresford e aclamara Stuart, [...].20

16 Cf. Amadeu Carvalho Homem, A Propaganda Republicana (1870-1910), 1990, 5.

17 Joaquim Teles Lobo, personagem destacada de Paixão de Maria do Céu, é um fidalgo

que ingressa na carreira militar como oficial de cavalaria, e apaixona-se loucamente pela protagonista, que o troca pelo coronel francês De Marmont, pertencente às tropas invasoras de Junot. Cedo chegamos à conclusão de que não pode ser o mesmo Teles Lobo de Os Teles de Albergaria, uma vez que este teria apenas sete anos à data da segunda invasão francesa. Será só já perto do final da obra que Malheiro Dias dará a chave para a solução do mistério, como se tivesse estado a fazer um jogo com o leitor, no momento em que o capitão Teles Lobo pede a Maria do Céu que entregue uma corrente de ouro a um primo seu, com o mesmo nome, que vive na cidade do Porto. Para que esta coincidência de nomes se verificasse, Carlos Malheiro Dias foi obrigado, na segunda edição de Os Teles de Albergaria, a fazer uma alteração no seu texto (cf.

Os Telles d’Albergaria, 1901, 41-42, e Os Teles de Albergaria, 1999, 40.).

18 Pedreiro-livre é a designação atribuída aos republicanos radicais pertencentes ao Clube

Jacobino, liderado a partir de 1791 por Maximillien de Robespierre, que apoiou a destituição do monarca francês e participou na Comuna de Paris. Em Portugal, os estrangeirados costumavam ser também assim denominados.

19 Existiu sempre, desde muito cedo, e como este excerto do romance comprova, uma

aproximação mais ou menos íntima entre a Maçonaria e o republicanismo no início do século XIX. A Maçonaria do Porto, por exemplo, comemora a data de 31 de Janeiro de

Segundo vários autores e historiadores, o primeiro incentivo ao republicanismo em Portugal ocorre em 1820, em plena revolução liberal21.

Esta mesma ideia, presente no romance, está exemplificada em Joaquim Teles Lobo, um presumível apoiante da ala esquerdista das Cortes Gerais de 1820 e aliado da Maçonaria.

Nascido em 1802, Joaquim Lobo pertence à geração dos primeiros românticos portugueses22, possuindo naturalmente as suas mais nobres

características, relacionadas com a defesa dos grandes ideais em prol da humanidade. Fervilhando em torno da justiça e da liberdade, apega-se de uma forma permanente a estes valores, facto aliás confirmado pelas várias personagens que a ele se vão referindo ao longo do tempo, e através das quais é retratado de forma diversa. Citemos alguns exemplos: a sua mulher, D. Teresa, considera-o um “jacobino”23; o Padre Abílio acusa-o de

“mação”24; o narrador caracteriza-o como “liberal”25; e o seu filho João

classifica-o complacentemente de “romântico”26.

Em 1826, no período de regência da infanta D. Isabel Maria, logo após a morte de D. João VI, Joaquim “[...] é francamente pela República

1891, e o líder republicano Magalhães Lima foi eleito, em 1907, Grão-Mestre da Maçonaria.

20 Carlos Malheiro Dias, Os Teles de Albergaria, 1999, 35. Sublinhado nosso.

21Segundo Trigueiros de Martel, “[...] se 1820 não levantou uma república, deu começo ao espírito republicano que desde então não deixou mais de animar os espíritos

portugueses, abertos às ideias de Democracia, de Progresso.” (Trigueiros de Martel, A

República em Portugal, 1886, 121. Sublinhado nosso.); Oliveira Martins, num conjunto

de artigos publicados em 1870 para o jornal A República, diz taxativamente: “[...] nós os republicanos, os continuadores dos jacobinos de 1820, [...]. (, J. P. de Oliveira Martins, “Os 50 anos da monarquia constitucional”, in Temas e questões – antologia de

textos, 1981, 156. Sublinhado do autor.); segundo Teófilo Braga, “O partido republicano vem dos homens do Sinédrio, apareceu com Borges Carneiro na revolução de 1820;”

(apud Amadeu Carvalho Homem, “Republicanismo e demo-liberalismo”, in Teófilo

Braga. Filosofia e pensamento político-social, 1988, 233. Sublinhado nosso.); e, segundo

Eça de Queiroz, “O partido republicano não é certamente de creação recente. Desde 34,

desde 20, sempre em Portugal existiram republicanos e jacobinos.” (Eça de Queiroz,

“Novos Factores da Politica Portugueza”, in Revista de Portugal, II, 1890, 527. Sublinhado nosso.).

22 Recordemos que Almeida Garrett e Alexandre Herculano nascem, respectivamente, nos

anos de 1799 e 1810.

23 Carlos Malheiro Dias, op. cit., 40. 24 Idem, 27.

25 Idem, 37. 26 Idem, 41.

[...]”27, e, dois anos mais tarde, com o regresso de D. Miguel, continua a

dar provas convincentes do seu republicanismo matricial, à mistura com todos os seus ideais românticos. Perante os factos expostos, poderíamos arriscar-nos a dizer que Malheiro Dias parodia a História, ao antecipar, através desta personagem secundária, a primeira referência oficial à ideologia republicana em Portugal28:

[...] prega e exorta à revolução com uma eloquência de jovem tribuno republicano. [...] Em Coimbra tinham nascido as suas aspirações; e o sonho de uma República idealista acenou de novo ao coração do patriota com a sua verde esperança.29

Joaquim Teles, bacharelado em Coimbra aos 21 anos, é um verdadeiro exemplo do republicano romântico (ou talvez, numa definição mais rigorosa, do romântico republicano, dado não devermos aplicar aqui a arbitrariedade na ordem dos factores lexicais), tanto pelos exemplos já apontados, como pela decisão de se alistar, em 1828, nas fileiras do batalhão académico, do qual, como foi assinalado no ponto anterior, faziam também parte José Estêvão e Luz Soriano. E é na companhia dos seus colegas que este patriarca da família Teles combate as tropas miguelistas e luta com denodo pelo ideal que defende, como se de uma verdadeira religião se tratasse:

Joaquim Teles deixava-se ir na onda revolucionária, como um soldado entre o arrebatamento de uma carga, sem a consciência do rumo que ela seguia.30

Já em 1831, no intervalo dos combates travados ao lado dos seus

companheiros de armas, idealiza também “[...] uma República governada

por um Mouzinho da Silveira.”31

Joaquim Teles Lobo foi, ao longo da sua vida, um extraordinário defensor da doutrina liberal, tendo-se empenhado numa participação

27 Carlos Malheiro Dias, Os Teles de Albergaria, 1999, 36.

28 A primeira referência ao republicanismo em Portugal pertence oficialmente ao general

Joaquim Pereira Marinho, quando, em 1829, em pleno período de domínio miguelista, sugeriu, na Ilha Terceira, que se constituísse, com os territórios portugueses no mundo, a República dos Estados Unidos Portugueses Ultramarinos.

29 Carlos Malheiro Dias, op. cit., 38. 30 Idem, ibidem.

activa na Guerra Civil, na luta contra a política absolutista patrocinada por D. Miguel e pela consolidação definitiva da liberdade e da Carta Constitucional. À semelhança de um verdadeiro romântico, acaba por morrer tragicamente em combate a 16 de Setembro de 1832, após ter sido atingido por duas balas disparadas pelo exército miguelista.

Apesar de não possuir um desenvolvimento físico ou psicológico, esta personagem não tem uma caracterização negativa no romance. No fundo, o narrador parece nutrir uma terna simpatia por este patriarca, forte adepto de um republicanismo matricial e romântico, fervoroso idealista inocentemente levado ao sabor do vento das mudanças sociais e políticas ocorridas nas primeiras décadas do século XIX, e detentor dos verdadeiros sentimentos de solidariedade e de altruísmo.

Em suma, podemos concluir que o republicanismo primígeno de Joaquim Teles Lobo, vivido intensamente em muitos momentos da sua vida e durante mais de uma década, é, do ponto de vista narrativo, bastante embrionário e imaturo, sem qualquer ideologia sólida subjacente, como se o simples facto de ser republicano fosse uma condição sine qua

non para o seu espírito romântico, defensor da liberdade e crítico do poder

3 – Uma homenagem romanesca a Oliveira Martins

3.1 –Teles de Albergaria, avatar de Oliveira Martins

João Teles Lobo de Albergaria, de seu nome completo, é o protagonista deste romance. Nascido a 31 de Junho32 de 182633, ingressa

com 18 anos na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, onde acaba por trilhar os mesmos passos ideológicos e rebeldes do seu pai, Joaquim Teles Lobo, no combate em simultâneo à doutrina jesuítica e ao constitucionalismo monárquico:

Às noites, pelas ruas do Bairro Alto, o seu bando desmantelava à moca costelas ultramontanas. Aos domingos, no Choupal, davam-se vivas à república.34

Se, tal como efectuámos em relação a Joaquim Teles Lobo, nos detivermos na forma diversificada como João Teles é caracterizado por outras personagens, verificamos que um determinado percurso da sua vida e alguns aspectos do seu pensamento são similares aos do pai, uma conjuntura correspondente, no fundo, à teoria positivista da influência hereditária: “liberal”35 e “herético”36, segundo o parecer do padre Abílio;

“pedreiro-livre confesso”37, como o caracteriza o narrador; “republicano”38,

na perspectiva da opinião pública e de um conjunto de intelectuais lisboetas; e “ímpio”39, de acordo com a acusação impiedosa que a sua

mulher lhe faz.

32 Tanto na primeira edição, datada de 1901, como na utilizada para análise desta obra,

encontra-se a mesma data de nascimento do protagonista, facto que muito se estranha, dado que o mês de Junho tem apenas trinta dias. Deduzimos tratar-se de um lapso que, apesar da sua irrelevância, terá passado despercebido ao autor nas revisões efectuadas para a segunda edição, em 1910.

33 Em termos históricos, trata-se, com efeito, de uma data importante, pois é

precisamente o ano em que D. Pedro IV outorga a Carta Constitucional.

34 Carlos Malheiro Dias, Os Teles de Albergaria, 1999, 41. 35 Idem, 27.

36 Idem, 28. 37 Idem, ibidem. 38 Idem, 43. 39 Idem, 48.

O facto de João Teles ocupar, a partir do início da década de 60, trinta anos da sua vida na preparação de um vastíssimo conjunto de estudos especulativos de ordem jurídica, pedagógica e agrária, tendo em mente uma profunda reforma da política nacional, leva o historiador Rui Ramos a associar esta personagem a “[...] um novo Mousinho da Silveira ou um novo Passos Manuel.”40 Contudo, e apesar de o protagonista ser

um devoto confesso de Mouzinho da Silveira41, proporíamos antes a sua

associação ao historiador e economista Joaquim Pedro de Oliveira Martins, a cujo nome Rui Ramos se refere alguns parágrafos mais à frente, embora numa abordagem já descontextualizada não só em relação à personagem em apreço, mas também à própria obra literária42.

Com efeito, após uma observação mais atenta do retrato feito pelo narrador ao seu protagonista através de um acompanhamento cronológico

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