• Nenhum resultado encontrado

O republicanismo na lírica portuguesa

1 – Formas de evolução

De uma certa forma, este novo capítulo pode ser considerado um prolongamento do anterior, uma vez que o seu conteúdo continua a efectuar a abordagem diacrónica da temática republicana na literatura portuguesa. Contudo, entendemos haver necessidade de destacar a presença e a evolução do republicanismo na sua especificidade lírica: por um lado, é-nos possível identificar um acentuado maniqueísmo político e uma violência inaudita no conjunto dos textos aqui abordados, na sua maior parte relacionados com a sedição republicana de 1891; por outro lado, há uma clara consciência da marca de originalidade na identificação e na análise crítica da grande parte deste corpus lírico.

Numa espécie de síntese histórica dos vestígios da ideologia republicana na lírica portuguesa, assinalemos o ano de 1865, data em que Antero de Quental publica a obra Odes modernas, considerada por Óscar Lopes o “[...] ponto de partida para uma escola de poesia anticlerical, antimonárquica e antiplutocrática [...]”1. Na sua nota final, posteriormente

denominada “Sobre a missão revolucionária da poesia”, o poeta apelida a poesia moderna de “voz da Revolução”2, e, apesar de não a associar à

ideologia republicana, alude à sua importante função justiceira como fautora de transformação social e como adjuvante no combate contra a monarquia, tal como já tinha exemplificado na terceira parte do seu poema “Carmen legis...”, escrito em 1863:

É a Revolução! a mão que parte A C’roa e a thiara!

É a Luz! a Razão! é a Justiça! E o olho da Verdade!3

Baseado nos seus grandes mestres, como Proudhon, Quinet, Michelet, Feuerbach ou Littré, que orientam, neste período, o seu pensamento republicano e anticlerical, Antero atribui à produção lírica uma grandiosa missão social, através da qual serão derrubados todos os

1 Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa, II – Época Contemporânea, Lisboa,

1973, 23.

2 Cf. Antero de Quental, Odes Modernas, 1865, 151. 3 Idem, 108.

governos monárquicos, devido ao seu carácter despótico, e todas as práticas religiosas, em virtude da sua natureza inepta:

Reconstrucção do mundo humano sobre as bases eternas da Justiça, da Razão e da Verdade, com exclusão dos Reis e dos

Governos tyrannicos, dos Deoses e das Religiões inuteis e illusorias

– é este o mais alto desejo, a aspiração mais sancta d’esta sociedade tumultuosa que uma força irresistivel vae arrastando, ainda contra vontade, em demanda do mysterio do seu futuro.4

Em 1868, na sequência da Revolução de Espanha, que provoca a destituição de Isabel II, Antero de Quental publica o opúsculo “Portugal perante a revolução de Hespanha”, onde refere, a determinado passo:

Quem diz democracia diz naturalmente republica. Se a democracia é uma ideia, a republica é a sua palavra; se é uma vontade, a republica é a sua acção; se é um sentimento, a republica é o seu poema.5

Contudo, a partir do início da década de 70, Antero verá já com um olhar diferente o regime republicano. A comprovar esta sua mudança ideológica, transcrevemos os excertos de duas cartas enviadas ao seu amigo Joaquim Pedro de Oliveira Martins, datadas respectivamente de 13 de Abril de 1873 e de 2 de Julho de 1873:

Os republicanos, cujos centros tenho ultimamente visitado, representam este lado das ilusões senis: tem muitas braças de profundeza o poço de frases estagnadas em que eles mergulham, cuidando de muito boa fé que navegam pelo alto e livre mar.

[...]

O pior que nos pode acontecer é sermos amanhã república. Seria um 48, mas sem o talento, o entusiasmo, o idealismo do outro: um 48 chato. Portugal, por ora, não é republicano, e não

serão os declamadores e os pulhas que actualmente constituem a quase totalidade do grupo republicano quem logre converter o velho desconfiado que se chama o povo português.6

Em 1870, Guerra Junqueiro publica o poema “Vitória da França”,

em cujas quadras – dedicadas a Victor Hugo – o poeta transmite todo o seu enorme entusiasmo pela recente proclamação da terceira República Francesa, considerando-a um grande benefício para toda a humanidade.

4 Antero de Quental, Odes Modernas, 1865, 159-160. Sublinhado nosso.

5Antero de Quental, “Portugal perante a revolução de Hespanha”, in Prosas, II, 1926, 59.

Sublinhados do autor.

Passados três anos, compõe ainda “À Espanha Livre”, um poema onde saúda a implantação da República em Espanha.

Em 1878, dois anos antes de editar a Cartilha do Povo, de autoria partilhada com Carrilho Videira, o autor positivista Teixeira Bastos publica Rumores Vulcanicos, uma obra poética cujo título nos remete, desde logo, para uma exaltação latente da ideologia republicana. Em termos gerais, este conjunto de poemas destaca-se pela sua índole panfletária e maniqueísta, apresentando, por vezes, uma linguagem mais violenta e agressiva no confronto directo com a autoridade monárquica; é o caso, por exemplo, do soneto “Aos reis”, dedicado a Teófilo Braga, do qual transcrevemos a segunda estrofe:

Vosso tempo findou, ó lubricas serpentes Dos povos, das nações, ó viboras esguias, Que ha muito habitaes as arvores frondentes Do mundo velho, ó reis, ó velhas tyrannias!7

Contudo, o destaque especial desta obra vai para o soneto “O tempo já chegou, em que o Messias”; num evidente estilo apocalíptico, o poeta coloca-se no papel de um profeta que comunica a boa nova da chegada do dia do juízo final, o desejado momento em que Cristo regressa à Terra e estabelece definitivamente o seu reino harmonioso. A linguagem religiosa e messiânica deste soneto é reveladora do carácter sacrossanto de uma nova divindade denominada República, a qual espalhará a sua autoridade íntegra e harmoniosa por toda a face da Terra:

O tempo já chegou, em que o Messias Do seculo brilhante, que passamos, Deve á terra descer, em que habitamos, E n’ella inaugurar os novos dias!

O tempo já chegou! e as harmonias Dos córos divinaes, que tanto amamos, - Esses córos de leis, que nós buscamos No céo, na terra e mar, nas penedias, - Os corações nos enchem de ventura, Anunciando o Messias, - a luz pura Da Sciencia immortal, Bem e Verdade! É esse um novo Deus, que a praça publica Um dia elevava, - é a Republica,

- A serena visão da Humanidade!8

No início da década de 80, Gomes Leal revela-se um poeta bastante dinâmico na concepção de uma poesia panfletária caracterizada pela introdução de fortes ataques pessoais, e onde, numa visão apocalíptica e catastrófica, alia a sua tendência republicana a um manifesto repúdio pela monarquia e pela clerezia. Destaquemos, na sua obra, os poemas A

Traição9, onde o rei D. Luís é acusado pela venda ilícita de Lourenço

Marques, O Hereje, dedicado à rainha D. Maria Pia a propósito da queda dos tronos e dos altares, e O Renegado, no qual critica com firmeza Rodrigues Sampaio por ter abandonado a luta pelo republicanismo para se juntar à causa monárquica.

Em 1885, Alexandre da Conceição compõe o “Hymno do Club Henriques Nogueira”10, em cuja temática é contraposto o ignóbil e tirânico

regime monárquico ao ideal resplandecente e libertador do novo arquétipo republicano, como se pode observar nas duas quadras finais deste poema musicado, impresso apenas em 1891:

Partamos n’um esforço a grilheta infamante, Que nos prende ás galés da velha monarchia, Reponte para a patria a aurora deslumbrante D’um novo e grande ideal, d’um novo e grande dia. A Republica avança, inunda todo o espaço,

Como um rio de luz, que sae fóra do leito,

Que ella encontre um soldado aqui, em cada braço, Que ella encontre um sacrario aqui, em cada peito.11

A partir de 1891, ao entrarmos na fase activa do republicanismo, regista-se uma radicalização notória na linguagem de diversos poetas, empenhados em dar o seu contributo directo para a nova e crescente ideologia política. Apesar de a ideia republicana continuar a ser encarada

8 Teixeira Bastos, Rumores Vulcanicos, 1878, 181-182.

9 A enumeração sequente dos cinco monarcas brigantinos, desde D. Afonso VI a D. João

VI, considerados responsáveis pela decadência acentuada na nação portuguesa, é uma das principais influências para a estrutura da Cena XIII do poema Pátria, que Guerra Junqueiro comporá na década seguinte.

10 Este Clube republicano tinha sido formado em 1881, por altura do 23º aniversário da

morte de José Félix Henriques Nogueira. Segundo Joel Serrão, este doutrinador de meados do século XIX é “[...] o mais antigo alicerce ideológico do republicanismo, [...].” (Joel Serrão, “Para um inquérito à burguesia portuguesa oitocentista”, in Temas

oitocentistas, II, 1978, 232.).

11 Alexandre da Conceição, “Hymno do Club Henriques Nogueira”, in Outomnaes, 1891,

muitas vezes como uma solução salvífica e messiânica, começa a prevalecer uma consciência generalizada de que, através da mobilização popular e do apelo determinante à revolta e ao emprego necessário da violência e das armas, é possível concretizar-se, a muito curto prazo, a ansiada implantação do regime republicano.

Uma das publicações que melhor testemunha a transição da actividade doutrinária do republicanismo para a sua via insurreccional é

A Victoria da Republica. Editado entre 1885 e 1894, este “almanaque

anual de propaganda democrática” inclui, para além de uma série de notícias e artigos de ordem diversa, um conjunto significativo de poemas panfletários, composta por autores como Arnaldo Nobre, Mariano Antonio, Guerra Junqueiro, Luiz Silveira, J. J. d’Araujo, e Esculapio, pseudónimo de Eduardo Fernandes.

No ordenamento metodológico dos textos líricos escolhidos para integrarem este capítulo, optámos por privilegiar uma estrutura temática, sequenciada segundo o grau de importância atribuído aos topoi neles desenvolvidos. Deste modo, o nosso destaque analítico principal incide, com uma grande margem, sobre os registos da revolta republicana de 31 de Janeiro de 1981, quer se trate da evocação da heróica iniciativa militar em si, quer da alusão às suas consequências trágicas.

Em primeiro plano, referenciaremos a poesia de António Nobre, onde as quadras “Bebia, a rir num ‘cabaret’” e o soneto “Não repararam nunca? Pela aldeia,” revelam, de uma forma singular, os mais fortes sentimentos nutridos pelo autor portuense em torno deste acontecimento histórico. Para além destes dois poemas, serão ainda objecto de análise os textos poéticos “Revolução Portuense, I – O desfilar das tropas”, de Correia Taranta, “A calhandra”, de Nun’ Allen, “Oração pelos vencidos”, de João de Menezes, “Visão”, de Oscar Latourrette, e o poema extenso Justiça aos

Vencidos, de Angelina Vidal.

De menor importância temática, salientemos ainda o apelo à revolução, veiculado através dos sonetos “Chamando á vida” e “Á tyrannia (Commemorando o 18º anniversario da Revolta de Janeiro)”, de M. Marques Ferreira, e “Pela Republica”, de J. J. d’Araujo. Quanto aos dois

restantes temas a tratar – mais precisamente o discurso ofensivo à figura régia (no caso específico, a D. Carlos, através da obra O fusilado do Porto:

verberações d’um revoltado, de Astrigildo Chaves) e a reivindicação do

laicismo (através do poema “A agonia d’um monarchophobo”, de Heliodoro

Salgado) – serão integrados no discurso analítico sobre o texto finissecular

Pátria, de Guerra Junqueiro.

O destaque especial dado ao poema dramático Pátria provém de duas séries de factores distintas: por um lado, há uma manifesta identificação com as grandes linhas de força do pensamento republicano, como é o caso do seu entranhado patriotismo, da referência elogiosa à épica camoniana, da crítica acerada a toda a dinastia de Bragança, ou até mesmo das suas “anotações finais”, um extenso conjunto de reflexões teóricas feitas pelo autor empírico; por outro lado, a obra acaba por se distanciar das características temáticas tipificadas nos poemas incluídos

neste capítulo, como sucede com as duas propostas “passivas”

apresentadas no seu epílogo – a descida do fogo divino para reduzir a cinzas todo o regime monárquico e a espera messiânica de uma república romântica, instituída sob a égide do bellator católico Nuno Álvares Pereira.

2 – Os topoi republicanos

2.1 – A revolução de 1891

Pertence a António Nobre a primeira referência encontrada na literatura portuguesa acerca da revolução republicana de 1891, um importante momento histórico que representa, na sequência evolutiva da ideologia republicana em Portugal, o gradual desalinhamento da sua orientação doutrinária e o literal “tiro de partida” da tendência violenta e ameaçadora das armas. Num poema composto por três quadras, elaborado nas primeiras horas do dia 1 de Fevereiro de 189112, o seu

autor dá-nos a conhecer a maneira deveras peculiar como recebe a notícia deste acontecimento, ocorrido precisamente na madrugada anterior:

Bebia, a rir num ‘cabaret’ Subito, leio um telegrama

‘Pronunciamento Portugal’ – só duas palavras, arr, e tantas no vocabulário. Saio. Nervoso, vou por essas ruas O Pariz doido passa a rir. Abjecto!

Volto-me para o Ceu, mas nada: as ruas Olham-me brancas, no seu ar correcto! Vento que sopras do sud-oeste, falla!

Que é isso que ha n’um paiz ao pé do mar, Que irá a esta hora pela minha terra? Que é do meu Pae? Horrível! Vou resar...13

No primeiro verso, o sujeito do poema assinala o seu estado inicial de grande euforia, descontraindo-se nessa noite num estabelecimento de diversão da capital francesa. No entanto, a sua conjuntura psicológica altera-se de repente a partir do segundo verso, ao tomar conhecimento, através do conteúdo minimalista de um simples telegrama, da ocorrência inesperada de um levantamento militar no seu país. Assim, os momentos

12 No final deste poema, é indicado expressamente pelo autor ter sido redigido em Paris,

às três horas da manhã de 1 de Fevereiro de 1891.

13 In Guilherme de Castilho, “Poesias inéditas de António Nobre”, Presença – Revista de arte e crítica, nº 1, Série II, Ano III, Novembro de 1939, 5-6.

de prazer registados no início do poema desvanecem-se e dão lugar a um estado de tensão e de raiva, devido à escassa informação que chega até si.

Na segunda estrofe, o poeta sai para a rua, a fim de procurar, por algum modo, obter mais informações acerca do sucedido. Nesta quadra intermédia, verifica-se agora um contraste acentuado entre a situação angustiada em que o poeta se encontra, bastante diferente dos momentos de prazer descritos inicialmente, e a manutenção do ambiente eufórico e alucinado da cidade14, já considerado aviltante.

Na sua ânsia por novidades acerca da revolta ocorrida, o poeta procura recorrer aos elementos espirituais, ao dirigir o seu olhar para o alto, e às forças da matéria, ao contemplar as ruas parisienses. Contudo, o firmamento não lhe envia nenhum sinal, e as ruas – “brancas”, como se de páginas por escrever se tratassem – também nada lhe transmitem.

Na terceira estrofe, o poeta invoca então o vento, pedindo-lhe que lhe faça chegar algumas notícias do seu país, situado à beira do Atlântico. Nessa tentativa de estabelecimento de contacto com um elemento da natureza15, designadamente o símbolo do influxo espiritual de origem

celeste16, é estabelecida uma dupla relação de afectividade, cujo aspecto

mais curioso reside no jogo hierárquico de palavras entre “país” (verso 10) e “Pai” (verso 12): o primeiro laço afectivo situa-se numa esfera da pluralidade patriótica, encontrando-se o segundo já enquadrado numa singularidade filial.

Ao longo da última quadra, o estado de desespero existencial do poeta vai aumentando gradualmente até ao derradeiro verso, que, em absoluto contraste com o primeiro, é portador de elevados índices de

14 Segundo Mário Cláudio, na poesia nobriana a cidade parisiense representa, em regra

geral, o “pesadelo luciferiano”. (Cf. Mário Cláudio, “António Nobre, a Aldeia e o Mundo”, in Páginas Nobrianas, 2004, 53.).

15 Encontramos, desde a Idade Média, a invocação lírica a forças elementares da

natureza, sobretudo a água e o ar, através de cujas entidades de filiação pagã o sujeito do poema procura obter, de um modo geral, alguma informação sobre determinada pessoa ausente. É o caso, por exemplo, da barcarola de Martin Codax, em que vemos a donzela a indagar as ondas do mar de Vigo sobre o regresso do seu amigo; do soneto “O céu, a terra, o vento sossegado”, de Luís de Camões, onde o pescador Aónio invoca as ondas para lhe devolverem a sua amada infortunada; ou até mesmo, já na segunda metade do século XX, quando o “trovador”, num poema conhecido de Manuel Alegre, se dirige ao vento que passa e lhe pede notícias do seu país.

ansiedade, reforçados pela própria sequência de pontuação. Perante a completa indiferença do vento às suas angústias e hesitações, o último recurso, qual tábua de salvação recorrente no maneirismo quinhentista, acaba por ser a deposição resignada do destino colectivo de Portugal nas mãos piedosas do Deus cristão, a quem o poeta se dirige no final, intermediado por um “Pai-nosso” esperançoso.

Em 1892, António Nobre publica o livro Só, onde está incluído o soneto “Não repararam nunca? Pela aldeia,”17, associado à temática do

texto lírico anterior. Escrito passado pouco tempo após a sedição republicana, este poema permite-nos, por um lado, assistir a uma reacção dicotómica de “Anto” em torno deste acontecimento; por outro lado, ao confrontarmos o texto poético com alguns fragmentos de duas cartas suas, é-nos possível sustentar uma ideia a propósito do seu processo de criação. Passemos de seguida à sua leitura e análise, antes de verificarmos o modo como a recepção de um momento concreto da realidade histórica se transforma num notável trabalho literário:

Não repararam nunca? Pela aldeia, Nos fios telegraphicos da estrada, Cantam as aves, desde que o Sol nada, E, á noite, se faz sol a Lua cheia.

No entanto, pelo arame que as tenteia, Quanta tortura vae, n’uma ancia alada! O Ministro que joga uma cartada,

Alma que, ás vezes, d’Além-Mar anceia: - Revolução! – Inutil. – Cem feridos, Setenta mortos. – Beijo-te! – Perdidos! - Enfim, feliz! –? –! – Desesperado. Vem E as boas aves, bem se importam ellas! Continuam cantando, tagarellas:

Assim, Antonio! deves ser tambem.18

Na primeira parte, constituída pela estrofe inicial, o sujeito do poema começa por dirigir-se aos seus leitores, chamando a sua atenção para a imagem singular das aves a cantarem ininterruptamente, poisadas

17 Na primeira edição de Só, este poema está classificado como soneto XII e intitula-se “Sê

de pedra!”. Na edição de 1898, corrigida e aumentada, o seu título é retirado.

nos extensos fios do telégrafo que acompanha as estradas calmas, ao longo de uma paisagem rural.

Na segunda parte, formada pela quadra seguinte, a conjunção adversativa que figura no início provoca uma mudança inesperada no registo discursivo, e instala-se um estado de grande inquietação quando o poeta toma consciência de que o local de poiso dessas aves canoras é, em simultâneo, um meio de comunicação das notícias mais recentes,

propagadas “numa ânsia alada” (verso 6), a uma velocidade ainda maior

do que o voo das próprias aves.

Apesar da sua parcimónia informativa, essas notícias telegráficas despertam sentimentos intensos e são, em regra geral, motivadoras de desespero e sofrimento. É o caso específico do telegrama incluído neste texto poético, reproduzido sintética e tautologicamente19 ao longo do

primeiro terceto, onde se substancia o episódio da frustrada sedição do Porto e as suas consequências negativas. Veja-se como a junção, no último verso, do binómio antitético “feliz-desesperado” denuncia a grande

instabilidade de um sujeito perante dois estados psicológicos

dissemelhantes, num paralelismo formal estabelecido pela conflituosidade lacónica existente entre a asserção exclamativa de felicidade e os dois sinais de pontuação, a seguir introduzidos.

A última estrofe regressa, de novo, ao registo bucólico inicial, concentrando-se na forma de vida singela e rotineira das aves, numa indiferença bucólica pelos acontecimentos mundanos. Se, no primeiro verso deste soneto de estrutura circular, o sujeito do poema parece estar a dirigir-se aos seus leitores, no último verso é já o autor – invocando-se a si

mesmo pelo nome próprio – que se repreende pela forma exacerbada como

se preocupa com as questões sociais, e aponta a atitude desprendida e egocêntrica das aves como o verdadeiro exemplo a seguir20; daí o seu

19 A ausência do ponto final no fim deste terceto é justificável, se tivermos em conta que o

valor monetário cobrado por um telegrama é calculado em função do número de caracteres inseridos no seu texto, incluindo mesmo os sinais de pontuação mais elementares.

20 Em 1889, António Nobre compõe o soneto “Em certo Reino, à esquina do Planeta,”

inicialmente intitulado “Natal d’um poeta”. Para além de se notar uma certa animosidade em relação a D. Carlos I, o monarca recém-empossado, cuja pessoa é vulgarizada quando o seu nome é colocado ao lado de uma mera figura popular,

desejo final de “insular” a sua alma sensível de um mundo estranho e

Documentos relacionados