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Entre passividade e participação

3. Percepção e atemporalidade

4.1. Entre passividade e participação

Um dos textos a que menos atenção demos no último capítulo é O Aleph, sendo que não aprofundámos as questões do tempo e da percepção, como fizemos para os outros textos. Não se trata de esquecimento ou descura mas sim de reservar para ele um espaço de privilégio, no qual se distingue dos restantes textos pela reflexão profunda em torno da dissolução do Eu.

De certa forma, dentro do corpus deste trabalho, o texto de Borges marca o compasso de uma evolução da lista enquanto elemento capaz de auto-reflexão e auto-crítica relativamente às questões da inefabilidade, da percepção e, finalmente, da identidade. É ainda um encontro com os textos da Antiguidade, num movimento circular que é também um processo de questionar a revelação, a relação do poeta com a revelação e, finalmente, o papel que a lista tem nessa relação.

Mas, mesmo antes de avançar para uma análise dos textos, verificamos que, neste aspecto, continuamos sem nos afastar da obra de William James e, em particular, dos quatro pontos que caracterizam a experiência mística. Sobre o quarto - “passivity” - escreve James:

(…) the oncoming of mystical states may be facilitated by preliminary voluntary operations (…) yet when the characteristic sort of consciousness once has set in, the mystic feels as if his own will were in abeyance, and indeed sometimes as if he were grasped and held by a superior power.192

O autor faz ainda a distinção entre este aspecto da experiência mística e a simples possessão “such as prophetic speech, automatic writing, or the mediumistic trance”,193 representada neste trabalho pela Sibila de Cumas. Fazemos uso da mesma distinção mas acrescentamos ainda que esta passividade não surge apenas da forma que James indica: como consequência da experiência mística. O desaparecimento do Eu e a sua submissão ou dissolução pode ser consequência mas também

192 William James. Op. cit., p. 381. 193 Ibidem.

condição de acesso, pode ser o principal objectivo da revelação ou apenas um degrau numa longa viagem e, finalmente, pode ser desejável ou problemático ou ambos.

Contudo, uma distinção ainda mais importante reside no próprio termo que James escolhe para caracterizar o abandono da “vontade” que o místico sente durante a revelação: passividade. À semelhança do que temos vindo a fazer com os outros pontos que James enumera, procuremos agora examinar o tipo de dissolução do Eu implicado nos textos e compreender que é precisamente a polarização entre atitude passiva ou participativa que marca, também, os textos aqui analisados.

Na obra Eu e Tu, de Martin Buber (à semelhança do que já tínhamos notado a propósito de Merleau-Ponty e David Abram), existe uma separação entre dois modos de experienciar o mundo, (“Eu-Isso” ou “Eu-Tu”: “Duplo é o mundo para o homem de acordo com a sua dupla atitude.”194) centrada na irredutibilidade da distância entre o Eu e aquilo que por ele é experienciado assim como o isolamento de um Eu que, subjectivamente, percepciona:

Quem experimenta não participa simplesmente do mundo. A experiência está “nele”, e não entre ele e o mundo.

O mundo não participa da experiência. Deixa-se experimentar, mas não lhe importa nada, porque não contribui para ela e nada lhe acontece.

O mundo como experiência pertence à palavra fundamental Eu-Isso. A palavra fundamental Eu-Tu funda o mundo da relação.195

O “mundo da relação” de Buber facilmente é associado à ideia de percepção como participação de Merleau-Ponty, em particular na concepção de uma experiência perceptiva como inerentemente recíproca.196 Merleau-Ponty, como vimos no último capítulo, ajuda-nos a estabelecer uma relação entre a natureza sinestésica da percepção mística e o seu carácter pré-humano, no sentido em que é pré-conceptual, anterior à sua racionalização e isolamento enquanto experiência subjectiva. Se as semelhanças entre a experiência mística e o “mundo da relação” de Buber não são de todo inesperadas, não deixam de surpreender, por outro lado, as suas semelhanças com tudo o que caracteriza o modo do discurso da lista que temos procurado definir ao longo deste trabalho.

194 Martin Buber. Eu e Tu. Prior Velho: Paulinas, 2014, p. 7. 195 Ibidem, p. 10.

O carácter inefável da percepção enquanto experiência sinestésica e paradoxal é exemplificado, no texto de Buber, pela diferença entre dois tipos de relação que o observador pode estabelecer com uma árvore. Esta última pode constituir-se, para o observador, como imagem, movimento, como espécie e exemplar - de carácter científico - e mesmo enquanto ideia, “somente em número, em pura relação numérica, e eternizá-la.”197 “Mas”, nas palavras de Buber:

(…) também pode acontecer, por vontade e ao mesmo tempo por graça, que eu, ao contemplar a árvore, seja envolvido na relação com ela, e então ela deixa de ser um Isso. Assenhoreou-se de mim o poder da exclusividade.

(…) Tudo o que à arvore pertence está aí incluído: a sua forma e a sua mecânica, as suas cores e a sua química, a sua conversação com os elementos, a sua confabulação com a estrelas, e tudo numa totalidade.198

O encontro entre as palavras de Buber e as características da lista continuam nas páginas seguintes.199 As diferenças entre os textos de William James e Martin Buber são tão polarizáveis como, em si, polémicas. Retratam os dois lados de uma discussão que, longe de ser resolvida, vem sendo aperfeiçoada pela reflexão acerca da revelação e do próprio uso da lista nesse discurso. Cada um deles encerra em si um dos problemas do inefável de maior complexidade: o problema do Eu e sua dissolução. Mais do que reflectir acerca da representação da experiência mística, este problema põe em causa tanto o próprio poeta enquanto indivíduo que regista como (consequência deste dilema) a sua própria capacidade de registar a verdade.200 Procedamos ao esboço, então, desse breve panorama que nos levará do Bhagavad-Guitá a’O Aleph, agora no contexto do conflito central do texto de Borges, já sugerido no final de “Nova Refutação do Tempo”: a identidade e a sua dissolução.