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2. O infinito da lista

2.4. A lista em órbita

Temos vindo a acrescentar às muitas palavras que definem a atracção vertiginosa do inumerável ou do irrepresentável os termos força centrífuga e força centrípeta. Da mesma maneira poderíamos classificar essa atracção não apenas como vertiginosa mas verdadeiramente gravitacional, quase em harmonia com a sua primeira descrição - científica - nos Principia de Isaac Newton.106 Já falámos do compromisso que o poeta é responsável por retirar da sua oposição. Terminamos este capítulo com uma sugestão do modelo que rege a sua relação.

Como dissemos, é no trabalho de Benjamin Sammons que encontramos a referência às forças centrífuga e centrípeta que inspirou parte desta análise. Não esqueçamos, contudo, que, na sua origem, estes são conceitos centrais na definição de órbita gravitacional.

A força centrífuga - tendência para o inumerável - é a responsável pela tendência que leva os objectos a afastarem-se do centro, com mais força quanto maior é a velocidade a que orbitam. A pedra, que “as soon as ever it is let go, flies away”,107 podia ser substituída pelo olhar telescópico de Homero ou Rimbaud, e pela consciência aguda que ambos têm de não o abandonar à força centrífuga, de não o deixar “fly off in right lines”,108 ainda que tal fosse mais simples ou desejável.

Em vez disso existe um esforço, uma força oposta: a mão, o controlo do poeta, que vira a lista sempre na direcção do seu centro. Não para a ele se abandonar - tal vertigem também acarreta riscos - mas apenas para preservar a órbita que é, nas condições ideais, movimento perpétuo e possibilidade

106 “A stone, whirled about in a sling, endeavours to recede from the hand that turns it; and by that

endeavour, distends the sling, and that with so much the greater force, as it is revolved with the greater velocity, and as soon as ever it is let go, flies away. That force which opposes itself to this endeavour, and by which the sling perpetually draws back the stone towards the hand, and retains it in its orbit, because it is directed to the hand as the centre of the orbit, I call the centripetal force. And the same thing is to be

understood of all bodies, revolved in any orbits. They all endeavour to recede from the centres of their orbits; and were it not for the opposition of a contrary force which restrains them to, and detains them in their orbits (…) would fly off in right lines, with an uniform motion.” in Isaac Newton. “Definition V”. Newton’s

Principia: The Mathematical Principles of Natural Philosophy. Trad. Andrew Motte. Nova Iorque: Daniel

Adee, 1846, p. 74. Internet Archive. archive.org/details/newtonspmathema00newtrich.

107 Ibidem. 108 Ibidem.

de expansão da lista. Esta tornar-se-ia num objecto sempre em vias de se tornar aquilo que representa. O seu carácter enquanto infinito objectivo impele esta necessidade de preenchimento na qual o leitor também participa.

Neste movimento orbital, perpetuado pelo equilíbrio das duas forças, é conferida à lista a impossibilidade de se mover em qualquer direcção que possa prescindir do eterno retorno, a posição inicial - em que o equilíbrio e o controlo do poeta entram em jogo - a que ela sempre regressa. Para Lawrence Buell, a impressão é de “everything moves parallel, nothing moves forward.”109 Uma das diferenças fundamentais da lista em relação à narrativa é a sua impossibilidade de se mover em frente, a necessidade de se manter em órbita. Em que outra situação poderia resultar a oposição perfeita de duas vertigens senão no compromisso equilibrado?

Por isso é que pouco importa, retomando o exemplo das digressões de Rimbaud e Homero, que estas sejam descritivas ou narrativas. Estando perante uma narrativa em potencial desenvolvimento, nunca saímos do âmbito do catálogo. O movimento, nestas micro-narrativas (no caso homérico), não passa nunca a ser horizontal. Qualquer história que fosse desenvolvida, qualquer potencial do elemento da lista, deve terminar e ceder o seu lugar ao próximo. Porque são digressões envolvidas pelo modo da lista nem sequer sentimos nelas a presença e externalização que Auerbach atribui a outros episódios homéricos de digressão narrativa. Se, como no caso da cicatriz e do javali, “they prevent the reader from concentrating exclusively on a present crisis”110, no caso da lista fazem exactamente o oposto. O peso do movimento circular cai continuamente sobre estas descrições obrigando o leitor a não perder de vista o eterno retorno do catálogo e, acima de tudo, a falta de possibilidades de este se mover em frente. Sendo assim, a sombra do próximo elemento ameaça, a todo o momento, ocupar o lugar daquele que agora lemos.

Este movimento circular da lista, órbita mas também condição de eterno retorno, advém ainda da unicidade de cada um dos seus elementos constituintes ou, como já referimos, da relação que cada

109 Lawrence Buell. Op. cit., p. 166.

um deles tem com o centro da lista e não com os restantes elementos. Mas, além disso, a capacidade de cada um dos elementos da lista valer por todos os outros, o seu carácter único que faz com que a lista seja “simultaneously the sum of its parts and the individual parts themselves”,111 faz de cada um o ponto zero da lista, o momento da partir da qual ela pode (re)começar.

É ainda essa capacidade singular da lista para se manter em movimento perpétuo - pois esse movimento é precisamente condição para existir - ao mesmo tempo que aparenta não se mover - porque sempre regressa ao ponto de partida - que faz uma outra ponte entre a lista e a revelação. É frequentemente sob a imagem de uma roda que gira que nos surge o Universo da revelação, na qual a nossa experiência humana reside na superfície, unida ao centro misterioso, que gira e faz girar sem nunca se mexer. Imagem fundamental das culturas que concebem a existência como não linear mas sim palco da repetição eterna (como é a Grécia de Homero ou a Índia do Bhagavad-Guitá), ela encontra correspondência, por exemplo, na ideia que Rimbaud ou Whitman têm de si próprios enquanto indivíduos que são sempre, e de forma simultânea, tudo aquilo que os seus antepassados foram outrora.112 Mas, de todos os textos, é o diálogo do arcebispo da Cantuária, Thomas Beckett - inspirado pela imagem não só do hinduísmo mas também da genealogia cristã, segundo a visão do Empíreo de Dante113 -, que resume esta visão da condição humana:

They know and do not know, that action is suffering

111 Robert E. Belknap. Op. cit., p. 15.

112 Em “With Antecedents”, de “Birds of Passage”, encontramos um dos exemplos em que a ideia é expressa

de forma mais clara, particularmente na última secção do poema. Não esqueçamos ainda que para Whitman a descrição da progressão histórica do mundo, em “Passage to India”, do oriente para o ocidente, presume que nos encontramos a regressar ao ponto de partida. O equivalente rimbaldiano de “With Antecedents” é “Mauvais Sang”, de Saison en Enfer. Pode parecer estranho procurar a ideia do tempo como eterno retorno na obra destes dois poetas em vez de uma ideologia de progresso e evolução em direcção ao futuro. Porém, a ideia de que tanto o passado como o futuro confluem no presente é essencial para a poesia de ambos. O caso de Rimbaud é o mais complicado visto que as palavras que escreve a Paul Demeny são claras e definitivas: “La Poésie ne rhytmera plus l’action; elle sera en avant.” (p. 348. Ver também o parágrafo anterior.). Não é possível desligar estas palavras da função que ele prescreve para a poesia e para o poeta como mago, criador, educador. O mesmo se passa com o excerto, já citado, de Whitman, que abre “Song of Myself”. Quer num caso quer noutro, o papel do poeta enquanto agente da mudança social não tem que estar no mesmo plano, nem ter o mesmo mecanismo, daquilo que nos interessa para este trabalho: o processo pelo qual o poeta “vê” e regista o que vê. As suas listas insistem, independentemente, em constituir-se como lugares de

circularidade e contraste com o movimento em frente de outros modos de discurso.

113 D. E. Jones. The Plays of T. S. Eliot. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1969, p. 65. Vd. Dante Alighieri.

And suffering action. Neither does the agent suffer Nor the patient act. But both are fixed

In an eternal action, an eternal patience To which all must consent that it mat be willed And which all must suffer that they may will it,

That the pattern may subsist, for the pattern is the action And the suffering, that the wheel may turn and still

Be forever still.114 (I.209-17)

O momento do conhecimento inefável, fora do tempo e do espaço, pressupõe um paradoxo, à semelhança do seu centro infinito que é simultaneamente ponto invisível: a ideia de um cosmos que se move sem realmente progredir.

Termina aqui o capítulo dedicado ao infinito, ao inefável e às questões que a presença de ambos na revelação e na lista, colocam ao texto e ao poeta enquanto fazedor de listas. Terminamos a tempo de entrarmos numa outra ordem de problemas causados pela presença do inefável: o tempo e a percepção.