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Paó dita novos caminhos a

serem percorridos.

(Diário de Bordo coletivo, 2009)

Figura 18 -Yabáá e o Santo, no Paó40

Comecei, então, a dar voz a um desejo latente: me aproximar de São Benedito e dançar Tambor de Crioula (que eu admirava demais no Grupo Cupuaçu as mulheres dançando). Minha personagem era a Yabá, que perdera um filho e tinha São Benedito como consolador.

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Foto: José Neto, 2010. Acervo pessoal.

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Foi um trabalho bonito, forte; um acontecimento na cidade e nas nossas vidas enquanto jovens mulheres e artistas. Cada uma ali tratou da sua dor em cena. Tamanha foi a energia dedicada que nós quatro não suportamos. Éramos muito novas e não sabíamos lidar com explosões de vida e potência. Dividimo-nos, Daia e Ana ficaram com a Cia. Fulô e Camila e eu varremos o nosso quintal (que já existia desde a Universidade, desde aquele encontro com Tião Carvalho e João Uchoa, mas que estava coberto de folhas e sementes de frutos que caíram de nossas árvores), chamamos amigos pra adentrar e botamos bandeira no portão: Grupo Saramuná! A primeira brincadeira foi caçar Saci, e de tanto Saci malino que tinha no nosso quintal, que precisamos de ajuda de mais gente se achegou para brincar ‘cá’ gente.

Figura 19 - Espetáculo Tem Saci no meu quintal41 Duas primas brincando no quintal disputam lançam um desafio, e quem ganhar têm direito a um desejo, mas que só Saci pode realizar. Com a ajuda da Vó Zefa, conhecedora nata de histórias do nosso imaginário popular. As meninas vão à busca da aventura em capturar o Saci. Numa empreitada cheia de fantasia, medo e traquinagem, as duas se deparam com a magia de poder realizar o seu desejo, brincando! (Diário de Bordo, 2011)

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Nessas experiências todas, eu cada vez mais firmava sonho de ser artista, de viver da Arte, de viver de Arte. Em 2012, surgiu um projeto das Secretarias de Educação e Cultura, o “Mais Cultura”, que levava oficinas livres de arte para regiões afastadas do Centro da cidade e com índice de vulnerabilidade social. Foi aí que surgiu o Grupo Macumbambê, no bairro de Brigadeiro Tobias. Então, me descobri arte educadora, efetivamente. Sem saber muito bem o que estava fazendo, comecei a compartilhar as minhas vivências de cultura popular com eles. Levei Coco de Roda, Ciranda, Maracatu, Cacuriá, Bumba-meu-boi, e para minha surpresa e paixão, eles todos embarcaram e brincavam comigo. Foi lindo! As peças, que eu escrevi, foram 3,

Alumiai, Maria Amada e Quinamba, todas elas tinham a cultura popular e as

brincadeiras como mote, como modelo de ação, alguns dizem que como plano de fundo, e eu digo como personagem principal. Era uma turma de vinte e cinco, com idades entre dez e dezesseis anos, uma loucura! Todos eles cantavam, dançavam, atuavam, tocavam todos os brinquedos. A gente brincava muito.

Figura 20 - Gruo Macumbambê de Teatro42

Estrela guia, Por que chora? Está chorando Sem parar

A lua nova que clareia noite e dia Hoje não pode clarear É dia é dia de macumbambê

É dia, é dia, é dia de macumbambá (Ponto de Jongo de Tamandaré)

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Camila trabalhava na Fundação Casa há pouco tempo e me indicou pra uma vaga lá. Em 2012, comecei a trabalhar na Fundação Casa. Descobri outra relação importante com a educação que, até então, não me dava conta do que eu tinha em mãos. Na função de educadora dos adolescentes, fazia o acompanhamento de algumas atividades de rotina, como o almoço/janta, e os organizava para as atividades da tarde. Eles “iam pra escola” no período da manhã. Como sou de Artes e era a única naquele período (Camila e eu éramos de unidades diferentes, infelizmente). Fui responsável pelo eixo de Arte, que se resumia a fazer artesanatos para presentear a família no domingo.

Existe um projeto chamado Quesito Cor dentro da Fundação Casa: é um eixo temático para trabalhar as relações étnico-raciais nas medidas socioeducativas. Houve um chamamento para formação de educadores para trabalharem nesse eixo. Camila e eu fomos convocadas. Cada uma iria desenvolver na sua unidade atividades nesta perspectiva. Esse é um projeto que deveria acontecer em todas as Fundações Casa de São Paulo mas, geralmente, é pasta arquivada. Calhou que estávamos lá, éramos as únicas negras e com o passar do tempo vai se conhecendo as pessoas e as pessoas nos conhecendo e soube-se do nosso envolvimento com a Arte e Cultura na cidade.

Fizemos uma formação de dois meses no Museu Afro-Brasileiro no Ibirapuera e foi maravilhoso! Entendi a minha função na Fundação. Camila e eu abraçamos esse projeto de um jeito, que vivíamos em função dele. Assim começou meu processo educativo na Fundação: eu pensava e desenvolvia atividades com a pauta da negritude, da cultura popular, da política, da história, da arte, querendo muito que cada menino se reconhecesse no meio daquilo tudo. Que ele soubesse de onde ele vem, porque é que ele tá ali, porque é que ele fez o que fez, e que por isso, ele é também vítima daquele sistema. Ah, que ingênua que eu fui! É claro que eu não dizia isso declaradamente, mas eu dizia de outras formas, e começaram a sacar o que eu estava fazendo. Eu decidi que o meu caminho ali, com aqueles adolescentes seria o do bem querer. Que eu os trataria como seres humanos, e ofertaria respeito, olho no olho e honestidade, tanto me fosse possível.

Era uma montanha russa estar ali, cada dia era realmente um dia. Descobri o poder do posicionamento político. Coisa que a Cultura Popular

também me trouxe me atravessou e determinou meus caminhos. Meu caminhar lá foi curto, mas bastante importante.

E quando nos deparamos estávamos de novo com um projeto contemplado pela Lei de Incentivo à Cultura de Sorocaba. De novo montando espetáculo onde a calçada era nossa mitologia, era o imaginário popular. Desta vez, com o Grupo Saramuná, e decidida a mergulhar muito mais nesse universo, muitas outras pessoas chegaram para compor neste processo.

E, apesar da brincadeira efetivamente ser um espaço de alegria, é muito difícil coordenar e manter um grupo, principalmente um grupo de Cultura Popular. Embora seja um espaço de representação de uma manifestação tradicional, e não tenhamos nenhum laço direto com a tradição, é um trabalho com seriedade. Mas o fluxo de pessoas é grande, visto que cada uma tem uma motivação muito particular de estar num lugar como este. Na condição de condutora do trabalho tenho que lidar não só com os conteúdos da pesquisa, mas da harmonia do grupo, para que seja um espaço prazeroso e construtivo de experiências. E continuo nesse desafio até os dias de hoje, constantemente. É o espaço que construímos Camila e eu, para gente ser gente melhor, para gente se ajudar. Para gente errar também, que a gente erra muito, muito mesmo. Eu gosto quando isso acontece. Sempre há gente generosa do nosso lado, que mostra o erro, compartilha uma história para que a gente aprenda com ela. Fazendo-nos perceber que estamos em formação e constante transformação, que é do aprender que a gente gosta. A gente falha, fracassa e continua. Dou valor a todo mundo que já fez parte um dia e faz parte hoje desse projeto de vida que é o Saramuná.

Camila não mora mais na cidade de Sorocaba, mas continua pulsando comigo, de mãos dadas, naquilo que faz sentido para vida nossa. Saramuná continua falando mais forte, falando mais alto. Porque Saramuná é o brinde do nosso reencontro nesse mundo.

Figura 21 - As negas Fulô43

Sou Maria Fulô