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Figura 11 – O Despertar da Primavera31

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Já estava imersa nas artes: comecei a integrar as oficinas, cursos livres, workshops e grupos da cidade, era teatro, dança, música, artes plásticas, fotografia, literatura, cinema... Um mundo novo começou se apresentar diante meus olhos, meus sentir, meu viver... Tudo era gostoso feito pique bandeira na rua à noite. Então, era uma nova escola, novos professores, novos amigos, estes para a vida toda mesmo, até hoje. De novo eu encontrara a felicidade e a alegria perdida. De novo pude sentir aquela emoção da Mãe Pata, sensação gostosa de adrenalina, de novo pude sentir meu corpo inteirinho vibrando, e mais tarde, no mestrado, eu viria a compreender o significado do corpo vibrátil de Sueli Rolnik (1992), uma vibração potente de quando a gente é afetado por algo que nos atravessa.

E foi assim que constatei que a escola de nada me servia, de nada me trazia de valor. A professora Gisele, de Geografia, sabia disso e me apoiava muito. Me incentivava, me alimentava com novos livros, novas referências, novas histórias. Ela me apresentou, aos 13 anos, Chico Buarque e Elis Regina. Me contava suas histórias, me levava CDs para ouvir, me presenteava com livros, me deu até um teclado pra eu ser musicista. Sobrevivi à escola graças a ela, que era para mim um frescor naquele inferno. Que me deixava não ser aquele lugar. Deixava-me existir nos meus desejos para além daqueles muros. Foi ela, de mão dada com a arte que me fez sobreviver a escola. Ô lugar ruim! Era sofrido, pesaroso.

Então, saía da escola e, às vezes, ia pra casa almoçar para em seguida já ir à Grande Otelo: lá eu ficava por todo o dia, todos os dias da semana. Logo, aquele lugar se tornou uma segunda casa. Aonde podíamos levar marmita para esquentar, tomar banho no chuveiro do porão, sentar na salinha desocupada e descansar, porque ali fazíamos tudo que o desse e conseguíamos. E lá ficava até fechar, às 22h. Então, íamos sempre em um grande grupo de jovens amigos, aspirantes a artistas, escandalosos para o terminal de ônibus, ansiosos pelo dia seguinte.

Figura 12 - G.O.32

Depois da morte do Mantovani, em 08 de maio de 2003, as coisas foram paulatinamente mudando na Grande Otelo: as regras e o modo de ver o mundo. A morte do Manto foi um sufoco entalado na goela de todo mundo que o conhecia. Levou com ele parte da nossa potência criadora, inovadora e transformadora. Uma parte da arte da cidade morreu junto com ele. Passou um tempo e não éramos mais parte daquele lugar, éramos apenas frequentadores. Nossa relação quase materna com aquele espaço foi assassinada pela burocracia. Há cinco anos, as portas do prédio foram fechadas para uma reforma sem data de término e, em seguida, todas as relações com aquele espaço cultural foram assassinadas: o governo estadual fechou oficialmente as portas da oficina, em 2017, que nesse momento funcionava provisoriamente em uma casa, aguardando o fim das obras. Uma geração de artistas ficou órfã, e outra geração sequer teve a oportunidade de nascer daquela mãe Otelo.

Figura 13 – Tristeza de Grande Otelo33

Houve luta. Houve manifesto. Houve tentativas de conversas. Houve gritos. Houve mobilização. Mas não conseguimos e, hoje a nossa Grande Otelo se encontra assim, abandonada e triste.

32Fonte: https://goo.gl/Ns18Ff

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https://www2.jornalcruzeiro.com.br/materia/856855/mp-entra-com-acao-para-restauro-do-predio- da-oficina-grande-otelo

O início dessa crise nas Oficinas Culturais, em geral no estado de São Paulo, se eu juntamente com a criação do curso ‘Teatro: Arte-Educação’ na Universidade de Sorocaba em 2004. Retomei o mo(vi)mento transformador dos meus caminhos. Alguns dos meus amigos, mais velhos que eu, ingressaram na primeira e na segunda turma. Em 2006, ingressei na terceira turma, mas também cheia de amigos, inclusive o Pedro, meu primeiro professor de Teatro lá de 1999 (a vida não é fantástica?). Essa turma, inclusive, foi um acontecimento na história do curso, pois mais de 80% da sala eram artistas atuantes na cidade.

Conheço o Ademir Barros, depois a Ana Maria Mendes e o NUCAB34, juntamente com a Daia, uma das minhas melhores amigas - daquelas de verdade que o teatro me trouxe - e juntas iniciamos um processo de descobertas sobre África e sobre o Brasil... Negritudes e brasilidades. Inclusive um processo que se mantém vivo até hoje. Chegamos juntas também no Mestrado.

Os caminhos se abrem para a nossa descoberta-construção de um ser/corpo negro político, social, artístico, cultural, religioso e estético. E criei amor por esse processo. Eu com dezessete anos tinha todos os problemas de autoestima que uma adolescente, principalmente, negra sem referências de representatividade tem.

Eu durante toda a minha adolescência “relaxava” o cabelo, que é uma técnica onde você “relaxa” a tensão da textura crespa, ele continua com cachos, mas cachos mais soltos, tira o volume do cabelo, tira a forma, a textura e a característica natural do cabelo. É tanta tensão e pressão sobre nossos cabelos crespos que a ideia do relaxamento talvez seja para ele tenha uma forma “mais aceitável” e, dessa forma, a gente consiga respirar um pouco no contratempo do racismo. Contexto não diferente no teatro, onde o padrão hegemônico eurocêntrico, reina.

Porém, eu descobri que queria lidar com isso no tempo presente, em meio ao furacão do peso que é ser uma mulher negra nesse Brasil. Tinha o cabelo no meio das costas que vivia preso enrolado num coque desde à época

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Núcleo de Cultura Afro-brasileira da Universidade de Sorocaba, coordenado por Ademir Barros dos Santos e Ana Maria Mendes.

de Mantovani, quando me deu aquele primeiro chacoalhão. Cortei tudo fora... Quis a experiência de ver crescer o meu cabelo tal qual ele sempre foi: todo crespo, disforme e cheio das tensões, além de ser lindo e único. Esse foi meu primeiro gesto de amor com meu corpo negro. bell hooks35 diz que “precisamos reconhecer que a opressão e a exploração distorcem e impedem nossa capacidade de amar”.

Junto com o cabelo crespo assumido, solto, ao vento, veio a maioridade dos 18 anos e mais uma crise: a do “quem eu sou?”. A prisão do “Patinho Feio” se despedia e vinha o mito da “mulata típica brasileira”. Comecei a passar pelo processo de hipersexualização do meu corpo. Que passou uma vida sendo rejeitado e de repente ele se transformara no objeto de desejo de homens de todos os tipos. Eu não entendia nada: fiquei bonita da noite para o dia? As inquietações continuavam. E, com isso, pequenas mudanças no meu comportamento começaram a surgir: o modo de me vestir, me relacionar comigo mesma e com os outros, a fazer e pensar teatro. Eu estava renascendo ali, mais confiante e firme na vida. E é nesta transição que veio meu encontro com a Cultura Popular, finalmente!

Foi numa terça qualquer, no primeiro semestre de 2016, que a professora de Jogos Teatrais faltou, e não nos avisou. Tínhamos um professor substituto, que ela mesma se encarregou de convidar e acertar, nos aguardando na sala. Não sabíamos da falta dela e para nossa surpresa, quando entramos na sala, nos deparamos com um homem negro, mais velho, baixinho, robusto e cheio de simpatia, munido de uma caixinha do divino e um cavaquinho. Tinha voz grave, jeito ressabiado e sorriso todo aberto e encantador. Apresentou-se: - “bom dia turma, sou eu, Tião Carvalho, e vim hoje aqui brincar com vocês”.

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Texto Vivendo de Amor de bell hooks. Poratal Geledès, 2010. Disponível em: https://goo.gl/E8r3Vo. Acessado em: 2017.

Quem gosta de brincar boi chega ligeiro