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Entrega da Medalha Nelson Silva (20/11/2014)

No documento janinenevesdeoliveira (páginas 96-101)

CAPÍTULO 3 – O BATUQUE EM AÇÃO

3.3 As apresentações públicas

3.3.1 Entrega da Medalha Nelson Silva (20/11/2014)

No ano de 2014, a sessão ocorreu no dia vinte de novembro. Foi a primeira ocasião em que eu pude apreciar uma apresentação pública do Batuque. Até então, só tinha assistido aos ensaios. Quando cheguei à Câmara de Juiz de Fora, e subi as escadas, me dirigindo para o local das sessões, onde seriam entregues as medalhas Nelson Silva, deparei-me com os membros do grupo com roupas muito bonitas e coloridas, chamativas. Eu estava ciente de que eles possuíam trajes específicos para apresentações, mas não sabia exatamente como eram. Os batuqueiros vestiam-se com uma espécie de bata estampada com cores vibrantes; as mulheres de turbante e colares de contas coloridas e de madeira; os homens, de chapéu estilo “africano” (filás), blusão e calça cumprida estampada; alguns com os pés descalços, outros de chinelinho de couro. Ou seja, indumentárias que, facilmente, identifica-se como “africanas”, embora esse rótulo seja impreciso e problemático: sendo a África um continente enorme e cheio de idiossincrasias regionais, é impossível se pensar em uma forma de se vestir tipicamente e ubiquamente africana. Entretanto, existe um estereótipo de África85 e de roupa africana disponível na memória das pessoas. A forma de trajar turbante colorido, bata, guia, colar é uma “invenção de tradição africana”86

, tratando-se de um estilo costumeiramente

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É muito comum o estereótipo do continente africano, imaginado como uma enorme savana, habitada por elefantes, leões, hienas e sorridentes caçadores-coletores seminus. Ou o estereótipo da África desolada pela forme e pela miséria de seu povo, representada por crianças esquálidas à beira da morte por desnutrição. Não se costuma evocar, por exemplo, uma imagem de uma metrópole industrializada, tal como Johanesburgo. Inclusive, em uma das apresentações do Batuque (a saber, a do dia 16 de setembro de 2015, no Pró-Idoso), houve exibição de vídeos e palestras sobre a África, nos quais se reforçaram os estereótipos de um país de etnias tribais e, também, de um país assolado pela fome.

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Retoma-se a tese da invenção das tradições de Hobsbawm, segundo a qual “[…] Muitas vezes, ‘tradições’ que parecem ou são consideradas antigas são bastante recentes, quando não são inventadas. […]” (HOBSBAWM, 2014, p. 7), sendo que “Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado.” (HOBSBAWM, 2014, p. 8).

valorizado por aqueles que assumem uma identidade pan-africanista, corriqueira nos movimentos negros atuais. Ou seja, trata-se de jogar com o devir típico de um imaginário cultural africano, a partir da representação de uma África idílica, de formação imaginária.

Cabe ressaltar que os membros do Batuque, igualmente, tratam tais vestimentas de apresentação como roupas africanas87, embora as roupas tenham se modificado ao longo da história do grupo. A princípio, remetiam a vestes de escravizados brasileiros, desembocando nos trajes atuais, que são de “reis africanos”, conforme pontuou certa vez Zélia, denotando uma posição “positiva”, uma valorização, acerca da negritude. Já foi efetivada uma discussão sobre os deslocamentos discursivos do movimento negro brasileiro, sendo que a valorização da negritude configura-se em uma posição política possível desde a década de 197088.

O Batuque possui três “uniformes” de apresentação: os trajes brancos, de algodão cru, dos primeiros tempos do grupo; os de “carne-seca” (um tipo de tecido rústico), da época da presidência da Marisa D’Agosto, que eram roupas simples, remetendo, igualmente, aos períodos escravistas e coloniais; e as coloridas roupas contemporâneas, que foram compradas há pouco, com o dinheiro ganho de um edital de cultura do Estado de Minas Gerais, tendo cada membro escolhido a estampa que mais lhe aprazia. Para Sansone (2008), essas identidades étnicas, como os “trajes africanos”, têm sua identidade baseada em uma linhagem metafórica ou fictícia, muitas vezes centrada em um mito de origem comum, e cuja associação com a ancestralidade confere um forte poder de explicação.

A entrega da medalha Nelson Silva ocorre anualmente, possuindo finalidade, segundo a Resolução n° 1.120 de 29 de outubro de 1999, de: “[…] distinguir e galardoar o mérito cívico das pessoas físicas e jurídicas que se notabilizaram, efetivamente, na produção, difusão e engrandecimento das manifestações artístico-culturais e sociais da raça negra, do âmbito Municipal, Estadual e Nacional.” (JUIZ DE FORA, 1999). De acordo com a citação, a

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Aproveitei o momento da entrevista com os integrantes para perguntar para eles o que significava as roupas que eles usavam. A maior parte referiu-se às vestimentas como roupas “africanas”, “dos africanos”, “tipo afro”, “da história da África” e variações. Poucos falaram que eram como “roupa de escravos” ou “como os escravos se vestiam em dia de festa”. Há, inclusive, uma discussão, dentro do grupo, em torno de uma disputa para resguardar uma determinada maneira correta de se vestir, como, por exemplo, a obrigação de se apresentar descalço ou se vale fazer uso do chinelo, se a maquiagem é permitida ou não. De certa forma, alguns integrantes se colocam como aquilo que Giddens (1997) chamou de “guardiões da tradição”, seja ela uma tradição que resguarde aquilo que o Batuque foi outrora (“na época do Batuque, era pé descalço”) ou que respeite uma suposta tradição africana (“tem que usar o colar próprio, de madeira, coisa mesmo africana”).

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Segundo Domingues (2007, p. 116): “O movimento negro organizado ‘africanizou-se’. A partir daquele instante, as lides contra o racismo tinham como uma das premissas a promoção de uma identidade étnica específica do negro. O discurso tanto da negritude quanto do resgate das raízes ancestrais norteou o comportamento da militância. Houve a incorporação do padrão de beleza, da indumentária e da culinária africana. Na avaliação de Maués, esta fase ‘se caracteriza por um rompimento tanto no que se refere a uma adesão aos valores (brancos) da primeira, como à posição no mínimo vacilante da segunda’”.

medalha pode homenagear indivíduos de outras municipalidades, sendo concedida a pessoas físicas e jurídicas, por recomendação de um conselho de mérito. As medalhas podem ser outorgadas para pessoas brancas e negras, cujas ações tenham sido orientadas em prol da raça negra. Os agraciados pela medalha neste ano de 2014 foram: Afoxé Niza Nganga Njungo (grupo de afoxé, que provê palestras e oficinas educativas); Alessandra Crispin (cantora negra juizforana); João Paulino Barbosa (músico e compositor negro); Marcelo dos Santos Campos (médico branco do Programa de Saúde da Família, que trabalha com a saúde direcionada à população negra); Marcos Languanje (negro, percussionista, luthier e articulador de projetos sociais); Maria da Aparecida Pereira (famosa benzedeira de mais de 100 anos. Sua neta recebeu a medalha em nome dela. Não sei se a classifico como branca ou não branca); Raimundo Pereira, o Neném Canela Preta (sambista negro, fundador da Escola de Samba Império do Mundo Novo); Padre José Leles da Silva (negro, trabalha com “direção espiritual”); Projeto Soul Black do Ben (projeto interdisciplinar da Escola Municipal Professora Thereza Falci, do bairro Santa Lúcia, que possui oficinas para alunos e comunidade, tangendo discussões raciais); e Selmara de Castro Balbino (assistente social negra, pesquisadora de comunidade quilombola, militante e proponente de vários projetos sociais).

Antes da entrega das medalhas, foram executados os hinos Nacional, de Juiz de Fora e da Negritude. O presidente da Câmara de então, que é branco, foi quem proferiu o discurso da abertura, cujo tema foi a importância da necessidade de se buscar a igualdade entre as pessoas, citando Martin Luther King, enfatizando que a prática de racismo ainda é corrente, mesmo sendo enquadrada como crime. Zélia também discursou, falando sobre a trajetória do Batuque, que estava completando cinquenta anos em 2014. Pontuou que as letras das músicas entoadas pelo grupo, que contam a história dos escravizados, fazem uma reflexão sobre a passagem de Zumbi pelas terras brasileiras. Interpretou a cultura brasileira como trazida da África, misturada à do branco e à do indígena (mito das três raças). Afirmou que o Batuque representa não só um canto de gente sofrida e oprimida, mas, igualmente, um canto de esperança, liberdade, paz e amor. Remeteu-se ao “grande compositor Nelson Silva” e à criação da medalha. Terminou com a saudação de “um grande axé para todos”. O Batuque fez uma pequena apresentação, que contou com apenas duas músicas: Escravidão e

Figura 3: O Batuque na Entrega da Medalha Nelson Silva Fonte: A autora (2014)

Nesta ocasião, recebi dois convites impressos: 1) Um folder da palestra sobre Literatura e Música negras, que seria realizada no Museu de Arte Moderna (MAMM) de Juiz de Fora, e teria como encerramento da programação o Batuque. Nele, havia uma foto de Zumbi ao fundo, e os seguintes dizeres: “Consciência Negra: Literatura e Música. Comemoração do dia da Consciência Negra”, anunciando a presença de duas pessoas que não compareceram: o professor Antônio Tillis e Elisa Larkin Nascimento (diretora do IPEAFRO e viúva de Abdias Nascimento). 2) Convite impresso para a 4ª Marcha da Consciência Negra Axé Zumbi, que indicava que a passeata contaria com a participação musical de estilos como hip hop, axé, funk e samba, e identificava homenagem a lideranças negras da cidade, além de reforçar a homenagem a Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares (notar que a referência a Zumbi dos Palmares está presente nos dois impressos, demonstrado que o herói negro não é a Princesa Isabel). Neste folder é possível ler, também, sobre a libertação das correntes (algo que faz alusão ao legado escravista), o fim do preconceito (afirmando, dessa maneira, a existência do mesmo na sociedade brasileira) e a convocatória: “Quem é negro participa. Quem não tem preconceito participa também”. Por fim, há a problemática frase “Todos somos iguais!”, uma vez que, conforme levantado em discussões anteriores, trata-se de uma

posição universalista, confortável às classes privilegiadas, que sempre possuíram, conforme salienta Guimarães (1995), a pretensão de um antirracismo institucional, que se difunde pela crença de que se vive em uma democracia racial e que obscurece o tipo de racismo assimilacionista praticado historicamente no país. As marcas raciais produzem iniquidades na sociedade brasileira, e os censos e pesquisas amostrais são capazes de demonstrar a existência de assimetrias raciais, o que, inevitavelmente, aponta que, no âmbito da vida social, não somos todos tratados como iguais. Contudo, compreende-se que o sentido de “Todos somos iguais!”, partindo desse contexto e desses autores, provavelmente tem a ver com a lógica acionada pelo discurso universalista, que nega, expressamente, a existência de diferenças intransponíveis entre seres humanos (GUIMARÃES, 2003). Dessa forma, ela denota que não seria correto julgar uma pessoa como superior ou inferior, baseado em traços fenotípicos.

Figura 4: Folder Palestra e Mesa Redonda no MAMM Fonte: Autoria desconhecida

Figura 5: Folder Marcha Axé Zumbi Fonte: Autoria desconhecida

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