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Os ensaios

No documento janinenevesdeoliveira (páginas 87-91)

CAPÍTULO 3 – O BATUQUE EM AÇÃO

3.1 Os ensaios

Os ensaios do Batuque Afro-Brasileiro de Nelson Silva, durante o período desta pesquisa, ocorriam sempre às terças-feiras, às 19 horas e 30 minutos, em uma sala grande, de um prédio antigo do centro da cidade de Juiz de Fora. Este prédio pertence ao estado de Minas Gerais, sendo a sala cedida para fins de ensaio do grupo. Foi por intermédio da Funalfa – Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage, órgão responsável pela política cultural do município – que conseguiram tal lugar para ensaiar. A sala é guarnecida com uma mesa grande e muitas cadeiras, muitas janelas grandes, que dão em uma pequena sacada, de teto alto, como é comum em prédios antigos. No mesmo andar, havia outras poucas salas, sendo que uma guardava muitos livros antigos (algum tipo de acervo?). Apenas uma vez, o ensaio atrasou aproximadamente meia hora, por conta de outra reunião de colecionadores que estava ocorrendo na mesma sala de ensaio. Zélia, na ocasião, me informou que, de vez em quando, acontece essa reunião e que ela já havia sido avisada. A reunião dos colecionadores pode ir até às 20 horas, prazo que foi respeitado. No andar da sala de ensaio, há um banheiro com dois toaletes, sendo que um encontrava-se permanentemente com defeito. Durante um bom tempo do campo, o banheiro ficou desprovido de energia elétrica, obrigando-nos a utilizá-lo às escuras. A guarda dos instrumentos musicais era feita em uma sala menor, no andar debaixo. Sempre dois ou três membros homens do Batuque desciam para buscar os

instrumentos, antes de começarem a passar as músicas. O elevador do prédio era antigo e cabia muita gente. Automaticamente, por vezes, tinha medo de que o mesmo desse defeito, por eu saber ser peça antiga. Em uma semana somente, encontramo-lo com defeito, gerando a necessidade de que subíssemos três lances de escada a pé. Prédio antigo, lances de escada longos que cansaram sobremaneira alguns dos idosos do Batuque. A acústica da sala era excelente.

Da mesma forma que o atual local de ensaio é provisório, seus antecessores também assim o foram. A trajetória do Batuque, em termos de lugar para ensaiar, sempre foi a de peregrinação, nunca possuindo sede própria. Este fato ressente os batuqueiros, que avaliam que o grupo deveria ter uma sede e transporte próprios. Desde que eu comecei a acompanhar o grupo, Zélia mencionava uma sala pertencente à prefeitura, na rua Fonseca Hermes, na área central de Juiz de Fora, que fora prometida ao Batuque. Neste local, Zélia pretende criar um “Memorial do Batuque”, além de ser um lugar permanente de ensaio e outros encontros do grupo. Contudo, embora em um ensaio de fins de junho de 2015, Zélia tenha mencionado que a questão da Fonseca Hermes já estava praticamente resolvida, o ensaio de 2016 será retomado no prédio da Getúlio Vargas. O lugar de ensaio anterior era o Centro Cultural Bernardo Mascarenhas, que tinha o inconveniente de não permitir os ensaios do grupo quando havia vernissages e coquetéis, o que não era tão infrequente. O fato de o ponto de encontro do Batuque ter sido, comumente, no centro da cidade, tem a ver com um fator estratégico, uma vez que os membros do Batuque moram em bairros diferentes, e o centro de Juiz de Fora é o ponto de convergência do transporte público. No que tange à mobilidade dos batuqueiros, a maioria deles já utiliza o ônibus gratuitamente, por possuírem idade superior a 65 anos. Os mais novos recebem dois vales-transportes por ensaio e apresentação, que, de acordo com Zélia, são providos pela prefeitura, via Funalfa. Aliás, tudo o que o Batuque recebe por apresentação é o transporte, seja por meio de vale-transporte ou de transporte particular, tipo van, micro-ônibus, etc., e um lanche, configurando as suas únicas exigências para se apresentar, o que fica a encargo de quem os convida.

Frequentei os ensaios sistematicamente por um ano, sendo poucas as ocasiões em que deixei de comparecer. O primeiro contato que eu tive com o grupo foi no dia 28 de outubro de 2014, e a primeira apresentação que eu assisti foi no dia 20 de novembro. Fiquei duas semanas sem comparecer em julho, pois tirei umas pequenas férias. Durante esse período, houve somente um ensaio e nenhuma apresentação. Mais para o final do mês de julho, faltei mais uma semana, para participar de um congresso. Havia uma apresentação que eu perderia, mas esta foi desmarcada sem maiores explicações por parte dos organizadores do evento,

segundo Zélia. Alguns ensaios foram desmarcados da parte de Zélia, quando esta possuía alguma reunião de trabalho ou alguma viagem, mas não contabilizaram em muitas as terças em que eu não me encontrava com o Batuque. O grupo, no ano de 2014, reuniu-se até próximo ao Natal, retomando as atividades após o carnaval de 2015, no início de março. Portanto, observei e interagi com o Batuque pelo período de um ano. Minha convivência me fez nutrir um misto de respeito, admiração artística e camaradagem por eles. Com alguns, creio que se desenvolveu uma amizade.

Cada ensaio possuía uma rotina, seguia um padrão, tanto que, no meu caderno de campo, geralmente, me utilizava do termo “reunião” para me referir às terças de ensaio. Quase que invariavelmente compunha-se de: conversa inicial da Zélia para com o grupo, oração e ensaio. Eu procurava sempre chegar cedo aos ensaios, e, basicamente, as tarefas da noite principiavam com um bate-papo, no qual se conversava sobre temas como família, saúde, se mostravam fotos, se falava de viagens, geralmente em pares, ou em pequenos grupos. A sala dividia-se em um conjunto de cadeiras do lado direito e esquerdo, e, habitualmente, esses espaços ficavam separados tacitamente por gênero: homens aglutinavam-se em um canto, mulheres em outro. Era automático eu ocupar o lado das mulheres e, por isso, conversar mais sobre coisas da esfera privada com elas. Às vezes, ficava disposta uma fileira de cadeiras logo de frente para a comprida mesa da sala, quebrando-se esse padrão de separação. Os membros do Batuque iam chegando aos poucos, e, depois que já contasse com uma quantidade considerável de pessoas, Zélia prosseguia dando recados e discutindo o que era necessário. Às vezes, ela tentava mediar algum ponto conflitivo na vivência do grupo, seguindo a “filosofia” de colocar sempre as coisas em pratos limpos, evitando “disse-me-disse” e congêneres, e objetivando manter a boa convivência grupal. Ou seja, fazia o papel, por vezes, de uma mediadora, buscando consenso, tendo, por algumas ocasiões, ressaltado que o Batuque era uma grande família e que, portanto, necessitava de união e companheirismo. Zélia enfatizava que deveria haver uma finalidade “terapêutica” nos encontros do Batuque, onde as pessoas deveriam “coletivizar” seus problemas pessoais, em busca de auxílio e apoio entre os companheiros. Às vezes, “puxava orelha” por conta de atrasos e faltas, ou mesmo por conversa paralela durante a fala de algum membro. Também era muito comum o primeiro momento servir para a montagem do repertório79 de uma

79 No que diz respeito ao repertório, quase sempre a música Escravidão e Liberdade era incluída, devido ao seu aspecto histórico, sendo tida como “carro-chefe” do grupo. Uma vez, quando Zélia perguntou com qual música deveriam começar uma determinada apresentação, Imaculada (uma das irmãs Barbosa, que são integrantes antigas do Batuque), afirmou que Escravidão e Liberdade, e que, gostando ou não da música em si, deveria ser sempre esta.

próxima apresentação. Igualmente, houve momentos em que Zélia informava sobre palestras, passeatas, reuniões e encontros importantes para a militância negra e/ou de mulheres, parecendo trabalhar com a conscientização e politização racial e de gênero, convocando-os para se juntarem a ela ou narrando fatos por ela vividos. Alguns desses encontros e passeatas eram em outras cidades, e Zélia sempre tentava arrumar uma forma de transporte gratuito para aqueles interessados em comparecer, o que nem sempre conseguia.

Passava-se, então, para as orações, como o Pai Nosso e a Ave Maria, além de alguns fragmentos de ritos da missa católica80. Quase sempre se rezava antes de começarem a ensaiar. Geralmente, quem proferia as rezas e os sermões era o Seu Sebastião da Mota, senhor bastante católico. Falava sempre em “seguir o caminho da retidão” e outras coisas similares. Desde os primeiros ensaios que eu fui assistir, juntei-me a eles nas orações. Mesmo não sendo uma pessoa religiosa, acreditava ser o mais respeitoso e correto a fazer, no momento. Os membros do grupo são, majoritariamente, católicos; poucos (arrisco a dizer que só um ou dois) são puramente umbandistas; outros frequentam igreja e terreiro de alguma religião de matriz afro. Não existem evangélicos no grupo. Aliás, a conversão em religiões evangélicas já fez com que integrantes de outrora tenham se afastado do grupo, por causa de suas temáticas afro-brasileiras, o jeito que Cleonice, a dançarina do grupo, dança (conforme ouvi um membro falar: “parece que tá de guia”), as referências aos orixás e os ritmos dos tambores. Frequentemente, o Batuque é acusado de ser “macumba”, fato que incomoda sobremaneira grande parte de seus membros, que sempre enfatizam: “O Batuque não é macumba”. Eles elaboram uma afirmativa que o Batuque é cultura, música, tradição e arte, e que macumba é outra coisa, como pegar espírito, ir em terreiro, fazer despacho81. Em alguns lugares, como em uma ou duas escolas públicas, eles sofreram intolerância, sendo desrespeitados. Igualmente, quando vi a apresentação do Batuque na outorga da Medalha Nelson Silva, na Câmara Municipal, que é reconhecidamente conservadora pela população juizforana, em novembro de 2014, alguns vereadores, provavelmente evangélicos, ora olhavam com certo desdém, ora fingiam não vê-los lá, se entretendo com conversas com seus pares ou com seus celulares. Uma vez que se nota um aumento do segmento evangélico na

80

Sendo meu conhecimento religioso muito limitado, creio que havia outras orações que eram executadas, embora não possa nomeá-las, por ignorância.

81 Certa vez, assistindo a uma apresentação do Batuque, uma senhora que estava sentada do meu lado, virou-se para mim e perguntou-me: “Você já foi no centro de macumba?”. Após eu ter respondido afirmativamente, ela emendou: “A batida parece, né?!”. Essa senhora em questão estava muito feliz com a apresentação, batendo palmas e remexendo o corpo na cadeira. Mas, ela poderia não estar gostando daquela música que parecia “de macumba”, a depender de seus posicionamentos religiosos.

sociedade como um todo82, a rejeição a manifestações culturais afro-brasileiras, como o Batuque, tende a avançar. Não é raro ser noticiado do número frequente de destruição de terreiros de umbanda e candomblé e de agressões, físicas e verbais, aos seus adeptos, por parte de fundamentalistas religiosos. Duas das integrantes, em entrevista, me disseram que só quem “tinha cultura” podia, de fato, “compreender” o Batuque. Na verdade, elas estavam contrastando a recepção deles por públicos diferentes, como, por exemplo, os discentes e docentes da universidade federal, que sempre os recebiam com muita emoção e muitos aplausos, e pessoas sem muita educação formal, que eram “sem cultura” (segundo a avaliação e interpretação delas).

Após as orações, pegavam-se os instrumentos musicais no andar de baixo, e começava-se o ensaio propriamente dito, passando de três a seis músicas, que comporiam o próximo repertório de apresentação, ou que, simplesmente, necessitavam ser ensaiadas. Assim que o ensaio terminava, iam se dispersando do local sem pressa, conversando uns com os outros. Encaminhavam-se, logo após, ao ponto de ônibus, que fica mesmo na avenida Getúlio Vargas.

No documento janinenevesdeoliveira (páginas 87-91)