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ENTREVISTA COM AMINA DI MUNNO *

Cadernos de Tradução: Como e quando nasceu o seu interesse pela tradução?

Amina di Munno: Dedico-me à tradução literária há cerca de trinta anos, mas para falar de como e quando nasceu

meu interesse pela tradução é necessário dar um passo atrás no tempo e no espaço. Tendo permanecido nos Esta- dos Unidos por um período relativamente longo, entre o fim dos anos setenta e o início dos anos oitenta, eu pude, graças ao conhecimento da língua portuguesa, fazer parte como conhecedora linguística de um grupo de especia- listas de informática que naquele momento dirigia ao mercado mundial um dos métodos tradutológicos de van- guarda, que consistia em traduzir automaticamente textos entre diferentes pares de línguas naturais. No LATSEC, Inc. and World Translation Center de San Diego, na California preparei, assim, um manual para a tradução auto- mática do inglês para o português segundo o método SYSTRAN, acrônimo do System Translation. Ao retornar para a Itália, ao dar os primeiros passos no mundo acadêmico, deixei para trás o aspecto tecnológico da tradução e, sem o suporte das teorias, que foram se desenvolvendo quase contemporaneamente ao amadurecimento da minha experiência como “praticante” da tradução, levei adiante o meu projeto de fazer os leitores italianos conhecerem, o máximo possível, o fruto de tantos autores que exprimem a arte de fazer narrativa ou poesia em língua portuguesa. Cadernos de Tradução: Você traduziu e traduz nomes importantes da literatura portuguesa e brasileira. O que a guia

nas escolhas dos autores e das obras?

Amina di Munno: Iniciei em 1983 traduzindo Fernando Pessoa e um artigo sobre Pessoa de Joaquim-Francisco

Coelho, que conheci pessoalmente nos Estados Unidos. Depois, os grandes do século XIX português e brasileiro:

* Professora aposentada e pesquisadora de literaturas portuguesa e brasileira da Università degli Studi di Genova/Itália. Paralelamente atuou e ainda atua

Eça de Queirós e Machado de Assis. Voltando ao século XX, traduzi Clarice Lispector e muitos outros autores, aos quais foram conferidos prestigiosos prêmios literários. A escolha foi guiada por mais fatores, alguns contingentes, ligados a projetos de pesquisa ou a exigências editoriais particulares, outros ditados por um gosto pessoal que torna certamente mais prazerosa a leitura, e, portanto, mais ágil a transposição em italiano. Sobre estes motivos, todavia, prevaleceu a ideia de oferecer ao público italiano os modelos elevados da narrativa e da poesia de língua portuguesa.

Cadernos de Tradução: O que buscam os leitores italianos nas leituras brasileiras?

Amina di Munno: Penso que seja difícil generalizar. Os leitores italianos, como os leitores de todo o mundo, são

extremamente heterogêneos. Cada um de nós tem a própria bagagem de experiências e de cultura, as próprias pre- dileções e aversões, e consequentemente cada um de nós opera escolhas individuais. Imagino que o leitor modelo não busque os lugares comuns e os estereótipos do Brasil que remetem a sol, praia, carnaval e belas mulatas. Entre os meus estudantes na Faculdade de línguas descubro não só interesse, mas afeição e entusiasmo pelas páginas da literatura brasileira, na maioria das vezes consideradas inimagináveis. Hoje, o Brasil é visto como uma potência em expansão e um instrumento para conhecê-lo mais profundamente, além, naturalmente, do turismo e da música, é a fonte literária.

Cadernos de Tradução: Quais são os instrumentos que o tradutor deveria utilizar para ampliar a visão interpretativa

do leitor de uma literatura estrangeira?

Amina di Munno: Na ausência de um aparato crítico ou de um prefácio, um instrumento único, diria: a fidelidade.

Este conceito implica, todavia, uma série de parâmetros (associações, falsos amigos, etc.) que o tradutor é chamado a não ignorar se quiser, de fato, ampliar a visão interpretativa do leitor de uma obra à qual ele não tem acesso na língua original. Ser fiel ao texto de partida significa, entre outras coisas, colher nas entrelinhas do discurso cada nuance de ordem lexical, psicológica, cada alusão irônica, trágica ou sarcástica que seja, e recodificar a mensagem operando uma escolha linguística que reflita o máximo possível o mesmo âmbito conotativo.

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Entrevista com Amina di Munno

Cadernos de Tradução: Na Itália, são mulheres as que mais traduziram Machado de Assis. Para você é apenas uma

coincidência? Ou se pode falar de uma certa “sensibilidade feminina” na escolha deste autor?

Amina di Munno: Pressuponho, como já observado várias vezes, que Machado de Assis não ocupa ainda na litera-

tura mundial o lugar que merece. As traduções de Machado na Itália se devem na maioria das vezes às mulheres, não sei se por coincidência ou pelo fato que poderiam ser, estatisticamente, mais numerosas as mulheres que se de- dicam à profissão de tradutoras. Ao invés disso, rebaterei os termos da questão. Foi o talento de Machado a narrar com extrema sensibilidade o universo feminino. O seu gênio colocou em evidência as emoções, os sentimentos, os pensamentos da alma feminina como jamais tinha acontecido antes dele. As suas heroínas conferem valor às mu- lheres, esse é o ponto crucial de toda a sua narrativa. Basta pensar na figura enigmática de Capitu, nas numerosas protagonistas dos seus originalíssimos contos. Também por isso Machado foi um grande inovador.

Cadernos de Tradução: Como é o mercado editorial italiano em relação às literaturas ditas “menores”? A Itália tem

políticas definidas ou segue as tendências do mercado?

Amina di Munno: É um dado certo que não só o mercado editorial italiano, mas o mundial está mudando as ves-

tes. As tradicionais publicações impressas, que afortunadamente ainda resistem às novas formas de divulgação, são aquelas às quais quem é habituado ao prazer de ter um livro na mão não quer, e jamais iria querer renunciar. Todavia são sempre mais numerosas as formas alternativas de publicação: do mercado digital, como DVD, banco de dados, serviços de internet, áudio livros, ebooks. Está disponível, de fato, online, “a relação sobre o estado da editoria italiana 2010” por parte da AIE (Associazione Italiana Editori) que apresenta os dados relativos aos anos de 2008 e 2009. Dessa pesquisa há muitos dados interessantes, além daqueles que se referem à relação entre obras italianas publicadas e obras estrangeiras. Enquanto o número de obras italianas editadas no exterior está em cres- cimento, na Itália há uma queda no número de títulos e, mais que isso, dos livros traduzidos se produz um número menor de cópias. Na literatura brasileira e em geral na literatura lusófona, à qual se une, apesar de tudo, segundo as estimativas, um público de nicho, estão interessados numerosos editores, e nas livrarias italianas se encontram sejam obras de autores já conhecidos, sejam algumas produções de jovens escritores, graças também ao papel de divulgação das universidades. O problema é que as edições estão destinadas a desaparecer no arco de um breve período, justamente porque as tiragens são exíguas e raras as reedições. As políticas editoriais, as escolhas dos títulos fazem parte das dinâmicas e dos desenhos ideológicos de grandes e pequenos editores. Um livro que é um

ensaio iluminante sobre estas questões foi publicado pela Einaudi em 2004: Storia dell’editoria letteraria in Italia.

1945-2003, de Gian Carlo Ferretti. Lê-se como um romance.

Cadernos de Tradução: Você traduz textos em prosa e poesia. Tem alguma preferência? A poesia foi sempre tida como

um gênero que oferece diversas dificuldades ao tradutor. Para você isso é verdade?

Amina di Munno: Traduzi muito mais textos em prosa do que em poesia, por uma questão de preferência, talvez,

mas também, muito mais prosaicamente, por uma razão de mercado. Frequentemente se ouve dizer: “a poesia não vende” e, portanto, é mais dificilmente proposto em âmbito editorial. É preciso distinguir, naturalmente, entre os diversos tipos de composições e na maior parte dos casos, é plausível que a poesia seja considerada um gênero que oferece maiores dificuldades ao tradutor. Além disso, no interior do próprio gênero poético existem diferenças: respeitar as formas métricas da poesia lírica, traduzir um poema épico, só para dar algum exemplo, requer maior empenho e habilidade que traduzir uma composição em versos livres ou segundo a definição de Pier Vincenzo Mengaldo, em métrica livre.

Cadernos de Tradução: Você mantém contato com os autores que traduz? Se sim, como nasce e se desenvolve essa

relação? Gostaria de citar um exemplo para ilustrar um tipo de colaboração entre o seu trabalho e um dos autores que traduziu?

Amina di Munno: Nunca foi muito estreita e nem frequente a relação com os autores que traduzo, aliás, não o é,

em geral, enquanto o trabalho está em curso. É meu hábito enviar a tradução da obra contemporaneamente ao editor e ao autor, de modo que haja tempo, durante a correção dos rascunhos, para efetuar eventuais modificações com base na sugestão dos próprios autores. Estabelece-se, a partir daquele momento, um acordo e não raras vezes uma amizade com os autores, que sempre me demonstraram, gratificando-me, estima e fidelidade. Foi assim com Chico Buarque, Milton Hatoum e João Almino, último autor em ordem cronológica que traduzi e que está ainda inédito em italiano. Com esses três autores, ademais, existiram alguma troca de pareceres ainda antes da conclusão da tradução. Em relação à poesia, diria que um discurso à parte merece a relação que se estabeleceu com o poeta Cássio Junqueira. O estudo das suas poesias reentrava em um programa de pesquisa que desenvolvi em âmbito acadêmico sobre os “novíssimos” brasileiros. Nasceu uma convivência tão amigável que nos levou a apresentar

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Entrevista com Amina di Munno

juntos a antologia poética por mim organizada e publicada em edição bilíngue, seja na Itália que no Brasil, em muitas cidades de ambos os países.

Cadernos de Tradução: Para finalizar, gostaríamos de saber que coisa significa traduzir, e se poderia definir o estilo,

a poética de suas traduções.

Amina di Munno: Traduzir é antes de tudo paixão, mas também desafio e, talvez, uma arte. Ainda que durante a

revisão do texto seja necessário exercitar a autocrítica, resulta um pouco difícil para mim pensar em definir, em uma espécie de auto-avaliação, o estilo, e até mesmo a poética das minhas traduções, até porque, à luz de tudo o que foi dito até agora, não saberia quanto de “meu” se reflita em um texto que, embora interpretado, decodificado e recodificado, é um texto do outro, caracterizado pela forma, estilo, códigos, temas, tempos, universos de diferentes pertencimentos. Que o tradutor se adeque a tudo isso, ao idioleto, isto é, ao sistema linguístico do autor que traduz, é verificável lendo em tradução mais livros do mesmo autor. Se analisarmos, por exemplo, os três livros por mim traduzidos de Milton Hatoum: Ricordi d iun certo Oriente, Due fratelli, Ceneri de lNord, a meu ver é mais imediata- mente “reconhecível” o autor que o tradutor. O mesmo penso em dizer a respeito de outras obras que traduzi de Eça de Queirós: Il mandarino, La reliquia, Il mistero della strada di Sintra, ou dos numerosos contos de Machado de Assis. Com isso não pretendo afirmar que o elaborado do tradutor seja anônimo ou privo de estilo, talvez apenas foge a uma definição precisa, a uma coerência absoluta, enquanto devendo-se adaptar às variáveis às quais se ace- nou, pode adquirir um caráter de maleabilidade.

Entrevista concedida a Anna Palma & Andréia Guerini Universidade Federal de Santa Catarina Tradução de Ingrid Bignardi & Karine Simoni Universidade Federal de Santa Catarina