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ENTREVISTA COM BRUNO OSIMO *

Cadernos de Tradução: Como nasceu o seu interesse pela tradução?

Bruno Osimo: Apesar do trabalho que tive para entender a tradução, não posso dizer que tenho uma resposta

precisa. Por um lado creio que tenha tido relevância a educação materna, depois da qual pude atribuir extrema importância à precisão das nuances no modo de se expressar, talvez em parte como uma espécie de reação; de outro, o contexto indiretamente cosmopolita da minha educação, seja porque sou hebreu e filho de duas pessoas perseguidas pelas leis raciais italianas e salvas do nazismo graças à fuga e também à sorte, seja porque meu pai via- java muito a trabalho e, cada vez que ele voltava, eu percebia que naquilo que ele contava havia sempre um resíduo, alguma coisa que, para entendê-la, era preciso conhecer diretamente. Algo de intraduzível sem resíduo.

Cadernos de Tradução: Como foram recebidos os seus livros na Itália e no exterior?

Bruno Osimo: Na Itália os meus livros foram bem recebidos, mas na surdina. São adotados em muitos institutos e

escolas de especialização, mas, graças talvez ao fato de o meu editor, Hoepli, parecer não amar as promoções e os eventos públicos, não foram jamais apresentados em lugar algum. No exterior, obviamente, há o grande limite da língua. A língua italiana é minoritária em qualquer lugar. Apesar disso, as poucas resenhas provêm todas do exte- rior. É preciso também dizer que a década que este ano completam os meus livros (a primeira edição do Manual

do tradutor é de 1998, e estou contente de comemorar o evento com os leitores de Cadernos de Tradução) foi uma

década de transformação da universidade italiana, com a drástica redução dos cursos em “línguas e literaturas * É professor e pesquisador do Instituto Superior para Intérpretes e Tradutores, de Milão/Itália. Autor de diversos livros sobre tradução e também tradutor de autores ingleses e russos para o italiano, como Dostoevskij, Tolstoj, Puškin e Èechov.

estrangeiras modernas” e o florescimento daqueles em “mediação linguística” e “tradução”. Isso implicou, para muitos ex-docentes de literatura, uma reintegração, encontrar um papel novo dentro do próprio ou de outros de- partamentos. Muitos docentes de tradução tinham sido formados como especialistas em literatura, e têm às vezes uma postura de suficiência e de superioridade seja em relação à tradução, que consideram “só” uma atividade, seja em relação aos manuais, enquanto um tipo de texto diametralmente oposto aos discursos “acadêmicos”. Pode-se imaginar como tenham considerado um livro que incluísse ambos os defeitos... Devo confessar que, durante o doutorado, eu precisava manter escondida da maior parte dos professores da universidade a publicação dos meus livros, porque os consideravam com demérito enquanto “didático” e não “científico”.

Cadernos de Tradução: Qual é o papel que a tradução ocupa no cenário italiano? E qual é o dos Estudos da Tradução

feito na Itália em comparação aos outros países da UE?

Bruno Osimo: Na Itália a tradução tem um papel fundamental, porque a cultura italiana, após a fase dominante

do império romano, atravessa um período de declínio cultural. Por isso é muito natural que (como afirma Even- Zohar), enquanto cultura periférica do polissistema cultural, no seu interno a tradução ocupe uma posição central: é daqui que passam os textos que importamos das culturas continuamente dominantes, aquela americana in pri-

mis, particularmente no tocante à ensaística. No campo narrativo, está agora na fase de forte domínio – em relação

à escassez numérica – da cultura israelita. No entanto, na Itália se traduz muito, e se publicam mais traduções que originais, diversamente do que acontece, por exemplo, nos países anglófonos. Quanto aos estudos sobre tradução na Itália, estamos muito atrasados em relação aos outros países europeus. Ainda que, a meu ver, toda a Europa Oci- dental incorpora um atraso em relação, por um lado, à escola semiótica estoniana e eslava, e, por outro, em relação ao ensino fundamental do americano Charles Sanders Peirce. É verdade que na Holanda, Bélgica, Reino Unido e França se publica muito mais sobre a tradução, mas é também verdade que tais estudos nem sempre estão abertos às autênticas novidades revolucionárias dos estudos publicados nos países eslavos nos anos sessenta. Por exemplo, o fundamental livro de Popovic, A ciência da tradução, que organizei em edição italiana pela Hoepli, primeiro saiu somente em eslovaco, russo e alemão, e é ainda fortemente depreciado por muitos; o seminal livro de Lûdskanov,

Uma concessão semiótica da tradução, que está saindo pela Hoepli, além da edição búlgara, conhece somente uma

versão em francês agramatical, com uma tiragem exígua e uma difusão praticamente nula. E Lotman e Peirce, que nunca escreveram explicitamente sobre tradução, deram, porém, uma contribuição essencial, se soubermos e desejarmos compreender.

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Entrevista com Bruno Osimo

Cadernos de Tradução: Os tradutores são reconhecidos na Itália? Têm os seus direitos autorais reconhecidos e são

remunerados como gostariam e deveriam?

Bruno Osimo: Na Itália, onde os tradutores são tão importantes quanto os caminhoneiros (ou seja, muito) para a

economia do país, porque se escolheu a política de traduzir modelos culturais dos outros, ao invés de propor mo- delos próprios (assim como se escolheu construir autoestradas ao invés de ferrovias), se fossem unidos poderiam paralisar o país por falta de tarifas e condições adequadas. Ao invés... Ao invés, existe a epidemia de uma doença, aparentemente infecciosa, a “tradutite”, que causa no paciente uma insana vontade de traduzir em qualquer con- dição e a qualquer preço... Brincadeira à parte, a procura pela tradução é inferior à oferta, que é verdadeiramente enorme. Há centenas de pessoas dispostas a traduzir até de graça, só pela honra (como tal é considerado) de ter o próprio nome impresso, pequeno, em uma página que ninguém jamais olha, a do copyright. Próximo ao copyright, e não em relação a esse, porque em 99% dos casos a lei do direito autoral é descumprida e as traduções são pagas por forfait, sem nenhum percentual sobre a venda. A isso se acrescenta que o nível médio (e sublinho “médio”) de cultura editorial dos redatores e dos editores é escasso, que não têm qualquer ideia do que significa a qualidade de uma tradução, ou melhor, que têm uma ideia bem precisa de uma qualidade da tradução que penaliza o texto em vantagem da sua (suposta: e sublinho “suposta”) vendabilidade. Com base nessa lógica, qualquer abuso é válido aos danos do texto (seja o prototexto, o original, seja o metatexto, o fruto do trabalho do tradutor), para que o torne mais “legível”. Mas o conceito de “legibilidade” depende do conceito de leitor implícito que se forma, e, no meu modo de ver, os editores tendem a ter uma visão do leitor implícito como muito mais ignorante e estúpido de como é na realidade o leitor médio. Com isso creio ter implicitamente respondido também à segunda metade da questão: não, os tradutores italianos são mal pagos e têm um status de párias, inferior até mesmo ao já muito baixo (na Itália) dos professores (cujo salário é inferior ao de um bancário). Mas um pouco é também culpa nossa: ao invés de chorarmos com auto-piedade, deveríamos ter maior autoestima, demonstrar mais coragem e estarmos menos dispostos a sofrer. Em suma: o masoquismo é curável. Proponho uma psicoterapia intensiva para todos, talvez com convenções e descontos para a categoria.

Cadernos de Tradução: Teoria e prática da tradução podem ser dissociadas? Em que medida a teoria e a crítica da

Bruno Osimo: Não penso que possa existir uma teoria da tradução dissociada da prática, nem uma prática dissocia-

da da teoria. Quando a teoria era dissociada da prática, por exemplo com Catford e Fëdorov nos anos cinquenta e sessenta, nenhum tradutor acreditava nisso, porque a todos saltava aos olhos que se tratava de uma teoria somente linguística, que não contemplava todos os aspectos extra-lexicais, primeiro entre todos a cultura. A prática disso- ciada da teoria é ao contrário uma utopia, porque as escolhas que um tradutor faz, as faz de qualquer modo, que ele se dê conta ou não, segue uma teoria, explicita ou implícita. Caso contrário, faria as suas escolhas ao acaso, e não acredito que haja alguém disposto a sustentá-lo. Popovic fala de teoria implícita da tradução em referência a esse fenômeno. Se poderia também tentar fazer uma história da tradução baseada sobre traduções práticas. Mais a teoria é implícita, mais se corre o risco de cometer incongruências, de ter uma estratégia tradutiva incoerente consigo mesma. A cultura da crítica da tradução, difundindo-se, só pode melhorar as condições de trabalho dos tradutores, e a qualidade do produto na forma como vem considerado “pronto”, ou seja, na fase final do consumo por parte dos clientes. Na falta de clareza sobre o que se entende por “qualidade da tradução”, corre-se o risco de perseguir dois fins diversos e inconciliáveis da leitura, obtida mediante a eliminação dos obstáculos; e a preparação de um texto apresentado como “de outro”, ou seja, que conserva muitas das características que o conotam como tradução de um outro texto que provem de uma cultura diferente. Com frequência, na Itália se persegue o primeiro dos dois fins, mas quase nunca se declara isso, até porque resultaria ofensivo para os clientes-leitores: atribui-se a eles escassa curiosidade e pouco interesse pelo que o resto do mundo tem para nos oferecer; atribui-se a eles pres- sa, desinteresse, desejo de consumo rápido. Se queremos que os banhistas possam alcançar uma costa repleta de pedras, temos duas possibilidades: fazer uma camada de cimento e criar cômodas rampas, ou equipar os banhistas para que consigam escalar o penhasco. No primeiro caso, os banhistas chegam, mas não tem mais nada para ver. Cadernos de Tradução: Fale do seu interesse pela escola de Tartu, de como nasceu e da importância que teve e tem

nos seus estudos de tradução.

Bruno Osimo: Quando eu era estudante, a professora Elda Garetto, minha orientadora da graduação, me deu um

livro em russo que, do ponto de vista gráfico, tinha um aspecto muito modesto: era A tradução total, de Peeter To- rop. Lendo aquele livro, me dei conta que, por mais que fosse muito difícil para mim entendê-lo, tratava os proble- mas em um nível completamente diferente daquele ao qual eu estava habituado: muito mais científico, metódico, ambicioso. Fiquei impressionado pelo contraste entre o aspecto precário da edição (parecia uma apostila qualquer) e o altíssimo rigor do conteúdo. Escrevi ao autor, e dali tomou vida pela primeira vez a tradução, depois a edição

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Entrevista com Bruno Osimo

italiana, depois a amizade com Peter, depois a colaboração. Basicamente (digo isso com um pouco de vergonha pela minha ignorância), descobri a escola de Tartu a partir do livro de Peeter Torop.

Cadernos de Tradução: Atualmente você faz parte de um projeto dentro da Universidade de Tartu, pode nos explicar

melhor do que se trata?

Bruno Osimo: O estado esloveno, mesmo sendo muito mais pobre do que o italiano, tem uma política previdente

e sabe que é muito importante, para o bem da nação, investir na pesquisa. Logo, existem, também no campo da semiótica da tradução, projetos de pesquisa nos quais estão envolvidos estudiosos internacionais como guest

researcher. Um projeto diz respeito à história da tradução e deveria resultar na publicação de um livro em inglês

sobre o assunto, distribuído pela Tartu Universidade Press. Naturalmente em chave semiótica. Outro projeto considera a descoberta de Roman Jakobson e do enorme patrimônio na sua obra no que se refere à tradução. Cadernos de Tradução: Você publicou diversas traduções de contos e romances do russo e do inglês. Na seleção dos

livros a serem traduzidos em italiano, sobre quais critérios se baseia? E em que medida as editoras participam? A esco- lha do texto de um determinado autor a ser traduzido é uma fase que já faz parte, para você, do processo tradutório? Bruno Osimo: Exceto em raros casos (como A ilha de Sahalin de Èechov ou O hebreu na Rússia e O Anjo selado de

Leskov) na minha vida a escolha foi totalmente do editor. Fosse por mim, por exemplo, traduziria as obras com- pletas de Èekov e consideraria isso uma grande honra e prazer. Ao invés, a Mondadori, depois de ter começado a publicação de todos os contos, no sentido contrário, começando pelos mais recentes, a um certo ponto parou, sem aviso prévio. Uma pena.

A escolha do texto faz parte sem dúvida da crítica da tradução e do processo tradutório. Trata-se, como diz Popo- vic, de crítica preventiva. Além disso, dificílimo de fazer, porque é preciso ser especialista em marketing, sociologia e psicologia social. Não tenho certeza de que os que a fazem tenham todas essas competências. E pensar que o primeiro trabalho que se oferece a um aspirante tradutor é exatamente aquele de ler um livro e preparar a ficha de leitura que serve para tomar tal decisão... Acredito que se deveria investir mais nesse campo, para obter resultados mais interessantes.

Cadernos de Tradução: Na sua tradução do livro de Torop, A tradução total, na Advertência para o leitor, você

explica a transliteração dos caracteres cirílicos aos quais se manteve, acrescentando até algumas “normas simples de pronúncia”. Esse procedimento para que o leitor possa se aproximar, na pronúncia ainda que só interiorizada dos nomes próprios, à língua original, destaca a sua preocupação também pelos sons da cultura eminente. Quando traduz textos literários, qual critério usa com os nomes próprios dos personagens ou de lugares, os traduz ou não? E por quê? E como se comportam ou se comportaram os outros tradutores do russo em italiano ou em outra língua?

Bruno Osimo: Eu acredito que na tradução de textos não estritamente utilitários o escopo seja de fazer o leitor conhe-

cer mundos diversos, culturas diversas, usos e costumes diversos. Vejo a tradução como instrumento para combater o provincialismo que aflige todos nós e que, talvez, está também na base de muitos conflitos. Em consequência, quando não tenho limites impostos pelo editor, conservo nomes próprios seja de pessoa, de lugar, de instituição na forma mais similar possível à da cultura originária, exceto com o alfabeto latino. Um desastre ocorre quando, por exemplo, se traduzem os nomes das universidades, o que com frequência os torna irreconhecíveis, como aquele jornalista que traduziu “Washington University” com “Universidade de Washington”, propondo ao leitor italiano algo inteiramente falso: trata-se da universidade com o título de George Washington, com sede em Saint Louis, no Missouri. Somente as instituições que possuem nomes em mais línguas (como a UE) podem ser nominadas naquelas línguas. Que a cultura eminente seja a russa ou qualquer outra não faz nenhuma diferença. As culturas têm uma particularidade própria que deve ser respeitada e que é útil conhecer, mesmo quando não se está disposto a compartilhá-la. Porém, dado que as normas de transliteração não levam em conta as dificuldades dos não profissionais, e pela transcrição das línguas com alfabeto cirílico, saiu uma atualização em 1995 que simplifica o trabalho dos profissionais, mas o complica para os não especialistas (por exemplo, a letra â serve agora para transliterar um caractere cirílico que se pronuncia “ia”), eu sou favorável a uma aplicação dos padrões ISO, mas também a uma explicação inicial para os leitores com exemplos simples de pronúncias de palavras mais locais possíveis. Muitos tradutores do russo permaneceram estagnados no padrão anterior, de 1968, também porque na eslavística italiana há pouca atualização e uma tendência à conservação e ao dogma. Aquele padrão tinha o grave defeito de não comportar uma correspondência biunívoca entre o sinal cirílico e o sinal latino, com a consequência que nas bibliotecas, por exemplo, os catalogadores que não sabem o russo nem sempre foram capazes de reconstruir a grafia originária.

Cadernos de Tradução: Em sua opinião, o estudioso de tradução e o tradutor têm um papel político-social na socie-

dade atual? Se sim, qual é? Do mesmo modo, qual é o impacto dos estudos da tradução nas editoras, e em que modo pode mudar a relação entre essas e a edição do texto traduzido, entre essas e os tradutores?

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Entrevista com Bruno Osimo

Bruno Osimo: O tradutor e o tradutólogo têm um papel muito importante. Não são apenas o espelho do modo

no qual uma cultura “lê” as outras, mas são também uma força ativa de reflexões sobre tal relação intercultural e de endereçamento de tal leitura. As editoras são empresas, mas isso, além de ser um mal, pode também ser um bem. Muitas vezes, os redatores na relação com os tradutores usam o balanço financeiro da empresa para justificar propostas exíguas. É importante entender que o balanço pode crescer se, ao invés de pensar a produção livreira em senso quantitativo, se pensasse nela em senso qualitativo. Nesse sentido tradutólogo e tradutor podem ser de grande ajuda. Se o tradutor e o tradutólogo fossem ouvidos também como consultores de comercialização, se po- deria revolucionar o modo de fazer os livros, e os leitores se sentiriam mais envolvidos, como em Israel, que tem a taxa de leitura mais alta do mundo.

Cadernos de Tradução: Alguns dos seus livros estão disponíveis de modo integral na internet. Que opinião você tem

sobre o papel da internet na difusão da cultura e do conhecimento em geral? E em particular que importância tem a internet na produção intelectual, no intercâmbio entre pesquisadores, no melhorar a qualidade das traduções, etc.? Bruno Osimo: A internet tem só poucos anos, mas já é um instrumento cuja falta parece inconcebível. O meu

modo de trabalhar, nos últimos quinze anos, mudou de modo radical graças à internet. Os meus alunos não con- seguem nem mesmo pensar em poder fazer uma tradução sem estar constantemente online. As potencialidades da internet para as trocas entre pesquisadores são enormes. Também essa entrevista é um testemunho e uma demons- tração disso. Quanto ao direito do autor e aos livros online, acredito firmemente no direito do autor de ter uma retribuição dos seus leitores, e considero a fotocópia abusiva um verdadeiro e próprio furto, como também a cópia abusiva de CD e DVD. Se um autor coloca à disposição online alguns recursos que são de sua propriedade, bem, então esse é um fenômeno diverso. Mas a honestidade de base dos usuários é dada como certa. E nós esperamos disso um gesto de reciprocidade.

Entrevista concedida a Anna Palma & Andréia Guerini Universidade Federal de Santa Catarina Tradução de Margot Muller & Karine Simoni Universidade Federal de Santa Catarina