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Entrevista e entrevistadora: uma relação dialógica

A pergunta outrora proferida – o que leva uma pessoa a guardar seu material de leitura por décadas? – espera a devida resposta, cujas palavras possibilitem um bom conteúdo para ser analisado. A entrevista se analisada nesta perspectiva fatista16 gera apenas a interpretação de uma atividade entre um interlocutor que instiga o outro a falar aquilo que precisa ser ouvido, como apenas um momento de escuta e espera pelas respostas oportunas.

Precisava instigar um diálogo, sem interferir com minhas palavras; precisava estimular uma fala, sem interromper os entrevistados, para que eles se permitissem expressar fatos e sentimentos, numa narrativa mais próxima às situações de interlocução “espontânea”, cuidando para não cair na tentação de acreditar que, nas entrevistas acadêmicas, “não haja jogos de representações e imagens, negociações e disputas, escaramuças e retiradas estratégicas” (HESSEL, 2002, p. 122).

Assim como nos versos de QUINTANA (1989, p. 150): “o exercício da arte poética é sempre um esforço de auto-superação e, assim, o refinamento do estilo acaba trazendo a melhoria da alma”. O realizar das entrevistas – entre o roteiro a ser seguido e as perguntas emitidas – foi um esforço de autossuperação, um refinamento de um estilo de ser/estar diante do imprevisível, que, sem dúvida, possibilitou-me melhorias enquanto entrevistadora e pesquisadora.

Semelhante à situação do poeta que busca sua inspiração para realizar sua escrita, eu, diante dos entrevistados, buscava a inspiração para o iniciar das entrevistas na própria necessidade de efetuar a pesquisa.

No entanto, como todo ser humano, esbarrei em minhas próprias limitações, por não possuir uma versatilidade com as palavras, cercada por uma timidez. Às vezes, para meu constrangimento, deparava-me com a acompanhante: a elipse que, ora numa ausência de palavras, ora num esquecimento de vocábulos, nas insignificantes fugas dos pensamentos, eu parecia despida da eloquência, da linguagem inatingível. Quando entram em cenas pessoas desconhecidas, o esforço para o diálogo torna-se maior. Era necessário ir além de minhas limitações; precisava realizar as entrevistas, teria de vencer minhas dificuldades pessoais.

16

Cf. HESSEL, R. A entrevista na pesquisa em educação – uma arena de significados. In: VORRABER, M. C. (org.) Caminhos investigativos II: outros modos de pensar e fazer pesquisa em educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

Paradoxo inesperado: ao estar diante dos(as) entrevistados(as), percebi que o maior constrangimento não era o meu. Quando me viam instalando uma câmera de vídeo para a gravação, ficavam visivelmente constrangidos, sem posição para o corpo, preocupados com o que deveriam falar ou em esquecer alguma coisa. Embora o acanhamento não fosse apenas unilateral, eu não podia intimidá-los; precisava transmitir-lhes tranquilidade, pensava nas abundantes recomendações metodológicas para a abertura de um clima favorável à entrevista, segundo uma concepção um tanto racional.

Distante dessa compreensão metodológica, o enfoque às entrevistas direcionou-se para a perspectiva da interação17, considerando entrevistadora e entrevistado(a) como sujeitos parciais. Uma perspectiva que possibilitou olhar as falas dos respondentes, não apenas como uma única fonte de informação, mas toda a situação de interação como um objeto de análise, como uma relação dialógica. (HESSEL, 2002).

Assim, pedi-lhes que iniciassem falando um pouco sobre quem eles eram, que se apresentassem: um momento inicial que trouxe maior expressividade para o decorrer da entrevista. Falar de si mesmos seria um desafio (talvez) para eles, mas seria também, uma maneira oportuna de abertura ao diálogo.

Outras perguntas se estenderam a partir dessa apresentação, elaboradas de acordo com os dados pessoais fornecidos ou mesmo como uma forma de amenizar dificuldades que o depoente manifestava em sua comunicação. Contudo, aos poucos eles deixavam de olhar para a câmera, para mim, a entrevistadora e, por fim, muitas vezes, viam-se em total liberdade para falarem de si mesmos, do livro e das histórias que esse objeto guardava.

Ao me aproximar dos sujeitos entrevistados, encontrava-me equipada de expectativas. Almejava do respondente uma história única entre um leitor e o seu livro. Esperava o inesperado, mas, a quem compete prever as respostas de um entrevistado?

A ideia inicial da situação até pode ser deslocada, modificada, negada... na medida em que o intercambio se desenvolve. Em que o questionamento envereda por caminhos insuspeitos, em que entrevistador se torna um cúmplice ou, decididamente, uma espécie de inquisidor, mas o enquadramento inicial do que vai acontecer é imprescindível. (HESSEL, 2002, p. 126).

Do imprevisível não veio apenas uma história, mas muitas histórias que o objeto-livro trazia consigo: era um fato constatado que eu não podia recusar. O relato tornou-se um revelador

de experiências de leituras próprias de um tempo, para muitos, esquecido, que se abria dentro daquele livro/cartilha/almanaque. A história do primeiro livro de leitura dos depoentes transformava-se numa somatória de muitas outras histórias:

Nossa história são muitas histórias. Em primeiro lugar, porque, muitas vezes não a contamos para nós mesmos, mas a contamos a outros. E a construímos levando em conta o destinatário. Procurando provocar uma interpretação (sua interpretação) e procurando controlá-la. E aqui se abrem múltiplas diferenças, múltiplos espaços de sentido. Em primeiro lugar, porque nossas histórias são distintas conforme a quem a contamos. (LARROSA, 1996, p. 474 apud VORRABER, 2002, p.134).

Nessa relação dialógica, tanto a entrevistadora quanto o(a) entrevistado(a) agem com certa dosagem de interesses. Se em dado momento foi-nos concedido um depoimento, com a intenção de provocar-nos uma interpretação distinta, estaríamos, agora, diante de um novo momento para a pesquisa: a análise dos discursos proferidos, a ação da pesquisadora, que, diante das transcrições, observa as suas características, questiona-as e ressignifica-as.

4 O OBJETO-LIVRO: DO GUARDAR AO (RE)LEMBRAR